Número 3









<< Contribuições >>


Editorial

Para não deixar ninguém mal-acostumado, desta vez respeitarei o sistema de caixa-alta e caixa-baixa até última ordem. Estamos de volta e temos boas novas — se é que ainda se anuncia assim uma boa notícia. Nosso colunista Wesley Peres, com seu romance prosemado Casa entre vértebras foi congratulado com o primeiro lugar do Prêmio Sesc de Literatura e deverá ter seu livro publicado ainda este ano pela Editora Record, repetindo o feito de nosso também colunista André de Leones, autor do romance Hoje está um dia morto (Record, 2006). Este prosemador pejado, Wesley Peres, também lançará, pela Editora da UFG e ainda este ano, seu Palimpsestos — livro para o qual tive a oportunidade de fazer as “orelhas”. Faço saber que a coluna funda a obrigação de mais intervenções. Conhecer todo o projeto é uma necessidade que já ouço encher nossa caixa-de-email. Ademais, já estou vendo vocês, leitornautas, enchendo nossa caixa-de-email também para grelar seus olhos no meio do texto a sopro de eco movido a garras de paredes de cidades sussurrando laivas de sangue e crepúsculo e aurora. Em “Neuropop”, Wilton Cardoso nos convida a algumas de suas melhores revelações críticas provenientes do Tratactus marginale. Neste caso, trata-se do texto “Canção & poema”. O autor não se limita a discutir a distinção entre o formato, o discurso e as intenções da canção em relação ao poema, mas dá um salto longo, propondo algo que uma ontologia própria de cada objeto estético deste. Afinal, como o próprio autor nos descreve, a canção, porque performática, acasala-se ao corpo dos gestos, enquanto o poema, este objeto de língua para dentro, torneia com as diversas ginásticas dos idiomas pela ausência de corpo que o coabite de fora. “Cada assassinato em cada livro de Dostoiévski é, na verdade, o assassinato da humanidade inteira” — eis uma observação com precisão nanométrica. O destaque é uma das sutis apreciações que André de Leones faz em “Fiódor”, texto de “Mieloma de Ocasião” acerca da dimensão humana, da capacidade de perscrutação do desespero, do grito, do hoje comum subterrâneo pouco consultável (quiçá inconsútil) do inventor do romance da modernidade, Fiódor Dostoiévski. A “página p.” trás, oportunamente e infelizmente, uma homenagem ao grande poeta Gerardo Mello Mourão. Oportunamente porque este ano o poeta comemorou seus 90 anos e porque sua obra reclama mais e mais um lugar no cânone brasileiro. Infelizmente porque a homenagem é movida, também, pela morte do poeta, no dia 9 de março. O colunista aproveita o texto para dialogar com Wesley Peres, Patrícia Martins e Wilton Cardoso, além de fazer indicações para sua carta “Nênia a Gerardo e convite”, no Jornal de Poesia, e para a competente revista “confraria — arte e literatura”. Em “Vaca de nariz sutil”, Wesley Peres aproveita o espaço para dar a você, leitornauta, conhecimento de Vicente Franz Cecim, escritor paraense que é uma espécie de xamã da prosemia nacional. Entrevistado pela professora e escritora Rita de Cássia, também paraense, o autor de Viagem a Andara oO livro invisível (Iluminuras, 1988), mantendo seu tom de misticismo ou sublimação do fazer literário, fala sobre sua narrativa sem enredo, e de seu interstício entre verso e prosa que ele chama de “escritura”. A escolha de Wesley Peres, mais o texto de “Patchwork” do último número de ruídobranco, e os textos atuais de “Neuropop” e “página p.” compõe o círculo de debate sobre recepção estética como leitura com princípio de prazer e como leitura crítica. Beethoven, com seu sabor de angústia e alegria, Samuel Barber em certos compassos de adágio, inventio de Glenn Gould sobre variações de Bach, György Ligeti com sua contra-recusa da tonalidade, misturados a Gustav Mahler, que ao contrário de Ligeti, rompe com os limites da tonalidade, é o resultado da peça “Música Eletroacústica nº 3”, de Paulo Guicheney. A peça, além do espaço de ruídobranco, está disponível no site Sussurro da UFRJ e foi apresentada na Bienal de Música do Mato Grosso em 2004. Da escuridão comum ao mercado editorial brasileiro, comentando “a paixão pela obscuridade” de Borges e de Cioran, Nilson Oliveira, editor da Revista Polichinello, inaugura no espaço “Contribuições” apresentando Edmond Jabés, Maria Gabriela Llansol e Roberto Juarroz. O espaço, a partir deste número, leitornautas, existe para sua participação. Em “Contribuições” vocês tanto poderão apresentar textos críticos da própria verve — como os nossos e o de Nilson Oliveira —, poderão estabelecer um diálogo ou discussão ou debate com nossos textos e/ou poderão apresentar textos de terceiros, que acaso queiram ver publicados no espaço de ruídobranco. Dentro disso, os colunistas desta revista, de todo modo, não abdicam do direito de selecionar os textos enviados, afinal de contas, temos um conselho editorial.

jamesson buarque

a nau sem porto

Juarroz, Llansol & Jabés

Nilson Oliveira









Como conceber um pensamento que não seja outro? [Jacques Hanssoun]

O pensamento-outro é um pensamento em línguas, uma mundialização tradutora de códigos, de sistemas e de constelações de signos que circulam no mundo.

[Abdelkebi Khatibi]

É estranho como alguns autores permanecem apartados da cena editorial brasileira, refugiados no limite da fronteira pela completa ausência de tradução ou, quando compartilham do idioma, ignorados por razões que escapam ao entendimento dos leitores, comentadores ou apreciadores da escrita literária. A literatura esta em continuo movimento, é inteiramente m-o-b-i-l-i, ela sempre move os seus laços, dentro ou fora do foco, dentro ou fora da fronteira. Os leitores, em geral, estão sempre diante de inquietações e provocações geradas pela escrita, pelo estilo, pelas renovações que o espaço literário não pára de gerar. Uma questão se abre. Mas toda questão verdadeira está aberta a um conjunto de questões [o conjunto é a realização dessa abertura que é o sentido da questão]. Daí sua força movediça, sua intensidade, seu valor. Mas agora, vemos que existe nela, mais profundidade, um desvio que desvia o questionamento de poder ser questão e de obter resposta. Esse desvio é o centro da questão profunda, uma quebra que move para muito longe, essa é a força da escrita literária. Essas escritas transitam sempre no limite, como a viagem de Ahab[1], está sempre por perfurar o limite das coisas, de um mar a outro, navegam o tempo todo, atravessam o labirinto da escrita alcançando sua outra margem. Nela, as escritas atravessam-se, num jogo incessante de possibilidades e pensamentos. Estão curvadas ao aberto do inominável, em uma jornada que não reconhece o caminho volta.

A PAIXÃO OBSCURA

Borges e Cioran tinham em comum a paixão por autores obscuros; estendiam seus radares para muito longe – além da fronteira, do cânone, do limite do acervo ocidental – para alcançar o inusitado de obras que, pela força, deslocavam-se como árvores sem raiz, no coração do desconhecido, por fora do lugar, do idioma, em cruzadas pela superfície do espaço literário. Cioran, debruçado em figuras que vão dos místicos (de toda ordem), passando por filósofos, escritores. Desenraizando uma genealogia do desconhecido. E Borges, atravessado no conhecimento alhures: árabe, nômade, imemorial. São dessas fontes que eles extraíram sua força, sua capacidade de trânsito, seja pelo limiar da filosofia, da literatura ou do que for. Saberes que, como num eterno retorno, fortaleceram o pensamento, a escritura, fazendo deles o que foram e são, pela potência de suas obras. Borges e Cioran: referências que tangenciaram saberes além da fronteira, evidências que nos empurram aos abismos da outra margem; margem cujos nomes se multiplicam em um sem número, em escritas que provocam a sede de cada leitor. Nessa esfera, Edmond Jabés, Maria Gabriela Llansol e Roberto Juarroz, surgem como figuras que de um certo modo já lemos ou ouvimos falar, mas que da totalidade da suas obras estamos, no espaço editorial brasileiro, apartados, envoltos por uma lacuna, cujos esses nomes, tal como outros, têm pouca penetração. Mas ainda assim, graças à ousadia de alguns, por vezes desponta no horizonte vestígios significativos, traduções ou ensaios, cercando as obras desses autores, evidenciando cada vez mais a força dessas Naus no espaço literário. O ensaio e a tradução de alguns poemas de Juarroz por Nonato Cardoso[2]; as traduções de Jabés feitas por Caio Meira[3] ; e o Livro de ensaios ‘sobre Llansol’, organizado por Lúcia Castello Branco[4], denotam perfeitamente isso, são como linhas invisíveis que, pelo seu vigor, atravessaram momentos essenciais dessas escritas, deixando ao leitor atento pistas para, na trilhas desse arquipélago, uma jornada mais distante.

O BILINGÜISMO ATIVO

A literatura é uma região sem muro, um não lugar, um fluxo de transito enlouquecido, onde as escritas se atravessam em línguas estranhas, o bilingüismo ativo. Comunicam-se pelo intenso das suas obras. O livro que hoje desponta do desconhecido vai cada vez mais, pela força da sua opacidade, sobrepujando a babel, enredando-se para o aberto de Alexandria ou para as estantes do desconhecido, em qualquer ponto remoto. Tangenciam por qualquer lugar, não descansam nunca. Atravessam o infinito das fileiras, ao lado Põe, Lautréamont, Musil, Celine, Kafka, Bataille, Thomas Bernhard, Blanchot e outros e mais outros. São os sonâmbulos da escritura, aqueles que rondaram a noite sem descanso, que ergueram suas obras com a substancia do eterno, com o liquido que vaza das artérias. Esses livros não têm destino, pertencem a ninguém, não reconhecem pátria nem fronteira, circulam o mudo e assombra os leitores, convoca-nos cada vez mais à travessia do inevitável, suas paginas estão sempre abertas.

AS VERTIGENS DO ARQUIPÉLAGO

I

Roberto Juarroz é um caso de convívio intenso com a escrita literária. Viajou, pesquisou, escreveu, traduziu, mergulhou ao centro das escrituras perfiladas por fora da raiz como em Heráclito, Mallarmé, René Char. Injetou na literatura ares de renovação, de força, de inusitado, em voltas com o pensamento, com o exílio, enredando-se para mais distante. Juarroz foi poeta de uma escrita peculiar, de um estilo que atravessou os alicerces do inominável e do possível, presente em todas as coisas e fora delas. Toda a sua obra consiste em um único tema: Poesia vertical[5], que se engendra em uma infinidade de números, como se através desse ciclo incessante perfilasse as bandas do infinito.

II

Maria Gabriela Llansol é dessas escritoras que agem silenciosas; sua movimentação é quase invisível, dela só vemos as irrupções, suas cintilações que jorram num lastro cada vez mais sólido, líquido, surpreendente; sua escrita se espraia em uma obra extensa e diversa que navega numa constante superação de si. O que começa em um livro apaga em outro ou atravessa seu limite edificando um plano; a obra vista em perspectiva que se estende além do limite da vista, em um mar de areia líquida que engole todo aquele que nela se lança, que seduz o leitor como um canto de seria, atrai para o centro da sua atmosfera. Seu movimento líquido revolve a não mais poder, escorre em uma jornada cujo curso ou destino é desconhecido.

III

Edmond Jabés é o poeta da travessia, do pensamento nômade, um pensamento encontrado nas margens, nas distâncias e nas questões silenciosas, um pensamento abolido das reminiscências, desenraizado do peso da identidade. Da escrita de Jabés cintilam os ventos de um pensamento-outro, pensamento que vaga pelo deserto da página branca, em um ciclo sagrado em torno do inexistente. Corre por suas veias a escritura, o exílio, o acontecimento. Esse é o investimento de Jabés, o combate pelas entranhas de um pensamento que se desloca, estando sempre aberto, sendo sempre outro. A escrita de Jabés age silenciosa e encontra no sujeito a decisão de não-ser; que consiste no desejo nômade de convocar o ausente, para tornar real sua presença, fora dela e do mundo; para presentificá-la em sua realidade de escritura. Seu lugar é o não-ligar. Esse é seu combate, sua matéria de fim e de começo, ofício de interminável busca.



[1] Moby Dick , Herman Melville: Francisco Alves, 1982

[2] Roberto Juarroz, Nonato Cardoso: revista Polichinello, nº 1, 2004 e nº 4, 2005.

[3] http://www.caiomeira.kit.net/escritos.htm

[4] Os absolutamente sós: Llansol - Lacan – Letra: Autêntica, 2000.

[5] Roberto Juarroz, Poesia Vertical I e II: Emecê, Buenos Aires, 2005

O LIVRO POR VIR

I Maria Gabriela Llansol

Há textos reais — trazem uma coroa na sua humildade.

Há textos moveis — trazem o desprendimento no seu

próprio ser. Trocam-se por imagens.

Há fio frios nas janelas, que as mantêm abertas.

Há alegrias indizíveis que nascem de anéis que enterramos

nas palavras, nos lagos, no alto das

montanhas.

Há certezas tão verdadeiras como incertezas.

Há lugares que já alcançamos sem nunca os ter habitado.

Há o êxodo que consome os tempos, um a um, como pétalas.

Há o insondável perfume claro — nesse lugar libidinal.

Há o sexo de ler

[Do livro: Inquérito Às quatro confidencias, Relógio D’Água. Lisboa 1996]

II Roberto Juarroz

Certas luzes apagadas

iluminam mais

que as luzes acesas.

Há lugares onde não é preciso

que algo esteja aceso para que ilumine.

Além disso a coisas

que clareiam melhor com as luzes apagadas,

como alguns extratos oblíquos do homem

e alguns ângulos que se instalam furtivamente

nos espaços mais abertos

E existe também uma intempérie da luz,

uma zona despojada e imparcial

onde não há diferença

entre luzes acesas

e as luzes apagadas.

Tradução: Nonato Cardoso.

[Do Livro Poesia vertical 1, Emecé, Buenos Aires. 2005]

III Edmond Jabés

I

Uma noite para levar

um outro sol.

II

O cego conheceria

a doçura primitiva

de ser inteiramente noite?

III

"Um sol está em nós — dizia um

sábio — A manhã o ignora e, portanto, fez

de minha vida um manhã perpétua."

IV

"Não há — dizia ainda o

sábio — transparência que, uma vez, não tenha

sido desmascarada."

Tradução: Caio Meira

[La mémoire et la main, 1974-1989]

Nilson Oliveira, editor da revista Polichinello, autor de

A Outra Morte de Haroldo Maranhão (edições IAP 2006)

nilson_olliveira@yahoo.com.br

C-dur


Música Eletroacústica n° 3


“Música Eletroacústica n° 3” salta de Beethoven, Barber, Bach por Glenn Gould, Ligeti, Strauss, minha própria música e Mahler, muito Mahler. Tomando tudo isso em miscelânea, temos a peça, que foi composta febrilmente (em menos de uma hora) para a Bienal de Música do Mato Grosso, onde estreou em 2004. A peça está disponível para download no site Sussurro da UFRJ e saiu em CD na Revista Hodie, vol. 5, n° 1. Um dos motores da criação febril foi que sempre fiquei fascinado pela maneira como Mahler distorce o Adagietto no último movimento de sua Quinta Sinfonia e, claro, meu fascínio pela Sinfonia de Berio é sem limites. Não há nada que eu abomine mais do que ter que falar das minhas peças.





MusicaEletroacN3.m...





Paulo Guicheney

Paulo Guicheney é compositor. Quando criança teve de optar entre ABBA e Trio Parada Dura. Optou por ABBA, mas depois descobriu que a coisa pegava mesmo era com Beethoven. Estudou piano e composição na UFG, onde também fez mestrado em música eletroacústica. Atualmente leciona composição na UNB.
E-mail: pauloguicheney@hotmail.com




página p.


Sobre Gerardo Mello Mourão, sua morte e a experiência e a necessidade de ler sua obra


Entre os mais próximos, um punhado de pessoas das mais legais, e entre os relativamente próximos, uma pinha de pessoas sobre as quais um juízo mais preciso sempre está nas asas da lonjura, sou conhecido como aquele que estuda a obra de Gerardo Mello Mourão. Tanto é que, para uns — segundo relatos dignos de um telefonema ou de um email —, quando souberam da morte do poeta no dia 9 de março, a primeira coisa em que pensaram foi em mim — ainda que eu não seja exatamente uma coisa. Mas não foi isso que eles quiseram dizer, porque me são bastante queridos. Eu estava na Cataluña — ou em Catalão, como alguns querem ou insistem tanto —, na hospitalidade da casa de meu amigo Wesley Peres, quando soube da morte de meu poeta. No dia seguinte, movido pela consternação, escrevi “Nênia a Gerardo e convite” (disponível aqui), uma carta ao poeta e editor do Jornal de Poesia, Soares Feitosa. Na ocasião de minha estadia naquele pedaço de Goiás com cara de Minas Gerais, quase sem cerrado e com ladeiras para todos os lados, Wesley Peres e eu lemos trechos de Invenção do mar entre outros poemas e garrafas de vinho chileno. A experiência teve como pauta o princípio da diluição. Tecnicamente falando, há dois tipos de diluição: uma pop e outra, digamos, cult — por falta de palavra melhor. Pela primeira, uma série de saberes e de instrumentos de composição estética — lembrem-se de que estou falando de poesia — são absorvidos ao ponto da nulidade historial relativa ao passado, a uma tradição ou a uma fonte de influência cultural (de filosofia, arte, ciência ou inteligência em geral) para serem convertidos em referências comerciais imediatas. Nada contra isso, diga-se de passagem, ou de dentro mesmo. Aqueles que conseguem reconstituir as diluições da cultura pop, como meus amigos Patrícia Martins e Wilton Cardoso — e eu mesmo, porque também sou meu amigo —, conseguem apreciar uma dada peça deste universo e atingir um prazer estético em seus próprios princípios. Como diz o Wilton, em seu Tratactus marginale — fundamentado em Deleuze e Guattari —, tudo se transforma em produto, bem-de-consumo, quando sugado pelo olho do capitalismo e devolvido para as sociedades. Em tempo: o olho do capitalismo, sua máquina de processamento comercial, este armazém de gente irrefreável, converte tudo, absolutamente tudo, em mercadoria. A diluição cult — … — é aquela cuja série de saberes e de instrumentos de composição estética — os mesmos da diluição pop — são absorvidos a fim de evitar a nulidade historial, aliás, a fim de enfatizar sua historicidade, quer dizer, desvelá-la — logo que tantas vezes intrínseca —, ainda que tal diluição também termine sendo sugada e regurgitada pelo olho do capitalismo como mercadoria. Esta a experiência de leitura da poesia de Gerardo Mello Mourão: a tradição (clássica, medieval, nordestina e moderna) e a contemporaneidade suprassumidas — para usar as palavras do Wesley. Uma experiência de recepção estética dessa natureza mantém relação direta com a noção de conhecimento enciclopédico. Conhecer a poesia de Gerardo Mello Mourão é equivalente a ler uma enciclopédia. Quando digo uma enciclopédia, digo um compêndio de humanidade que não somente passa pela literatura, filosofia, religião, política, antropologia, história, sociologia etc., mas também pelo folclore, pela experiência cotidiana e inevitável de respirar e pela grande lição de meu poeta: a vitalidade da morte. A morte é vital porque não se esquece de acontecer, nem para seus sobreviventes de noventa anos, com a experimentação de um século e do atlas nas costas, como foi o caso de meu poeta. Gerardo Mello Mourão morreu. Sócrates também morreu. Quiseram, inclusive, matar a Deus. Mas aí o buraco é mais embaixo e não vem ao caso, embora eu o tenha citado. Da maneira que escrevi ao cumpádi Soares Feitosa, farei aqui também um convite — somente o convite porque não estou mais no espírito da nênia. Convoco a todos para conhecer a poesia deste cantor da genealogia americana, como a ele se referiram Ezra Pound, Octavio Paz, Albert Camus, Robert Graves, Michel Deguy e Jorge Luís Borges. É caros e caras, os próprios. Sugiro que comecem mais para cá no tempo, com aquele livro que eu julgo a invenção de Gerardo Mello Mourão para poesia brasileira, quiçá para a ocidental: Invenção do mar, prêmio Jabuti de 1998, e livro poema de 5.065 versos que nos mostra como é possível uma epopéia nos dias atuais, a despeito da filistia pseudo-pejada de certa banda crítica da literatura ocidental. Mas do que Os peãs — livro comentado por aqueles senhores acima citados, e livro que para Drummond deveria estar em todas as escolas brasileiras, para que nele nosso povo se aprendesse e se conhecesse —, Invenção do mar consegue cantar, como uma interpretação possível de brasilidade — ombro a ombro com Os sertões, de Euclides, e com O grande sertão: veredas, de Rosa — o nascimento de nossa condição antropossocial no mundo. Depois convido a todos para irem a Cânon e fuga — livro de poemas cujos versos foram escritos sobre pautas de música erudita clássica e contemporânea, da música popular brasileira e da música medieval dos trovadores galegos-portugueses e dos provençais. Em seguida vocês poderiam ir ao último livro de poemas, Alguma partitura, onde há o mais belo e inteligente poema longo-breve da poesia brasileira: “Suíte do couro”. Obviamente, parte de vocês discordarão de mim, mas reconhecerão que “Suíte do couro” não deve aos melhores, quer dizer, ombreia-se com “O poema sujo”, de Gullar, “O cão sem plumas”, de Cabral, “A máquina do mundo”, de Drummond, com “O navio negreiro”, de Castro Alves, e com “A tempestade”, de Gonçalves Dias. Aliás, desses, apenas três são os principais mestres do poema longo e do longo-breve da literatura brasileira: Gerardo Mello Mourão, Gonçalves Dias e João Cabral. Finalmente, vão todos a Os peãs. Já estarão bastante dispostos e preparados para tanto. Caso contrário, façam como quiser. E fiquem sabendo que há também O Cabo das Tormentas, Três pavanas e Susana – 3: elegia e inventário, além do romance considerado em enquête da Folha de São Paulo, Le Monde, The New York Times e por professores-críticos da Oxford e da Sorbonne como um dos onze melhores do mundo e um dos dez melhores em língua portuguesa, O valete de espadas — infelizmente, sem reedição no Brasil. Mas os garimpeiros de sebos, como Wesley Peres, poderão, de repente, encontrar um exemplar. Também infelizmente, o normal é encontrar, nos sebos, exemplares em espanhol, francês, inglês e tcheco. Quando se encontra em português, é lusitano. Em português brasileiro, nunca tive notícia. Eu tenho um — também em português lusitano —, que me foi dado pelo próprio poeta, mas o empréstimo que dele fiz deverá durar longa data. Também em prosa, vocês poderão ir ao livro de ensaios Invenção do saber e à hagiologia O bêbado de Deus, sobre a vida e os feitos de São Gerardo Majella, o irreverente santo que dá nome ao poeta. (Mello Mourão conta que São Gerardo, certa vez, bêbado, para variar, e proibido de fazer milagres pela Igreja, suspendeu por levitação um suicida que pulou de uma ponte; em seguida pediu às pessoas na rua que chamasse o bispo, depois perguntou a este, em público, se deveria ou não continuar o milagre.) Assim, se todos aceitarem meu convite, poderão conhecer aquele poeta que professores-críticos e lingüistas europeus, reunidos em 1998 na Sorbonne, colocaram como um dos três pilares da poesia em língua portuguesa, do lado de Camões e de Pessoa. O poeta que Drummond, Hélio Pelegrino e Nelson Rodrigues chamaram de nosso Dante; o poeta que Carpeaux insistiu em colocar na estirpe dos grandes; poeta que ficou entre os três finalistas a Nobel de literatura em 1979; e poeta que a Guilda Órfica — sociedade espanhola remanescente do renascimento (e isto não é um trocadilho) — colocou no primeiro degrau do pódio daqueles que escreveram em língua ocidental durante o século XX. Um poeta dotado desta voz:

Agora é noite:

por suas alcovas, camarinhas, corredores

cantamos o miolo da noite

tropeçamos

nos féretros da luz

e no ventre das trevas:

e nas deusas sem ventre: quem

saberia de um deus?

Pois,

perdera-se o deus da véspera

o derradeiro:

e na mudez da luz

na escuridão do som

cresce

reina

o silêncio

e do silêncio

suspeitas

vozes

onde donde alaonde

nunca antes se formara voz

— na garganta dos infantes —

uma

virgem

viaja a um gesto um ventre

na garganta dos infantes

e salta à boca do silêncio

e estremecem uns seios:

partem-se as rochas

raízes rompem o chão

dançam as folhas em suas copas

mas sepulcros não se abrem e na boca

dos infantes

o grito cresce em vão:

no céu-da-boca um súbito sabor

sugestão de sumos e de polpas

desse mel longínquo agriamargo mel

de sal e mel das videiras do vale:

— eras tu naquele tempo.

Que foi registrada em seu último poema, “O nome de Deus”, infelizmente não completado (disponível aqui), somente pode ser voz de uma raça à parte. Sobre isso, como o próprio Gerardo Mello Mourão cantou um dia: “há uma raça dos homens/ e uma raça dos deuses/ e a raça dos que tocam/ pelos bosques dos homens/ a música dos deuses”, esta é a raça de Mello Mourão: Poeta. Porque planetário, como disse sobre ele Tristão de Athayde, e humanista convicto, como disse o líder negro Abdias Nascimento, meu poeta é também o cantor de todas as raças e das mulheres, como me implica a concluir estas observações — mais longas do que as alhures e por motivos óbvios — os seguintes versos de Invenção do mar,que é uma boa maneira de calar-me:

E entre os pecados e virtudes heróicas

germinava a sabedoria das gentes:

o branco ia aprender, poeta, na escola do negro

e o negro ia aprender na escola do índio

e o índio ia aprender nas escola do branco

e a terra começava a produzir

seus varões valentes, justos, sábios

e suas mulheres de ancas torneadas a sopro de flauta,

o andar ensinado pelas ondas do mar,

a fala aprendida ao murmúrio das águas

e à doçura das brisas — e a cútis

entre o lírio e a canela, entre aurora e crepúsculo




Jamesson Buarque

jamesson buarque é poeta, professor, crítico literário e doutorando em estudos literários na ufg. publicou os delírios e novíssimo testamento. sente-se muito mais antigo do que sua idade tri-trina cristã. além de poesia e magistério, gosta de vinho, cachaça mineira, desenho animado, cinema, política, bíblia e fenomenologia, tudo misturado. importante: é sobre essa mistura sua coluna.
E-mail: jamessonbuarque@yahoo.com.br




Neuropop


CANÇÃO & POEMA


Por mais que um poema evoque a fala ou o canto (ou ambos), por mais rítmico, melódico ou vocal que seja, trata-se de uma evocação apenas. Chamamento em silêncio. O poema se desenrola num mar de silêncio à procura do canto, da fala, do ruído. As partículas fonéticas ecoam umas nas outras, se chocam e se quebram, esmigalham, aceleram, diminuem, andam aos pares, concentram-se, precipitam-se, agitam-se, evolam-se. Tudo em silêncio, no silêncio, nos poros sonoros do poema impregnados do mar de silêncio da página.

Por mais que a canção tenda ao sussurro, à pausa e ao silêncio, por mais que se cale e os instrumentos rarefaçam a música, ela se processará como linha de voz numa ambiência instrumental. Sempre se preencherá de sons efetivos. Sua mídia é sonora por natureza. Pleno de som, mesmo evocando o silêncio.

***

O poema soando pelos poros do silêncio da página é o desejo de som em ato, potência sonora. O que faz a riqueza vocal do poema são as miríades de possibilidades sonoras que ele dispara de seu silêncio congênito. O poema provoca a questão: o que poderia ser o texto enquanto voz, enquanto vozes, enquanto fábrica de fala musicada? Eis seu infinito dilema com o silêncio. É nesta questão, é no permanente adiamento de sua resposta que fervilha a vida fonética da escrita poética. E cada vez que se declama um poema é como se muitas outras possibilidades sonoras se fechassem (muitas vozes se calassem). No poema a música da fala não existe na ação de falar, mas no ato de calar, deixando o texto cantar na mente, no corpo silente do leitor. Iaras de mil árias de silêncio me encantam: cio do som.

***

A letra da canção é um esboço da poesia que o canto vai efetuar. Depois de gravada, a canção pode se tornar tão rica quanto o poema, em termos de margem atingida. A canção também joga com o silêncio, mas não se encontra mergulhada nele como o poema e sim entrecortada por ele. Silêncio intermitente. A canção vibra no ouvinte. Miríades de atmosferas sonoras proliferam pelo seu corpo e chegam a contaminar a língua. Ele ouve e canta junto, dança, se encanta. A canção é magnética, performática. Prazer sonoro.

***

A canção dispara o corpo das pessoas. Uma pessoa se torna em muitas, em massa corporal sacudida pelo som que libera nela o que há de multidão – ínfimo infinito. E as pessoas juntas se tornam massa, mar em ondas moduladas (e modulantes) enquanto o canto as atravessa. A canção é performática, seu magnetismo não é apenas de ordem auditiva, mas corporal, gestual, teatral, é da ordem da dança e do coro coletivos, transe do corpo contaminado pelo ouvido. A canção é som, mas também performance, postura e pose. Ela gesticula, contorce e contagia o corpo que se torna um pleno de som. Corpo eletrificado de som. Diferente da música erudita, do balé e da ópera, feitas para ouvir e ver, na canção o público canta e dança junto, seja no show, em casa, na rua, no bar, na boate, no automóvel... O artista é um mestre de cerimônias, um pajé magnético que incita as massas a mexerem sincronicamente seus corpos e línguas. O som da canção desprende as pessoas de suas personas e as lança na multidão (mesmo que sua audição seja solitária), como se estivessem drogadas, transe, trança interminável de fluxos desgarrados. O corpo do artista, o corpo sonoro da canção e o corpo das pessoas disparam-se mutuamente e os corpos se precipitam em massas que se misturam continuamente. Massas emprenham massas, elétricas, dementes, em movimentos ondulatórios. E o capital ama estes movimentos e entra como fluxo a mais, como corpo massivo a mais, desejando se propagar por todos os outros corpos e modulá-los: ele dança junto e quer guiar a dança, dar o compasso. É uma dança monstruosa e fabulosa das massas, comparável apenas ao transe proporcionado pelos espetáculos esportivos populares.

Para se saber do pulsar da canção é preciso entendê-la como corpo e explorar sua interação com outros corpos em estado de massa, de amorfia fluida, magnetizados pelo som. São atmosferas que se imbricam estes vários corpos heterogêneos, digladiando-se e comungando-se ao mesmo tempo e no mesmo movimento. A performance dos corpos não é um elemento exterior à canção, mas se imbrica no feixe que a constitui enquanto coisa estética.

A canção pop é um chacoalhar arrítmico e concomitante de corpos plurais. É um feixe feroz de massas diversas. Turbilhão sonoro.

Canção, corpo, contorção.



(Para ler mais, clique aqui).



Bônus








Mieloma de Ocasião


FIÓDOR

Em Operação Shylock: Uma Confissão, uma das obras-primas do escritor norte-americano Philip Roth, há uma passagem maravilhosa em que o autor, ali também personagem e narrador do romance, conversa com o escritor israelense Aaron Appelfeld sobre o que ele, Roth, considera “a maior frase de Dostoiévski”. Transcrevo a passagem na íntegra:

“Você se lembra, em Crime e Castigo, quando a irmã de Raskólnikov, Dúnia, é atraída ao apartamento de Svidrigáilov? Ele a tranca consigo, põe a chave no bolso e, então, como uma serpente, parte para seduzi-la, à força se necessário. Mas, para seu espanto, no momento em que a tem acuada, a linda e bem-educada Dúnia tira um revólver da bolsa e aponta para o coração dele. A maior frase de Dostoiévski vem quando Svidrigáilov vê o revólver.”

“Diga”, disse Aaron.

“”Isso, disse Svidrigáilov, muda tudo.’”

Os romances de Fiódor Dostoiévski são como bombas de efeito retardado, pelo menos para mim. Eu me lembro de quando lia Os Demônios pela primeira vez. Estava ainda no começo do volume e um amigo me disse: “A passagem com a confissão de Stavroguin é uma das coisas mais horripilantes que já li. Espere só até chegar lá.” De fato, quando li essa passagem, lembro-me de ter ficado bastante impressionado, mas não a ponto de achar aquilo uma das “coisas mais horripilantes” em que já tivesse posto os olhos. No entanto, semanas e meses após terminar a leitura, mesmo já tendo lido outros livros desde então, aquela e outras passagens de Os Demônios ocupavam a minha cabeça e os meus pesadelos. E o crime de Stavroguin, aquele crime especificamente que ele “confessa” a certa altura, passou, de fato, a configurar em minha memória como uma das coisas mais terríveis e profundissimamente humanas (na pior acepção possível do termo “humanas”) de que tomei conhecimento em toda a minha vida como leitor.

Sempre que termino de ler ou reler um romance de Dostoiévski, faço como Svidrigáilov e digo: “Isso muda tudo”. Porque nada fica no lugar. O demônio Fiódor captura instantes da mais negra humanidade, provando com todas as letras e frases, por meio de seu estilo pedregoso, rascante e ríspido, que, desgraçadamente, o que melhor define o ser humano é mesmo a sua enorme capacidade de perpetrar a violência contra os outros e contra si.

Cada assassinato em cada livro de Dostoiévski é, na verdade, o assassinato da humanidade inteira. Cada estupro é o estupro da humanidade inteira. Cada grito de dor ou de desespero é o grito de dor ou de desespero da humanidade inteira. Muito mais do que Henry Miller, aquele bêbado chato, é o demônio Fiódor o nosso, ao mesmo tempo, redentor e exorcista. É de Fiódor a cusparada certeira em tudo o que há, inclusive na própria arte e até mesmo nas fuças de Deus.

Apesar de toda a condenação do niilismo perpetrada em seus livros, especialmente em Os Demônios, Dostoiévski talvez seja, paradoxalmente, o único “atleta niilista de Cristo” da Literatura. Conciliando o irreconciliável, ele nos mostra que tanto Deus quanto o Nada se encontram no Homem, e o Homem, invariavelmente, de forma literal ou figurada, sempre acaba metendo um tiro no próprio ânus.

A obra do autor russo encerra vários paradoxos, contradições incríveis. Ainda que, do ponto de vista dele, se Deus não existisse tudo seria possível, o que seus romances nos mostram é que, independentemente da existência ou não do Papai Pederasta do Céu, tudo é possível.

O que eu estranhamente sinto ao ler esses livros maravilhosos é que Fiódor desempenha, ao mesmo tempo, os papéis de Jesus e dos caras que condenaram e pregaram Jesus na cruz. Não é que ele queira salvar ou condenar ninguém. Está mais para o fato de que ele professe uma fé tornada inviável justamente pelo que ele próprio narra, explicita, escancara.

Ressalve-se, contudo, que este é um modo (o meu, é claro) de encarar a coisa. Um crente certamente entenderá pelo outro lado, salvaguardando o Pai, o Filho e a joça do Espírito Santo, entendendo as narrativas do escritor russo quase como autos-de-fé. Mas mesmo um crente, por outro lado, ao terminar de ler qualquer um dos romances de Fiódor Dostoiévski, poderia também exprimir a mesma coisa que o espantado Svidrigáilov diante de Dúnia e sua arma: “Isso muda tudo”.


Observação: se alguns dos nomes de personagens dostoievskianos estiverem erroneamente grafados, peço desculpas. Não estou com nenhum dos livros do autor à mão para confirmar quaisquer detalhes.




André de Leones

André de Leones nasceu em Goiânia no ano da desgraça do nosso senhor eu-sei-que-você-não-existe 1980. É autor do romance "Hoje está um dia morto" (ed. Record), vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2005 e na época ele achou que isso significava alguma coisa. Venceu também, com um livro de contos de título engraçado nunca publicado, o Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, mas esta piada já é velha. Mantém o blog http://canissapiens.blogspot.com, cheio de piadas mais novas.
E-mail: alleones@gmail.com




Vaca de Nariz Sutil


Jean Dubuffet



Nesta edição de A Vaca de Nariz Sutil, entrevista* com Vicente Franz Cecim, para mim, um dos grandes prosemadores de nossa literatura. Boa parte da entrevista gira em torno da limitrofia de seus textos quanto ao gênero. Ele diz que o que faz é Escritura. Confiram!

* Entrevista realizada em abril de 2006, por Rita de Cácia, e revista para edição em março de 2007.

Vicente Franz Cecim, escritor e jornalista, autor de Viagem a Andara oO livro invisível. O sereno é o sexto livro visível de Andara, que já teve 14 de seus livros publicados. A Bertrand Brasil acaba editar a primeira edição nacional de Ó Serdespanto, lançado em Portugal em 2001 (Íman, Lisboa). E-mail: andara@nautilus.com.br

Rita de Cácia é professora de literatura e escritora, em Belém do Pará.


ENTREVISTA

ESPANTO LÍRICO

VICENTE FRANZ CECIM

Andara não é Literatura: é pressentimento. VFC

Conversa com Rita de Cácia sobre a construção da narrativa lírica em O sereno, sexto livro visível de Viagem a Andara oO livro invisível.

Para Nazareth Bessa, que passeia descalça nos meus sonhos.

Rita de Cácia:

As narrativas tradicionais, pelo menos até o século XIX são uma seqüência de fatos bem articulados (enredados) compondo uma estória que o leitor, ao ler, é capaz de contar. As suas narrativas não são narráveis, possíveis de serem contadas. Quais são os recursos nelas usados que destroem a narratividade? Será o lirismo?

Vicente Franz Cecim: Se há recursos, no sentido de técnicas, não sei exatamente quais sejam. Detesto as técnicas literárias: elas matam a Literatura e o Autor, juntos. É muito triste isso. Escrever é um estado de sábia inocência: lançamos uma Semente na página branca e a vemos crescer, até o Livro, após o estágio de Arbusto, se tornar Árvore e, mais ainda, em seguida, plenamente uma Floresta. Então, estará pronto, será por si mesmo e em-si. E poderá ir para o leitor. Embora jamais esteja concluído: um livro fecundo é semeadura eterna. No meu caso, essas são as fases a atravessarmos, unidos, eu e cada livro visível de Andara. Durante o ato de escrever, apenas zelo por este Jardim de Palavras, que às vezes têm sede de outras Fontes, e fomes de estranhas coisas: lhe dou o que tenho em mim, devemos dar aos livros o que temos em nós, e nos abrimos para a vida, eu e eles, para que as flores da escritura aspirem esses dissimulados perfumes sonâmbulos que estão no ar e ao nosso redor. Seria isso uma Embriaguês Lírica? Em Andara, meus personagens, que eu prefiro chamar de seres-neblinas, vivem bebendo uma bebida amarga e cada vez que dela bebem, dizem: - Oniá. É um ritual secreto, nem a mim é permitido penetrar no Círculo em que eles, esses seres de névoa, o celebram. Eu, quando Andara se escreve através de mim, eu simplesmente me entrego. Então, de um modo muito semelhante, só quando ele, ou Ele: o Livro, que se almeja em tantos pequenos livrinhos, nunca realizado, está inconclusamente concluído, vou também vê-lo com olhos de leitor, e sou e me torno mais um leitor que vai descobri-lo, porque nunca o leu. É assim. Essa entrega total seria um Transe Lírico? Sei que algumas perguntas que me serão feitas aqui não estarão ao alcance de uma resposta plena, talvez aqui e ali surja uma resposta interessante minha, mas o que sabemos nós das Perguntas que podem existir para além do humano. Nada. E se não sabemos as Perguntas, não saberemos as Respostas. Esse estado de consciente limitação e ignorância é um estado necessário para o surgimento de uma Inocência Lírica e de uma Ignorância Lírica? Porque me vejo menos como um Criador, e mais como um Instrumento de algo que quer se manifestar através de mim – uma súbita aragem de Inspiração Lírica? Esse Algo, depois de manifesto, ao surgir pela primeira vez em 1979, quase 27 anos atrás, quis se chamar Andara, essa Andara, região-metáfora da vida, transfiguração originária da Amazônia, que continua se manifestando pelos seus livros: Ela é Fonte, e vai fluindo do Invisível ao Visível. Sua Via essencial é o Imaginário. Digo melhor: é um Estado de Imaginário na mais absoluta liberdade alcançável. Veja, eu: se antes de escrever souber como uma possível história começa, avança e se encerra – não vou mais escrever a história, não há mais nada a descobrir. E Literatura é Descoberta ou não é nada. Sobre o que foi perguntado acima: quero dizer que não destruo a história, a narração: penso que o que se dá é uma Transferência e uma Inversão, que é assim: em Andara, o principal se torna a linguagem narrando, o secundário passa a ser a história narrada. Não gosto de falar da mesma coisa mais de uma vez: as primeiras páginas de Os animais da terra, de 1980, o segundo livro visível de Andara, já falaram incisivamente sobre isso e anteciparam uma resposta à pergunta. Será encontrada em sua origem, lá.

Rita de Cácia:

Por que razão um escritor destrói o enredo. Há consciência neste ofício?

Vicente Franz Cecim: Não sei porque um escritor destruiria um enredo. Você quer dizer: voluntariamente? O homem é um contador de histórias, pelo menos aqui na Amazônia ainda é, lhe dêem um fogo aceso na Noite e ele imediatamente passará a contar histórias, ao redor desse fogo, até o amanhecer e às cinzas, e conta para outros homens, ou seja só para ele mesmo dividido em dois – um que se conta e um que se ouve. Se vê isso claramente em O sereno, o sexto livro visível de Andara. Nesses livros de Andara, uma história está lá, sempre está Lá – aliás, muitas histórias: porque em Andara os ventos sempre estão soprando, contando histórias – os ventos da voz humana e o Vento dispersado em vários ventos, vindos de distantes, remotos lugares, de outras dimensões, do Céu e da Terra e do Lugar Não-Lugar - quando não está soprando, mesmo, é de dentro de nós, e esses ventos-Vento trazem também suas histórias ou, com freqüência, só os fragmentos de uma história. Em Andara se dá uma rarefação da história contada, a ponto dela poder ser resumida com bem poucas, só algumas palavras. Mas uma história contada fora da sua linguagem, da linguagem que a criou, não serve mais para nada. Em Andara, a história subjacente à escritura que a conta é o que Ilumina essa Escritura, que, em manifesta gratidão, extrai fulgurações verbais da história sendo contada – porque a Linguagem quer, em Andara, sempre, ser um Ser vivo, ao longo de todo o livro e em qualquer um dos seus livros que se vê. Enquanto se lê oO livro invisível, que não se vê.

Rita de Cácia:

Sempre que alguém escreve cria algo? Cria o sonho? Há um motivo? Esse motivo é o sonho?

Vicente Franz Cecim: Creio que nós e tudo o que nos cerca, envolve, complementa, a Água, o Fogo, a Terra, o Ar e a Mente Humana e as Galáxias imensas e as mínimas formigas, e o pó, e as estrelas, e e e e - todos somos elementos de um Sonho – de um Mesmo e Único Sonho: o Sonho de Existência. Sonhamos todos os nossos gestos, os nossos medos, as nossas alegrias. E nos sonhamos uns aos outros. E, tudo isso, quer estejamos despertos, sob a Lua Branca, nos dias, no que chamamos estado de vigília, ou adormecidos, delirando sob a Lua Amarela, nas noites, estado em que o sonhador está imerso – e ainda e sempre aprisionado em outra dimensão da vigília. O Oriente entendeu isso, antes, que não sei até que ponto depois Freud entenderia. Só nos sonos-sem-sonhos estamos libertos da nossa obsessiva vigilância – que não é Atenção, um estado de superior, Transparência do ser para consigo mesmo e em relação aos outros seres – e, então, parece que, para-aquém das Aparências – isso que Husserl estudou entre aspas como Fenomenologia e os Vedas e Buda chamaram de

Flemish - Joachim Patinir (1480-1525)

Maya – enfim retornados ao Uno original – e nos reabastecendo de Sagrado? Tudo indica que, por essa re-união, sem a intervenção do temerosozinho eu-individual: - Sim. Mas esta é uma resposta dAquilo que eu chamo, em, digamos, trans-mim mesmo, de o umanoH. Uma descoberta-admirativa que eu me fiz de uma in/existência liberta, libertável do Homem & do Ente & progressivamente também do Ser, in-existência essa que, já sem necessidades de escolhas e limites, aceita e se inclui o ser e o não-ser. – Mas disso, dessa dimensão, desse umanoh, um dia um novo livro de Andara talvez volte a falar. Aqui, agora estamos somente tratando desse estado onírico de todas as coisas visíveis, e nos indagando: por que seria diferente quando estamos criando alguma coisa, sobretudo criando qualquer forma de Arte? Escritores ruins, sabe quais são? Não são, certamente, os líricos. São aqueles que não sabem ou fingem ignorar que são homens-de-sonhos vivendo uma vida-de-sonho, e então contam a vida com palavras que a levam superficialmente a sério, deformando a realidade sonhadora e lúdica em realidade mimetizada reduzida à sua Aparência. - Onde não há o Sonho, não há o Humano. Não duvido jamais disso.

Rita de Cácia:

Há algum escritor que exerce uma técnica parecida com a sua? Quem é ele?

Vicente Franz Cecim: Esta pergunta é interessante, porque vai me permitir fazer novamente, aqui, uma revelação intrigante: - Sabe por que eu escrevo? Eu escrevo para ler os livros que gostaria que algum escritor escrevesse para mim. Eu preciso desse Livro, e como ele não existe, escrevo Viagem a Andara oO livro invisível. Escrevo para mim mesmo? Sim. O que vem depois, a edição, leitores, a crítica – tudo é decorrência. Os autores, para permanecermos, aqui, só no que identificamos como Ficção, que eu amo, são os Originais – não é possível escrever como eles. E justamente porque tenho Amizade por suas originalidades, devo preservar suas originalidades. Então, só me resta escrever com a minha possível originalidade. Eis a maior verdade que um homem pode enunciar: - Quanto mais nos-somos, mais diferente ficamos dos outros – até atingir o Profundo, que é a nossa Originalidade individual. Outros que seguem o mesmo caminho, se diferenciando, se achando em sua Originalidade – também estão descendo ao fundo de si. E é aí, nesse ponto em que somos os mais diferentes uns dos outros, nesse Fundo do Profundo - onde estamos enfim unidos à Origem de cada um – que nós nos encontramos. Não é possível acharmos o outro enquanto não sabemos sequer quem somos. Se diferenciar para se assemelhar, se unir. Foi o que terão feito alguns daqueles que admiro e amo: Kafka, Beckett, Guimarães Rosa, Rulfo, Bruno Schulz, Jean Giono, Proust, Gyula Krúdy, Gombrowicz, Céline, Musil, não são muitos assim, mas ainda assim são tantos, embora ainda sendo tão poucos. E recuando no tempo há Dostoievski, Tolstoi, Melville, Hawthorne, Dickens, Swift, Cervantes. Conrad, Baltazar Gracián.

Rita de Cácia:

É possível escrever obras criativas e ser um escritor conhecido pelo grande público? Tomando por referência O sereno, ele responde a essa pergunta?

Vicente Franz Cecim: Se o chamado grande público for criativo, digo: criador – sim. Mas vivemos num tempo em que a qualidade é o pequeno, e grande só a quantidade - ou sempre foi assim? Há um abismo entre o escritor criativo e o ledor-só-por-ler-sei-lá-o-quê. Uma das funções da literatura seja atravessar a seta em direção ao calcanhar Vulnerável de qualquer leitor, generosamente. Mas não depende só dela.

Rita de Cácia:

O conjunto de suas obras forma um todo lógico? Cada obra trata de uma questão diferente e é independente da outra? O lirismo é a teia que irmana, que dá as mãos de uma obra à outra?

Vicente Franz Cecim: Há uma Voz única, atravessando as várias vozes que sopram e falam e murmuram ou silenciam em Andara, é o que unifica todos os livros visíveis de Andara – esses livros que eu escrevo. Essas vozes vão, sem dúvida, se tecendo e des-tecendo, umas às outras e umas nas outras, porque não há sempre uma concordância entre elas, entre as pequenas vozes – embora a grande, a Única, pareça saber o que diz, ou queira dizer. Seja uma Grande Mãe, e as vozes pequenas de Andara, seus filhos. Então se forma, sim, uma Teia. Tecida pela mesma Voz-vozes. Dessas vozes se faz Andara, assim: Viagem a Andara oO livro invisível - o não-livro, porque não é escrito – faz para ele convergirem os livros visíveis de Andara – que são os que se escrevem através de mim. Andara, o invisível, é literatura fantasma: não existe de se tocar. Mas, se quiser, você pode ler os livros que, escritos e ambientados em Andara, vão criando a Andara não-escrita, como, ainda, de algum modo, literatura fantástica. E literatura fantástica é literatura lírica? Então, como Andara é toda igual a si mesma, contendo todas as suas partes em si – por qualquer livro que você penetre, penetrou em Andara. Isso independe da ordem em que os livros foram escritos, editados, ou lidos. Lendo um livro escrito, ou visível, de Andara – você sempre estará lendo, ao mesmo tempo, mesmo que não saiba, que não se dê conta disso, a Viagem a Andara. Não sei o que é lógico, talvez nem creio em alguma coisa como lógica, porque para onde me volto só vejo - através de uma aparência, talvez lógica para os outros - o sonho de que tudo é feito. Será que há um sonho lógico, possível de ser sonhado? Onde os livros de Andara se dão a mão? Onde se fazem e se sabem de sonho. - Uma Teia Sonhada? Sim, é bonito isso, é possível. Porque nos suscita a pergunta: - E onde a grande Aranha que a teceu, onde a grande Mãe? Na verdade, ler Andara pode ser ler somente qualquer pedacinho de Andara – se você fizer isso, já estará perdido, contaminado, caiu na armadilha – mas não é uma armadilha que oprime, é a Armadilha que conduz à libertação dos sonhos lógicos e das aparências do real por fora de nós – libertação dele mesmo, do lógico – o lógico é sempre um excesso – impede o retorno ao Homo Ludens que temos em nós. Todos, o adormecido em nós.

Rita de Cácia:

Como é o seu processo de criação? Que grau de consciência e inconsciência existe nele?

Vicente Franz Cecim: Consciência e inconsciência são camadas de uma coisa só – nuances do Ser se manifestando no Ente. – Oh, não voltemos a falar do umanoH, fiquemos só nestes limites. – Então, se eu sou o Criador, então eu estou provavelmente todo o tempo consciente. Mas se eu for somente o Instrumento para que uma criação se realize através de mim, então eu deveria estar em transe, ou inconsciente — não parece razoável ver as coisas assim? Mas no meu caso é um Transe em que inconsciente e consciente se enlaçam, se tornam uma coisa só. E eu me torno essa coisa só, toda unida a si mesma. Parece um estado xamânico – você não quer ler a descrição que Mircea Eliade — o amigo de Cioran — faz disso? Estou em mim, e não estou. Estou Lá, mas é uma Lá que é Aqui, e vice-versa. Posso começar um livro de Andara – ou melhor: deixar que ele se comece em mim – por uma frase, uma imagem, um sentimento, uma percepção lampejante, enfim, por coisas que me chamam de dentro de mim ou de fora de mim. Às vezes começo um livro pelo fim, outras pelo começo, outras por coisas que estão no meio, no transcurso por onde os olhos do leitor irá passar, transcurso esse que eu ainda nem sei qual seja, não sei. Eu me entrego, eu sou levado. Mas, o curioso: eu sou levado como se O Que me leva soubesse do que eu preciso, o que eu, enquanto homem, busco. – O umanoH? – Psiu, silêncio. — Então é um estado excepcional que me acolhe com absoluta cumplicidade. Nem sempre. Às vezes me nega, renega. Devo ter paciência: saber que eu sou menos e que ele: Ele, esse estado Obscuro-Translúcido, é sempre Mais. Seria esse o Estado Lírico de um criador?

Rita de Cácia:

Você gosta de poesia? Que tipo de poesia?

Vicente Franz Cecim: Uns escrevem uma coisa no formato de um poema e pensam que fizeram poesia. Não é isso. Poesia não tem Forma, e se tiver, não uma forma pré-definida. Toda forma é pré-definida? Uma coisa chamada Poesia nasce com a gente, e está em tudo o que vive e morre em nós e diante de nós. Poesia. Parece um sonhar mais profundo dentro do Sonho de Já Sermos. Vallejo, Rimbaud, Lautréamont, Hoelderlin, Novalis, Pessoa, Whitman, Saint-John Perse, Eliot, Rilke, Emily Dickinson. Nomes remotos. Há outros.

Rita de Cácia:

Você escreve prosa ou poesia? Penso que sua prosa seja prosa poética. Há acerto nisso?

Vicente Franz Cecim: Não. Nem prosa nem poesia e ainda menos prosa poética – que não sei nem o que é, e me parece mais uma facilidade para explicar uma coisa que não se sabe como explicar ou definir. Feliz ou infelizmente, é assim. Fugindo dos gêneros, me achei sozinho em um, digamos: Universo Verbal que tudo permite e torna possível. Comecei fazendo ainda a Literatura, mas, asfixiado, passei a fazer puramente Escritura, livremente, e quando as palavras se tornaram rarefeitas e não queria dizer mais quase nada, cheguei a uma forma de expressão que chamei de Iconescritura – os últimos livros visíveis de Andara foram criados assim, como iconescrituras: K O escuro da semente (Ver O Verso, Portugal, 2005) e os inéditos Breve é a febre da terra e também óÓ: Desnutrir a pedra. Tive de retornar à antes da invenção do Alfabeto pelos Fenícios, cerca de 6 mil anos, para reencontrar a Imagem em estado puro, as matrizes da futura Palavra escrita.

Rita de Cácia:

Para ler suas narrativas é preciso um certo grau de conhecimento filosófico, um conhecimento da vida, uma certa visão da Amazônia, enfim, um conjunto de conhecimentos, o que, em geral, os jovens ainda não têm. De que forma você pode contribuir para a formação de leitores?

Vicente Franz Cecim: Eu não gostaria de formar leitores, nem de formar pessoas de um modo geral: cada um seja o seu Ser Original e estará devidamente formado por si mesmo. Assim, aponto vagamente caminhos, somente, esboços, sem muito peso e densidade — como aquele dedo que aponta a Lua Zen, de Dögen. Alguns olharão para o dedo que aponta, outros para a Lua no céu — muitos poucos sentirão a Vertigem, perceberão o fantasma: — Ver a Lua refletida numa gota de orvalho.

Rita de Cácia:

Qual o caminho capaz de facilitar os jovens a terem acesso ao trabalho literário?

Vicente Franz Cecim: Dêem a eles livros para ler, muitos livros, livros à vontade – estimulem a convivência deles com os livros: que durmam abraçados com os livros em suas camas, redes, ninhos, que aprendem a conversar com um livro como a pessoa que o livro, realmente, é, a pessoa que ele, livro, sustenta e traz em si, e que é mais do que um autor, só um nome: deixem que saiam para passear e conversar um dia com uma pessoa chamada Schopenhauer, uma tarde com outra chamada Plotino, certa noite com outra chamada Rumi, que conversem com esses homens – homens e mulheres que são os seus livros – e não pensem mais que um livro é somente um livro, um objeto, um objeto-livro, porque a verdade é que todo Livro que merece ser lido é, tem e contém a vida de quem o escreveu. Nessa Convivência, se abrem os Caminhos. E se aprende qual livro é uma má ou uma boa companhia.

Rita de Cácia:

Como levar os jovens a refletir, ‘sem apenas ler as letrinhas’, uma vez que, a mídia os leva para uma formação medíocre? Quais eram suas leituras na adolescência?

Vicente Franz Cecim: A mídia moderna é um veneno, mortal para os Sentidos, a televisão é a morte dos olhos, a imprensa é uma surda mensageira de mensagens convenientes para os que estão no poder – e o Poder é podre, não pode ser outra coisa, acaba aprisionando e roubando a liberdade daquele mesmo que o exerce — baste ler Shakespeare — como poderá libertar os outros? Em vez do poder: generosidade, em vez da ordem: a cumplicidade. Minha mãe tinha uma pequena biblioteca em casa, li tudo, por volta dos meus treze a quatorze e quinze anos. Lia por ler, pelo sabor de ler – e ia entendendo que ler é viagem, e viajava, lendo tudo. Descobri a literatura de ficção científica, ou chamada de antecipação, a de mistérios, a de aventuras. Lembro um ano em que li todo aquele que me pareceu infindavelmente longo Ivanhoé, de Walter Scoth, durante um mês inteiro, de férias. Mas lembro bem mais quando e qual foi o primeiro escritor que realmente foi para mim um Criador e que amei instantaneamente e ainda amo: Knut Hansum, o dinamarquês. Seu livro mais famoso é Os frutos da terra, deram a ele o prêmio Nobel, mas depois da Segunda Guerra o internaram num hospício, por ressentimentos: nesse hospício, muito lúcido, ele escreveu suas últimas e algumas das melhores obras. Se foi de estar aqui por volta dos 90 anos. Troquei o dinheiro que tinha para uma passagem de ônibus pelo Hansum, com um sapateiro que vendia livros usados. E fui para casa a pé, andando nas nuvens.

Rita de Cácia

Você é considerado pela crítica um escritor universal, o que apresenta todos os gêneros. Ratifico essa que aborda desde o processo cíclico da vida, até uma literatura onírica, e tudo isso se escriturando de uma maneira altamente sensível, o que explica a citação de Jakobson “Essas palavras são ditas com espontaneidade, palavras translúcidas; é um arrebatamento da alma” corroborando com a citação do escritor Emil Staiger que afirma: “O lírico, na forma adjetiva, é visto como um estado de alma, uma disposição sentimental, exprimido por meio de palavras, (...) aparentemente sem nexo lógico”. É uma das marcas que me levaram a caracterizar O sereno uma narrativa lírica. O que você pensa a respeito de enquadrar sua obra O sereno na forma do gênero lírico?

Vicente Franz Cecim: Não, evitemos isso: cuidado com as palavras: a palavra enquadrar é uma antipalavra: a Palavra que vale não se enquadra, ela é Vento de Vento, como diz Coélet no Eclesiastes, se bem traduzido: sim, mas a Palavra que realmente nos fala também é o Verbo gerador: ele abre, amplia, cria – não reduz – não enquadra. Então, não vamos fazer isso com um livro que foi todo sonhado, este O sereno, que transbordou de si mesmo e se lançou para além de todas as margens. Embora se passe, ele todo, numa única noite, numa margem, numa praia, diante da Água primordial. Não me desagrada que O sereno seja lido como um livro lírico, não me incomoda que nenhum dos livros de Andara sejam lidos também assim. Concordo com a frase citada de Jakobson. Me vejo imerso nela. Mas não sei se Andara se resume a ser lida como literatura lírica. Somente na hipótese de se vincular o Lírico ao Sublime. O Sublime, como o: Absolutamente Sem Fronteiras discerníveis. A citação acima que diz “aparentemente sem nexo lógico” é engraçada. Ela parece querer se desculpar, em nome do lirismo, por ele não mostrar um nexo lógico explícito. Não sei. Atualmente — se querendo ainda falar em Lógica mantendo o mesmo espírito de transcendência do que restou do Logos grego, do Logos como uma Manifestação do Sagrado, e no sentido do Uno de Plotino — acho que se deveria falar da lógica íntima do Caos, que nos gerou e que ainda nos é a Grande Desconhecida, porque Dela temos muito Medo – esse Kaos criador que contém um subsolo e um Centro, não-superficial, e que não se submete a uma mera ordenação superficial pelo temor humano – veja o dístico positivista Ordem e Progresso, que persiste, mas não se realiza, em nossa bandeira. O Caos originário criador, seja ele algo realmente centrado em si, em Sua Imanência, e todos os nexos possíveis entre as coisas manifestas, as Visíveis, deverão ser percebidos nascendo dele. Mas só quando não o temermos mais. Quando entendermos e aceitarmos o quanto de Invisível contém o Visível.

Rita de Cácia

Um aparte, ou melhor, uma audácia. Você se considera um ser solitário?

Vicente Franz Cecim: Sim, um Solitário. De uma certa maneira nós todos somos. As ligações, as relações que se estabelecem por fora, no Exterior, são insuficientes para serem aceitas como O suficiente, pelo Ser. Mas já falamos disso: no fundo da Originalidade de cada um de nós, é onde nos encontramos, e cessam todas as solidões individuais. Imagino a Alegria transbordante de um encontro entre aqueles que não eu quis separar: Kafka, Beckett, Gombrowicz, Rulfo, Guimarães Rosa, Bruno Schulz, Giono, Cervantes, Swift – uma Alegria comum a todos, pois, todos, unidos por suas originalidades pessoais.

Rita de Cácia

Você parece ter um corpo e duas almas. Você sugou a alma de alguém?

Vicente Franz Cecim: Um corpo e duas almas? Isso é interessante. Eu diria que uma delas é realmente a Alma, e a outra o Corpo, mas um corpo que se quer também Alma.

Rita de Cácia

Suas narrativas podem ser comparadas às peças de piano tocadas a quatro mãos, sem perder, claro, a unicidade e a harmonia. Como o homem Vicente Franz Cecim domina o escritor para que o processo artístico vingue dessa forma tão singular e espontânea?

Vicente Franz Cecim: O xamã se manifesta no homem, e, então, tudo se revela em Sonhos e tudo é vivido como o Sonho que no fundo é? Exercito normalmente essa espontaneidade em tudo, através dos dias mais comuns da minha vida. As palavras chaves aqui, são: Sinceridade e Inocência. Fora disso, o contra-fluxo é brutal. Parece uma vertigem invisível.

Rita de Cácia

A escritora e professora de literatura Walkyria das Mercês diz que sua prosa é um poema lírico esparramado.O que você pode dizer a respeito desse parecer?

Vicente Franz Cecim: Pode ser, assim pode ser: não prosa poética, mas “prosa que é um poema lírico todo de si derramado”. Ou como se diz em Andara: - O Vazio que transborda.

Rita de Cácia

Às vezes, Vicente Franz Cecim mostra-se personagem de si mesmo. Um ser transfigurado em arte. Até os seus dedos já se ampliaram e compõem com o cigarro uma outra forma de mão. Há limites entre homem e escritor? Penso que não.

Vicente Franz Cecim: Há uma distância imensa que vai da pata à mão humana. Mas para quê? Grande ato falho do homem consigo mesmo, isso de fumar. Comecei sem querer, e agora, por querer, parei. Estava morrendo para a morte. Agora vivo para a vida. Sartre, em O Ser e o Nada, diz que fumar é sublimar a vida. Pode ser, poeticamente, até ontologicamente, quem sabe, sim. Mas esse sublimar a vida, queimando, reduzindo a cinzas – o que é? Essa Negação? Será essa necessariamente a via por onde se atingirá o Sublime? Pela Dor? O Sublime não é um devaneio, é o mais alto grau da responsabilidade humana. É o que Busca o humano. Mesmo através das cinzas, tem que ser tocado, atravessando a Espessura da existência manifesta, a Visível. O homem se salva de dois modos: ou no mais Comum, ou no Sublime. Não vejo outra saída, ou outra Realidade no Sonho de Sermos.

Rita de Cácia

Fim.

Vicente Franz Cecim: Poderia ser um Fim, sim. Mas ainda não. Nesta re-visão, agora eu balbucio este adendo e prefiro terminar num começo: de algo um tanto surpreendente, que me cabe tão claramente o quanto ainda não O Sei. Estranhos rumores, coisas se movem. Talvez não devamos mais continuar nos distraindo com fantasmagorias como o Homem, o Ente, o Ser, o Não-Ser. Comecei a suspeitar disso desde que através de Andara me ocorreu a hipótese-clarão do que veio se apresentar como — o Humano — na linguagem de Andara, chamo a isso de: o umanoH — que é o que cria e é e não-é Tudo isso. E o Nada de que todo esse Isso é feito. Concebido. Engendrado. Pense tentando resistir à Vertigem: — É esse umanoH que, sem conflito algum, concebe as realidades de Homem, de Ente, de Ser e Não-Ser. Nenhuma dessas realidades consegue conceber inteiramente o Humano – ou o Andara umanoh – sem conflito com as outras. A progressão, ou regressão, homem-ente-ser parece ser sempre implicadamente ex-cludente. E quanto ao ser ou não-ser? O primeiro cogita o segundo, que o ignora inteiramente. Mas o Humano – o umanoh – inclui os dois – como se fossem Um ou Nenhum. Tanto fez, tanto faz. — Que extraordinária libertação nos vem desse entendimento umanoH. Dele, eu digo como o omem de areia no mais recente livro visível de Andara: - O Mel é beber a vida em sonhos.




Wesley Peres

Wesley tem 31 anos, mas sempre acham que ele tem cara de 30. Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, com o romance Casa entre Vértebras, a sair em junho pela Editora Record. É autor de Água Anônima (Prêmio Cora Coralina, 2001) e Rio Revoando (Com-Arte/USP, 2003). Em 2007 lançará Palimpsestos, pela UFG. Acha deplorável pessoas que gostam de Fanta Uva, gosta muito de estourar aquelas bolinhas de plástico e da literatura produzida na Papua-Nova Guiné. Ah, é psicanalista e mestrando em literatura pela UFG. Mora na Cataluña. E-mail: wesleyperes@uol.com.br