Ruído Branco


Ruído Branco é um par de significantes, e os significantes deslizam, ar modulado por cordas, enviado ao corpo do outro, ouvidadentro, raptando sentimentos informes, construindo outros. Entre um e outro ouvido, o som atravessa o silêncio intracrânio e envia-se para os desfiladeiros do corpo, e o corpo retorna sinais ao silêncio intracrânio, e de algum modo, esse par de significantes, ruído branco, som em si mesmo sem sentido, transforma-se numa experiência de sentido.











Editorial


no ouvidadentrar de significante a significante alvirruidoso deste sítio, ou — sem delongas — nas colunas desta revista ruídobranco, você têm a seu dispor: a artista-visual-poeta Patrícia Martins (Patchwork), o poeta Wilton Cardoso (Neuropop), o prosador-poeta André de Leonnes (Mieloma de Ocasião), o poeta jamesson buarque (página p.), o prosador-proseta-poeta Wesley Peres (Vaca de Nariz Sutil), e o músico Paulo Guicheney (C-dur). a colcha-de-retalhos da Pat é uma coluna que se ocupa de arte visual; seu texto inaugural é “Montagem – Cut-up – Apropriação – Invasão” — uma fala crítico-informativa sobre a colagem como processo de reconfiguração do discurso artístico no contexto da atualidade. no trânsito, você, leitornauta, poderá apreciar algumas montagens da autora. em Neuropop, o Wilton se ocupa do universo pop, cultura de massa e mídia em geral como máquinas loucamente devoradoras das diversas linguagens culturais, e a serviço do multiprocessador capitalista, que ao receber o bolo de suas máquinas, devolve tudo em formato de mercadoria para manutenção do neurótico ânimo consumista. seu primeiro texto é “Pistols: The Dark Side of The Beatles”; nele, o autor debate como os Beatles e os Sex Pistols transitaram da condição do rock como diversão e como grito dos marginalia para a condição de produto comercial muito lucrativo e para condição de balizas de criação do rock no planeta. o Wilton fecha a coluna devorando componentes do universo pop e do cult, no belíssimo poema “yoda/marx”. em Mieloma de Ocasião, o André, em verve prosaico-cronista, põe o cenário da prosa ocidental contemporânea em debate provocante. no texto inaugural, “Pynchon para iniciantes”, o autor evoca para você, leitornauta, o escritor estadunidense de Glen Glove, considerado por Harold Bloom um dos maiores romancistas da atualidade. na página p., o james fala de poesia e o diabo a quatro — no topo da coluna há um texto desexplicativo dos propósitos do autor. no texto inaugural, “dúvida, amor, poesia e traição ou simplesmente sobre judas e dante – parte um”, ele discute a impregnação da poesia na vida vivida sócio-cotidianamente. em Vaca de Nariz Sutil — metáfora-título do livro homônimo de Campos de Carvalho —, o Wesley, em verso e prosa e em seu formato mais particular, o prosema, dialoga sobre o sentido, a existência e a potência das coisas diversas que nos rodeiam. no texto inaugural, “O espirro de uma vaca de nariz sutil”, passando por Heidegger, Camus, Don DeLillo, pelo próprio Campos de Carvalho e por-si-mesmo —, o autor poetamedita o plurissigno de “ruídobranco” para você, leitornauta. em C-dur — nome alemão da nota musical dó —, o Paulo falafaz (de) música, sempre vinculando seu texto a um podcast contendo composição de sua autoria ou de outros. no primeiro texto, “Anjos são mulheres que escolheram a noite” — reapropriação da metáfora-verso-poemacompleto de Wesley Peres em Palimpsestos —, o autor descomenta e apresenta a composição para soprano e computador, feita sobre versos deste poeta e a partir da voz de Mábia Felipe — cuja garganta aloja deusas e pássaras. esta, leitornauta, é “ruídobranco” — novíssima revista eletrônica de diálogo com você sobre cultura pop, cult, popular, acadêmica, erudita e outras sem etiqueta.

jamesson buarque



C-dur


Anjos são mulheres que escolheram a noite


“Anjos são mulheres que escolheram a noite” (para soprano e computador) foi composta entre outubro de 2005 e fevereiro de 2006, com largos intervalos de ócio e ódio. Os versos são do escritor Wesley Peres (que também ladra nesta revista), e foram descaradamente roubados de seu livro Palimpsestos (musicar um texto sempre, sempre implica em roubo). Todos os sons da obra foram criados a partir da voz de Mábia Felipe. E basta, não há mais nada a ser dito sobre esta peça. Na verdade, não há nada a ser dito sobre peça nenhuma. Tudo o que disserem sobre música é mentira. Outra coisa: “Anjos” está no CD In Itinere do Grupo de Música Eletroacústica da EMAC-UFG, gravado com patrocínio da Petrobrás.



anjos.mp3






Paulo Guicheney

Paulo Guicheney é compositor. Quando criança teve de optar entre ABBA e Trio Parada Dura. Optou por ABBA, mas depois descobriu que a coisa pegava mesmo era com Beethoven. Estudou piano e composição na UFG, onde também fez mestrado em música eletroacústica. Atualmente leciona composição na UNB.
E-mail: pauloguicheney@hotmail.com




Vaca de Nariz Sutil

Jean Dubuffet


O espirro de uma vaca de nariz sutil


O ruído branco é um silêncio que não se opõe ao som. Silêncio construído. Um bom poema é um ruído branco. Rasura na comunicação. Branco é, ainda, a cor da angústia. A ausência de um nome para o medo.

Um bom poema é um nome para a angústia, um revestimento para esse silêncio extremo. Heidegger diz que todo grande poeta é autor de um único poema, inescrito. Um poema inescrito é um ruído branco.

Inescrito no sentido de não estar nas palavras, mas, assim mesmo, ser efeito delas. Numa espécie de revelação vazia, pode-se descobrir que a palavra não oculta nada, nem revela, pois nada há a ser ocultado, ou revelado. A palavra inventa algo que estava lá, desde antes da palavra: um ruído branco.

O ruído branco é um paradoxo. O contrário de si mesmo. Aproxima-se do que escapa à linguagem, mas só se aproxima do que escapa da linguagem por meio da linguagem.

O ruído branco é a morte que se antecipa por meio da linguagem e torna o homem mortal. Um bom poema torna o homem mortal. O homem é a única criatura que se recusa a ser aquilo que é (Camus). Mortal. Assim, é preciso que o poema quebre as vértebras dessa recusa e devolva ao homem aquilo que lhe pertence, única essência possível: sua própria mortalidade.

Morreremos em azul, talvez, mas será ainda assim um ruído branco.

Ruído Branco é um par de significantes, e os significantes deslizam, ar modulado por cordas, enviado ao corpo do outro, ouvidadentro, raptando sentimentos informes, construindo outros. Entre um e outro ouvido, o som atravessa o silêncio intracrânio e envia-se para os desfiladeiros do corpo, e o corpo retorna sinais ao silêncio intracrânio, e de algum modo, esse par de significantes, ruído branco, som em si mesmo sem sentido, transforma-se numa experiência de sentido.

Mas algo permanece só o que era, som em si, infectado pelo corpo, infectando o corpo de uma teia qualquer, de algo que liga, que pode colocar o homem de pé.

Um bom poema está neste corte, neste hiato entre a palavra com som alado que se dissolve no corpo ouvidadentro e apalavra como paramento deste ruído que é idêntico a sua máscara. Branca ou azul, pouco importa.

*

O nome do site foi motivado pelo título do livro de Don DeLillo, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto:

Agora uma auto-estrada passa atrás do quintal, muitos metros abaixo do terreno da casa, e à noite, quando nos deitamos em nossa cama de bronze, alguns carros passam por ela com um murmúrio remoto e constante que contorna nosso sono como almas mortas balbuciando nas margens de um sonho (p.10).

Um murmúrio remoto e constante que contorna nosso sono como almas mortas balbuciando nas margens de um sonho. Isso é um ruído branco, com certeza. Mas é prosa ou poesia? Usarei esse espaço para colocar em questão esses limites tensos entre prosa e poesia. Ora “teorizando”, ora publicando textos que, como diz um não tão jovem poeta amigo meu, poderiam ser chamados de prosemas.

Sim, dentre outras coisas, este será um espaço para investigação, construção e disseminação de prosemas. Então, o nome VACA DE NARIZ SUTIL. Homenagem a um grande prosemador, Campos de Carvalho.

*

O espirro de uma vaca de nariz sutil, evidentemente, é um ruído branco.





Wesley Peres

Wesley tem 31 anos, mas sempre acham que ele tem cara de 30. É autor de Água Anônima (Prêmio Cora Coralina, 2001) e Rio Revoando (Com-Arte/USP, 2003). Em 2007 lançará Palimpsestos, pela UFG. Acha deplorável pessoas que gostam de Fanta Uva, gosta muito de estourar aquelas bolinhas de plástico e da literatura produzida na Papua-Nova Guiné. Ah, é psicanalista e mestrando em literatura pela UFG. Mora na Cataluña. E-mail: wesleyperes@uol.com.br




página p.


em torno ou pelo propósito da página p.


principalmente pretendo pensar sobre poesia, nesta página p. prioritariamente porque sou poeta e preciso perscrutar este meu pensar de popa a proa. participam, desta perturbação, palavras e problemas que me parecem potencialmente pertinentes: paralelepípedos, porque é o paralelogramo dos parênteses que permeiam as pessoas passo a passo na vida; pedregulho, porque é os próprios pepinos e porradas que os operários impotentemente precisam pagar para ser; puxa-puxa, porque é o possível esticar de porcarias para além do impossível, perseverando os pulhas que pomos de pé às porteiras dos pórticos políticos; e porta, porque é sempre paralela e permissível — provavelmente por força dos poderes públicos em sua perdição presente. peculiarmente, pontuando minha pessoa e preso a minha profissão, tudo isso pertence ao campo da poesia porque predomina em minhas pretensões não pilhérias ou picardias, porém: produtos do pensamento pelos quais as sinapses assumem o formato de poema, seja em verso, pintura ou prosa.

sem mais torneios, primeiro texto:

dúvida, amor, poesia e traição ou simplesmente sobre judas e dante — parte um

seria possível virar do lado na cama e o mundo desemborcar? temos uma vida toda para não ser sem risco. e se? a traição inquire dúvidas. mais tarde é possível que se queira tudo de volta. para os práticos: a oscilação das procelas políticas que movem a infra-estrutura social independentemente do bem-estar público e a infidelidade partidária que dela decorre são bons exemplos disso, o casamento com o ex-cônjuge também. antes mal-acompanhado do que só. para os outros: as palavras bastam. um exemplo crônico — nos dois sentidos mais imediatos do termo — é a pressa de licitação que levou ao desabamento da estação de metrô em são paulo. não tem volta. conserto é reparo. mais tarde é possível que se queira tudo de volta. nada volta. nem tudo foi como se queria. quando tínhamos, não era o que queríamos; somente agora, que não temos mais, queremos. e se não virarmos de lado, não saberemos como é ter o que não temos e poderíamos ter? do outro lado do travesseiro pode morar fadas ou sapos.

ouvi falar de sopa de sapos. não é saudável guardar veneno no cântico dos lábios. casar com sapo deve ser parcial. não casar é recalque: uma pré-concepção das possibilidades. tudo é possível. basta imaginar. imaginamos realizar tudo na possibilidade. se houver arrependimento, somos irremediavelmente culpados de termos imaginado. não consigo pensar que a arquitetura de qualquer época tenha sido possível sem imaginação prévia. paralelepípedo não dá em árvore. há sempre uma matemática de imaginação. peixes vivem de imaginação. “se eu sair, as escamas secam?” “e se eu for pescado, serei pedro?” não há saída para a dúvida quando ela instala a ignição do pensamento para imaginar: “tempo haverá, tempo haverá, tempo para ti e tempo para mim, e tempo ainda para uma centena de indecisões, e uma centena de visões e revisões, antes do chá com torradas”, eliot. pedro, depois de pescado, construiu uma pedreira, e até hoje lá se fabrica pedregulhos e lá é aonde afluem ruminantes para ouvir supostos sacerdotes. o neopentecostalismo, como é óbvio, mas deve ser pontuado porque o óbvio tem a propriedade de cegar, é o melhor exemplo prático disso. “e se eu ficar aqui a vida toda, morrerei afogado?” “mas, quando eu morrer, seja quando for, não foi a vida toda que se foi?” não há mais nem menos nem mais ou menos, simplesmente há, ou. e se?

embora isso, a vida vive de mais ou menos. por isso existem operários, patrões, miseráveis, meninas de classe média alta que se prostituem e vendem o segredo do escorpião como se fosse doce de jaca, e também existe aquele menino de aproximadamente doze anos que foi encontrado morto debaixo de sacos de lixo na esquina das ruas dr. joão passalaqua e santo antonio, em são paulo, no último dia treze às vinte e três horas. ouvi falar que as fadas não podem morrer. quanto mais fadas morrem, mais gente deixa de imaginar. casar com fadas deve ser total. safo era uma fada e morreu. engraçado… continuo imaginando: e se? tenho um amor e ele é maior do que o amor que posso ter. amar é muito solitário. é como água em copo cheio. por isso dante, beatriz e vênus formam uma trindade. recomendo: largue este texto, e vá ler o banquete. sugiro que se informe melhor sobre astronomia para não fazer bagunça entre dante e a cartografia astral da nasa.

virar do lado da cama desemborca o amor? o amor desemborcado é outro amor? se a água se derrama ou é derramada do copo, o copo fica cheio de ar. o amor é para encher. sempre temos a sensação de que vamos encontrar uma pessoa só para amar até morrer. encontramos três pessoas três vezes na vida dentro da geografia dos relógios ondequando nos concebemos. e a sensação continua lá. por isso as pessoas que têm paixão política sempre votam no mesmo partido. elas até inventam na imaginação uma correção contra a infidelidade partidária praticada por seus escolhidos. as pessoas que encontramos para amar são a mesma em outro corpo. o amor precisa de mais de um corpo para funcionar. ele é para encher — poderia se chamar de hipérbole também. quem sabe? essas pessoas que encontramos somos nós mesmos. o amor é muito para dentro. no ego do amor não cabe compartimentos. nele há os anticorpos mais eficientes. sempre amamos quem queremos, por isso imaginamos. daí aquela canção do arnaldo antunes da época dos titãs, “demais”, que diz assim no comecinho: “tudo eu já fiz pra te esquecer, mas foi em vão, e agora quero voltar”. na verdade, para voltar atrás é tarde. os caranguejos andam para frente de retravés. quer dizer que você somente ama pelo mesmo amor, mas não encontrou outro parasita, daí a tentativa de reconciliação. reconciliação é reflorestar as pálpebras porque os cílios caíram depois da última procela de lágrimas. pode observar o amor da mídia pela desgraça: muda somente de geografia.

o amor também é fatal. é preciso muito trauma para não amar mãe, pai etc. a pior coisa do mundo é ter filhos: você vira pigmalião de repente, e é obrigado a amar suas miniaturas como se fossem galateiazinhas, eximindo-se de erotismo, é claro! não tê-los é muito vago: o amor gosta de se amostrar. pior é ser poeta. gerardo mello mourão me ensinou: poeta nascitur. o poeta nasce feito. o poeta, todo ele e ele todo, é ens amoris por excelência. um ente de amor. se eu não fosse poeta, eu não seria outra coisa. então eu era. poeta vive dos outros sendo somente ele: homero inventou a grécia e helena; virgílio inventou roma e dido; dante inventou a itália e beatriz; camões inventou os portugueses e inês de castro etc. yeshuah, que também se chama jesus, inventou um terço da humanidade e maria — todas — e madalena — as duas. kardec o reinventou e reinventou platão, que inventou sócrates. poeta vive de invenção. inventar é ir para dentro, onde só basta o amor e só o amor se basta, gonçalves dias. eu, por exemplo, meu piaga, amo tanto que via de regra vivo gripado: o amor congestiona a respiração.

percurso sugerido como necessário:

a poesia de safo; os cânticos de salomão; a poesia de catulo; a arte de amar de ovídio; as cantigas de amigo de d. dinis; o banquete de dante; em nome de deus (o filme) de clive donner; o amante (o romance) de marguerite duras (e o filme de jean-jacques annaud); o amor natural de drummond; o soneto camoniano que inicia “amor é fogo”; a definição de pessoa: “o amor é como uma sombra que passa sobre um rio ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio”; a declaração de florbela: “minha alma de sonhar-te anda perdida, meus olhos andam cegos de te ver, não és sequer razão de meu querer, pois tu és já toda minha vida” e os poemas pássaro e mulher e mulher e pássaro de dora ferreira da silva.




Jamesson Buarque

jamesson buarque é poeta, professor, crítico literário e doutorando em estudos literários na ufg. publicou os delírios e novíssimo testamento. sente-se muito mais antigo do que sua idade tri-trina cristã. além de poesia e magistério, gosta de vinho, cachaça mineira, desenho animado, cinema, política, bíblia e fenomenologia, tudo misturado. importante: é sobre essa mistura sua coluna.
E-mail: jamessonbuarque@yahoo.com.br




Mieloma de Ocasião


Pynchon para iniciantes

Thomas Pynchon é provavelmente o melhor escritor vivo. O único talvez capaz de rivalizar com ele, W.G. Sebald, morreu há alguns anos em um acidente de carro. José Saramago transformou-se numa espécie de piada de português repetida à exaustão, embora ainda soe engraçada aqui e ali. António Lobo Antunes permanece vigoroso, mas seu crescente hermetismo pode ser um problema. Salman Rushdie está cada vez melhor, mas não chega às alturas de Pynchon. Com Philip Roth, Don DelLillo, J. G. Ballard, Bret Easton Ellis e V. S. Naipaul é a mesma coisa. Pynchon é o que há.

Os muito burros ou apenas preguiçosos costumam elogiar os romances menores de Pynchon (“menores” no que diz respeito ao número de páginas mesmo) e meio que desclassificar os maiores como “intransponíveis” e “ilegíveis”. Os muito burros e os preguiçosos são o que são: muito burros e preguiçosos. Porque as narrativas picarescas, tresloucadas e movidas pelo que Martim Vasques da Cunha chama de “o triunfo da paranóia” de Pynchon são parte do que de melhor se produziu em literatura desde sempre. Livros como V, O Arco-Íris da Gravidade, Vineland e Mason & Dixon não são apenas divertidíssimos e magnificamente bem escritos, mas funcionam como uma espécie de elegia por um mundo que não tem e provavelmente nunca teve sentido. Para Pynchon, só existe sentido na palavra, é a palavra o único porto mais ou menos seguro – daí que seus enredos escorregadios, coalhados de centenas de personagens com nomes esquisitos (Zoyd Wheeler, Tyrone Slothrop, Frenesi, Sábio Cão Inglês, Samuel Peach, Benny Profane e a “Turma Muito Doida” etc.), todos pensando em um milhão de conspirações por segundo, todos irrespondivelmente paranóicos, como se essa paranóia fosse a única coisa capaz de emprestar sentido e alguma ordem a um mundo sem sentido e totalmente caótico, os enredos dos romances de Pynchon são como alucinações nascidas de uma outra alucinação maior: a História.

Nos dizeres de Harold Bloom, o texto pynchoniano é uma espécie de código secreto por meio do qual o autor faz de tudo para fugir às amarras do Estado, porque o Estado, ali, é como se fosse uma alucinação metida em outra alucinação. A grande sacada de Pynchon é justamente essa: construir um nada que se alimenta do nada, parodiando de forma magnífica toda a estrutura social e a própria Historia, que mais parece um palco onde se digladiam paranóicos. Nesse sentido, sua literatura funciona, para roubar uma expressão de Sérgio Augusto de Andrade sobre o cinema de Polanski, como um riso engendrado nas trevas, mas também como a única forma possível de prece, por assim dizer, no seio de um mundo, a rigor, morto e enterrado.

A literatura de Pynchon rasga toda e qualquer ideologia mediante a injeção, em seus alicerces, do germe da paranóia. Seus personagens, sempre à deriva, sempre perseguidos por “eles”, são vítimas ou filhos do vácuo advindo da ausência da Providência, do intelecto ou de qualquer coisa que os preencha, que os emprenhe de sentido, que os leve em direção a algo para além deles mesmos. Vazio de si em si, o personagem pynchoniano recorre à paranóia ou é engolido por ela. Num mundo regido pela entropia, o Vazio é o nada que é tudo.

Que Pynchon seja um autor recluso, que nunca cedeu entrevistas e cuja única foto conhecida é de quando ele tinha dezoito anos ou menos, bem, isso não é acidental, mas absolutamente coerente com a sua literatura. E o fato de, por exemplo, escrever Mason & Dixon, cujo enredo se passa no século XVIII, em inglês castiço não é algo gratuito, não se trata de um estilismo vazio. Há verdade ali. Porque Pynchon sabe que só a palavra salva, só a palavra é capaz, ainda que pela via da desordem (planejada, mas ainda desordem), de emprestar alguma ordem ao caos.


André de Leones

André de Leones nasceu em Goiânia no ano da desgraça do nosso senhor eu-sei-que-você-não-existe 1980. É autor do romance "Hoje está um dia morto" (ed. Record), vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2005 e na época ele achou que isso significava alguma coisa. Venceu também, com um livro de contos de título engraçado nunca publicado, o Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, mas esta piada já é velha. Mantém o blog http://canissapiens.blogspot.com, cheio de piadas mais novas.
E-mail: alleones@gmail.com




Neuropop


Pistols: The Dark Side of the Beatles


O rock funciona por crises e arremetidas. Elvis foi uma dessas arremetidas que impulsionam o rock mais além. Os Beatles foram outra. Os meninos de Liverpool queriam, no começo, apenas se divertir, ganhar dinheiro e garotas. A coisa, no entanto, foi ficando séria. A banda se transformou em fenômeno de massa e isto muda muito as coisas. Quando restrita a Liverpool, por exemplo, a atração das meninas era um fenômeno de bando, depois a energia sexual das garotas se metamorfoseou em histeria coletiva (energia massiva). John & cia. passaram a ser uma espécie de buraco negro que atraia para si grandes quantidades de desejo: sexo, dinheiro, bajulação, ódio e admiração. Foi o segundo caso de fama mundial no rock – o primeiro tinha sido Elvis.

Os Beatles viraram um negócio sério e seus integrantes sentiram isso. Sua reação foi um misto de adesão e repulsa ao espírito comercial. A rebeldia, capitaneada por Lennon, implicou numa aproximação com a onda hippie e suas experiências mágicas com o sexo livre, as drogas, as viagens, o oriente... Essas atitudes, que eram comportamentais e estéticas, causavam furor nos meios conservadores da sociedade, mas exercia uma irresistível atração na juventude. Este confronto de gerações movimentava a vida social e principalmente a mídia, o que significava divulgação gratuita e involuntária, a melhor forma de propaganda. Era uma bola de neve mercantil que se alimentava de sua própria negação: quanto mais John e sua trupe faziam música e tomavam atitudes rebeldes ao status quo, mais eles vendiam.

Elvis foi o fenômeno da década de 50 e os Beatles de 60. Não se pode dizer que os Sex Pistols foram a banda de 70 (que provavelmente foi o Pink Floyd). Mas os Pistols foram a crise mais feia do rock, a mais contestadora, anárquica e explosiva. Porque eram vagabundos viciados, porque seu líder, vocalista e letrista, Johnny Rotten era um irlandês pobre numa Inglaterra preconceituosa, porque tinham talento para compor canções que, apesar de pesadas, mal tocadas e gritadas por Rotten, eram ritmicamente empolgantes e grudavam nos ouvidos das pessoas – eram hits sujos. São características que aproximam os Pistols dos negros americanos: desajuste social, revolta e ritmo alucinante se auto-alimentando. Mais que os Beatles, os Pistols se conectaram com a origem do rock: negra e jovem. Eram o adolescente prestes a entrar no mundo responsável do adulto e que, no entanto, recusa este mundo calculado. Eram o negro/irlandês pobre, proscrito e revoltado, marcado pela sociedade como cidadão de segunda, desde antes de seu nascimento. Duas rebeldias que se juntam um ritmo lancinante e contagiante, rock.

Jovens no ocidente, negros dos EUA, irlandeses na Inglaterra, são situações de minorias, massas bárbaras da periferia, fora dos sistemas produtivos e rebeldes a eles. Mas, paradoxalmente, é da energia selvagem dessas massas que o mercado e a sociedade se alimenta. É na periferia que pulsa a energia desejada pelas massas do centro. Assim, os Pistols e o punk também se tornaram um grande negócio midiático e, principalmente, possibilitaram o negócio maior ainda que foi o rock inglês dos anos 80 e 90, o qual não seria possível sem os Beatles e os Pistols, magia branca e negra da canção pop inglesa

Os brancos (e mesmo os negros) para serem roqueiros, conectam-se com o negro e sua rebeldia rítmica. O contragolpe da indústria cultural é a absorção da energia selvagem que o rock libera. A indústria cultural não cria nem impõe arbitrariamente uma música ou um estilo, ela funciona mais como antena e aparelho de captura. Primeiro ela sonda, identifica e testa as energias musicais e comportamentais das massas bárbaras da periferia, injetando-as nas massas civilizadas do centro. Caso estas se contagiem (pois trata-se de um fenômeno de contágio), as energias periféricas são absorvidas e seus artistas são sugados ao mundo da fama, dos mega-espetáculos e do dinheiro: os Beatles condecorados pela rainha, Rotten participando de um reality show. O rock sempre fracassa (na maior parte das vezes cinicamente) em seu desejo de um novo mundo. Mas nos deixa, como sobra, como vinho, como ritmo, o rastro venenoso desse desejo.

***

Os Beatles não eram exímios instrumentistas nem cantores excepcionais, como Elvis, mas os Pistols definitivamente não sabiam tocar nem cantar. Eles faziam uma zoeira raivosa em cima de letras pobres e agressivas e de um rock básico extremamente alto e sujo para a época. Além disso eram muito mais drogados e estavam quase sempre chapados. Duraram pouco, uns dois anos. Foi um furacão do rock, energia, revolta e anarquia. Os Beatles eram carismáticos, os Pistols eram magnéticos, mas insuportavelmente grosseiros e chulos (aliás, por isto mesmo eram magnéticos). Os Beatles foram os espíritos de luz da canção, enquanto os Pistols foram o exu (a barra pesada) do rock. Meio dia, meia noite.

***

Há uma energia não absorvida nos Beatles e nos Pistols. Não é a que está nos pólos do bem e do mal, da luz e das sombras. Estas foram conformadas às forças maniqueístas da sociedade ocidental. Esta energia rebelde ficou como sobra no meio do caminho, passando em meio às polaridades do bem e do mal, da noite e do dia: aurora. Nela, pulsa o que realmente se quis (e quer), seja com os Beatles, seja com os Pistols, uma espécie de mundo novo, hippie & punk, anárquico, vário e solidário.

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Na década de 80, muito rock paulista e candango foi devedor dos Sex Pistols. Legião, Capital, Plebe, Ira, Titãs, Inocentes, RDP não seriam o que foram sem o punk e os Pistols. O caso mais intrigante é o da Legião, que oscilava entre a revolta energética do punk e uma vontade construtiva e moralista, quase de auto-ajuda, quase gospel: anarquia e conformismo de Renato Russo.

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yoda/marx

implacável

a força

é

quebre

fuja

negue

ab

sorvido

você

será

pelo lado negro (ou) pelo lado luz

um rastro

venenoso

resta

você

deixar




Wilton Cardoso

Apareceu em Morrinhos/GO - 1971. Compulsão crônicaguda por escrever: poemas, ensaios... Leitor obcecado. E obsessivo. Mas preguiçoso. Mora em Goiânia. Caipira, caipora. Vive ao léu, como todo mundo.
E-mail: naumarginal@yahoo.com.br




Patchwork


Montagem - Cut-up - Apropriacão - Invasão


Ninguém poderia imaginar que o ato aparentemente infantil de se apropriar de materiais aleatórios e juntá-los em um suporte, com o auxílio de cola, pudesse se transformar numa técnica artística da maior importância para a arte moderna e contemporânea.

Os artistas George Braque (1882 – 1963) e Pablo Picasso (1881 – 1975) são apontados como os precursores da colagem. Eles passaram a utilizar texturas pré-existentes, recortadas de jornais, revistas, tecidos e outros fragmentos, coladas à tela e ligadas através de cores e desenhos. Essa prática cubista de utilizar materiais recuperados ou apropriados, não criados pelo artista, também estava presente, como técnica e conceito, nos ready-made de Marcel Duchamp (1887 – 1968).

Os artistas construtivistas russos, paralelamente, aderiram ao equivalente fotográfico da colagem, a fotomontagem. Com essa forma de colagem, os construtivistas levantaram questões importantes sobre a natureza da realidade e, também, sobre a possibilidade de novas realidades criadas pelos artistas. Alexander Rodchencko (1891 – 1956) e Gustav Klucis (1895 – 1944) usavam a fotomontagem como um meio de representar os novos ideais soviéticos, promovendo a proliferação de imagens através da mídia de massa.

Uma forma de colagem em três dimensões, ou assemblage, era utilizada por Vladimir Tatlin (1885 – 1953), ele denominava seu trabalho de “compilação de materiais”. Tatlin construía objetos arranjados sobre um plano, porém, esses objetos podiam se mover no espaço, sugerindo uma nova relação entre as formas abstratas e o espaço material.

A fotomontagem também se tornou a principal técnica estruturante do trabalho artístico dos dadaístas alemães. Para esses artistas, a técnica combinava as possibilidades pictóricas da colagem com o realismo da fotografia. A fotomontagem os auxiliava na representação da realidade caótica da Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial.

Atualmente, a colagem digital tem sido muito utilizada por artistas do mundo todo. O princípio é o mesmo da colagem, mas a apropriação e a manipulação das imagens são feitas com o auxílio de programas de computador. As imagens são tratadas com efeitos especiais e perdem qualquer referência com suas formas originais. É possível encontrar grupos na Internet dedicados à manipulação de imagens, numa espécie de competição virtual. A colagem com a utilização do computador é um processo dinâmico e intertextual, num contexto em que o conceito de autoria deixa de ter qualquer significado.

A poster art, uma forma de colagem conhecida também como pós-grafite ou arte urbana, tem se despontado como a nova tendência na arte de rua. O mais importante nessa forma de colagem é registrar um pensamento crítico ou de protesto através da imagem/colagem de cartazes. A proposta dos artistas que se utilizam desse recurso é criar um contraponto ao panorama convencional nas cidades repletas de propagandas e outros apelos visuais.

A colagem é sem dúvida um gesto não conformista. Essa técnica aparentemente simples introduziu duas questões fundamentais para a arte moderna e contemporânea: o mecanismo da Gestalt, no qual a arte deixa de se preocupar com o reconhecimento das partes, em oposição ao que ocorre na representação figurativa, passando a dedicar-se à emergência do todo; e a mudança de paradigma, com a arte superando o caráter de produção manual artesanal, para se tornar contexto e conceito.




Patrícia Ferreira Martins

Patrícia é artista plástica e, atualmente, doutoranda em letras e lingüística pela UFG. Adora música alternativa na linha punk rock e grindcore. Também adora literatura, assistir televisão, surfar na internet, comer pipoca no cinema e tomar mirinda com os amigos. É casada com o Wellington.
E-mail: patricia@wsmartins.net