Número 4










<< Contribuições >>


Editorial


Funciona assim: ouçam “1979”, em “C-dur”, de Paulo Guicheney. Em minha concepção, uma peça de serenidade e fúria. Movam-se, em seguida, para “arte”, em “Patchwork”, de Patrícia Martins. O percurso da experiência estética, ingênua e crítica, como recepção pela vontade de inverter a fórmula entretenimento/arte, gerando arte/entretenimento, de Patrícia, é um bom mote — seria dizer motivo, mas jamais pretexto — para a apreciação da terça maior de Paulo. “1979” está executada pelo pianista Robervaldo Linhares, que já gravou e fez estréias de Almeida Prado — o grande compositor autor de 16 poesilúdios. A peça de Paulo configura o retrato de quem, imiscuído num perau de dúvidas, tem a face apascentada, e, de repente, por violenta inquietude, grita. O texto “arte”, de Patrícia, convida-nos a um movimento de educação artística a serviço da honestidade para a recepção estética, sobretudo em Goiás, a fim de que o entretenimento desregre as rédeas dos agentes de controle.

Por falar em tais agentes, movam-se para “Pop: algumas idéias”, em “Neuropop”. Em seu fragmento-texto, porque o todo deve ser acessado no .pdf em anexo, Wilton Cardoso nos dispõe a dissolução da dicotomia Grande Arte X Arte Popular — vigente até a adolescência do modernismo. Ao longo do texto, Wilton nos leva a observar como o pop ocupou o cenário cultural, desmaterializando e reconfigurando as instâncias estéticas. “Pop: algumas idéias” é um prolongamento do Tratactus marginale: poesia e capitalismo, e-book de Wilton Cardoso, do qual falei em oportunidades alhures e que é o texto-motivo de “página p.” desta edição. Na coluna, o texto trás o mesmo título do e-book e a alternativa “Taumaturgia do cinismo pela marginália”. A escritura em “página p.” faz um anacronismo com o termo “cinismo” e com o termo “cão”, apreciando o tópico “Da littera: profundos, construtores e marginais” do Tratactus em comparação à vida e à “filosofia de vida” de Diógenes O cínico ou O filósofo cão, Yeshuah O Cristo ou Jesus, e de Quincas Borba.

Apreciada "1979", em "C-dur" e lidas as colunas "Patchwork", "Neuropop" e "página p.", movam-se para uma de nossas novas colunas, “Cova do corvo”, assinada por Frederico Martins, responsável pela identidade visual de ruídobranco desde sua criação, no longínquo janeiro deste ano. “Imagens poéticas” configura a coluna como um espaço de texto visual. Ainda no âmbito da apreciação estética — até parece que a revista é temática —, movam-se para “Mieloma de ocasião”. O texto: “Notas sobre ‘O som e a fúria’”. Como se pode reconhecer, trata-se de uma recepção do prosador de Hoje está um dia morto, nosso André de Leones, sobre o romance de William Faulkner. O som e a fúria é dessas prosas desconcertantes, e André encarna bem isso descrevendo e interpretando a saga de decadência dos Compson. Imbuído nisso, André percalça os longos saltos no tempo desse romancista que a crítica contemporânea francesa Pascale Casanova colocou como escritor de ruptura, capaz de demover as atenções voltadas para o centro cultural, fazendo com que as margens o perpetre.

Ideografia: processo de Pound. Desdobrar belezas: processo de Wesley Peres. Movam-se para “Vaca de nariz sutil” agora e gozem de um intensa experiência poética. Qualquer coisa, voltem às colunas sobre recepção estética, depois retornem à coluna de Wesley, este poeta de origamis. Ainda na coluna, o poeta faz seus antiprosemas visuais dialogarem com a escrita de Dheyne de Souza, poeta de habilidade de condão e pássaros, que pode ser melhor conhecida em seu blog “Incontinência poética”, acessível pelo link correspondente — aí no menu destro desta página.

Outra coluna-novidade de ruídobranco é “Êxtimo”, do psicanalista Cristiano Pimenta. Movam-se para lá. O texto: “Extimidade” — intimidade por fora. “A arte é algo que afeta o corpo” é a tese do Cristiano. Dedilhando Lacan e Freud acerca das pulsões, da heterogeneidade corpórea, da experiência de conflito que a vida trava com o corpo, que, intrigantemente, é seu cúmplice, o autor disserta sobre a criação e a recepção estética como um “viver para ter o que dizer”, parafraseando o pianista russo Anton Grigorievitch Rubinstein. O texto desse nosso novo colunista convida a uma outra apreciação de “1979”, de “Imagens poéticas” e do organorigami desdobrado de “Vaca de nariz sutil”. Voltem lá: há, interpretando o Cristiano, sempre um trauma de carne exposta em vida, movendo o desejo que nos tira da potência de ser para a ação de existir.

Em nossa coluna quase-criptogr(u)af(rd)ada “Contribuições”, temos, de abertura, “Corifeu” e “O salto”, de Arturo Gamero, jovem poeta de Joinvile, Santa Catarina, autor do livro-poema ou do poema-livro Cerâmica noturna. O primeiro é o poema da metamorfose noturna de quem recôndito converte o silêncio da solidão em um desfile de metáforas regidas por um sujeito confinado no mundo. O segundo é uma dedicatória a Paul Celan, uma das maiores vozes com que a língua alemã presenteou o século XX. O poema nos convida à embriaguez da emoção de reinventar a imagem de Celan quando se suicidou no Sena, em 1970: “Na galeria em que a luz soprou a embarcação, o sol é um lago duramente iluminado, encoberto de silêncio./ O rio é o bocejo no coração das urnas, alfaiate da desfiguração”. Em seguida, “Contribuições” traz a poesia densa e pesada e delineada na sutileza de versos rápidos de Orides Fontela como objeto de apreciação estética de Wania Majadas, em “A verbalização do sangue”. Concentrada na coletânea Trevo (Duas Cidade, 1988), que reúne quatro livros da poeta (Transposição, Helianto, Alba e Rosácea), Wania descreve, em uma brevidade devoradora de ausências, os fundamentos e fluxos próprios da identidade poética de Orides Fontela. Ainda nesta coluna, compondo o quadro de textos para apreciação estética e sobre isso, este editor apresenta ao público o poeta e prosador das nervuras de Orfeu e Tânatos, Nilson Pereira. O texto para recepção é o conto “O algo”. Prosa tão desconcertante quanto exigente de nosso casamento de inteligência e sensibilidade, e que é, simultaneamente, algo em-corpo-em-si e algo em-enredo, para mais dentro do título.

Antes de mover-se tanto, caros leitoresnautas, não deixem de apreciar a nova concepção visual de ruídobranco. Haja novidade! E, não querendo seguir meu roteiro de movimentos, movam-se como julgarem necessário, mas se movam. Devo reconhecer, e sei que vocês não discordarão, que esta nova edição de ruídobranco é a melhor até então. Mas não se apoquentem nem parem por aqui, seremos ainda melhores na próxima.


jamesson buarque



CORIFEU

À luz de certa aurora o nada funda o rigor de minha fala, instaura a solidão do espaço. Lugar em que a fala cessa e o poema ultrapassa o poema. Me converto por dominação a força que indetermina o mundo. Aniquilado o tempo de um silêncio irreconhecível, reabrimos o que resta: mistério sem confinamento.

A noite funda a solidão do espaço

*

Os lampiões tremiam à beira dos lençóis.

*

O sol é uma ave com o ventre voltado para o céu.

*

A terra escava-se nas águas e silenciosamente os livros são iguais.

*

Alia-te à face do cadáver nessa manhã sem rosto, a pétala pertence mais

à terra que ao botão.

*

A larva observa o olho triste da criança.

O SALTO

Para Paul Celan

Levaste o silêncio às águas e as águas beberam o teu coração; deitaste o

livro onde as águas te acariciavam e não houve travessia neste dia.

O barqueiro regressou aos campos apagando a superfície.

Dormem os seres mornos.

A pétala pertence ao arco da cabeça de algarismo ardente.

Na galeria em que a luz soprou a embarcação, o sol é um lago

duramente iluminado, encoberto de silêncio.

O rio é o bocejo no coração das urnas, alfaiate da desfiguração.

Ardem as vítimas da ponte, a erva lacunar. Dor invisível; água

impenetrável.

Em nossas vestes não cabe o coração.

Arturo Gamero — do livro Cerâmica Noturna


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A verbalização do sangue na poesia de Orides Fontela


Em uma reunião de 04 livros de poemas, denominada Trevo, editada pela editora Duas Cidades, 1988 (Coleção Claro Enigma), esbarra-se na verbalização do sangue na poesia de Orides Fontela. A sugestão do “trevo” remete-se ao trevo raro, aquele que dificilmente é localizado pelos que o procuram com o intuito de mudar a sorte para melhor. Cada livro de Orides pode ser cada folha de um trevo de 04 folhas: Transposição (1966-1967); Helianto (1973); Alba (1983) e Rosácea (1986).

A apresentação do volume, através da orelha, fica a cargo de um grande admirador da poeta, Antonio Candido. Ele afirma: “um poema de Orides tem o apelo das palavras mágicas que o pós-simbolismo destacou, tem o rigor constitutivo dos poetas engenheiros e tem um impacto por assim dizer material de vanguarda recente. Mas não é nenhuma destas coisas, na sua integridade requintada e sobranceira; e sim a solução pessoal que ela encontrou.”

A personalidade poética de Orides Fontela permite a construção de um caminho percorrido por importantes linhagens modernas, mas com a marca pessoal inconfundível. A lembrança de tais linhagens, às vezes, até vanguardistas, surge do talento da poeta de se expressar com densidade ímpar muita coisa por meio de poucas. Fontela é das poetas mais refinadas no trato da linguagem, na coerência formal do pensamento. Eleva sua arte a vôos altíssimos, e tem a ousadia de conduzir o verbo ao limiar em que a palavra corre o risco de perder sua força de sentido e som, e desintegrar-se no branco absoluto do silêncio.

A pedra

A pedra é transparente

o silêncio se vê

em sua densidade.

(Clara textura e verbo

definitivo e íntegro

a pedra silencia).

O verbo é transparente:

o silêncio o contém

em pura eternidade.

(Transposição)

Com versos concisos, Orides tece sua arte cerebral ao estabelecer conexões inusitadas entre o pensamento e a trama cósmica que sustenta as galáxias e estrelas. Da pedra para a estrela há o espaço preenchido pelo silêncio especial para o qual o poema desemboca. É o silêncio que o poema ajuda a preservar como presença. É o silêncio que, sem dúvida o nutre, e, ao mesmo tempo, ele próprio alenta e promove. Esse em que a vivência do mistério – que não é outra coisa além daquela do real suportado como derradeira imponderabilidade – subtrai o homem do solo petrificado do óbvio: o liberta. Não se trata do silêncio da oclusão, diferente do que precede o poema e o hostiliza, mas aquele da significação excedida que, com sua irredutível complexidade, desvela e força à vigília sem pausa do entendimento e, em uníssono, à sua profunda desesperação. Pode-se dizer que se está diante do abissal, ou seja, diante do sentido que ultrapassa o significado e que, por isso, só se deixa apreender como pressão, como signo incerto, mas não como conteúdo nem como símbolo bem perfilado.

Fala

Tudo

será difícil de dizer:

a palavra real

nunca é suave.

Tudo será duro:

luz impiedosa

excessiva vivência

consciência demais do ser.

Tudo será

capaz de ferir. Será

agressivamente real.

Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos

e nem no amor: o ser

é excessivamente lúcido

e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade)

(Transposição)

Em Transposição (1966-1967), o livro de estréia de Orides, já se torna evidente a força da linguagem de uma poeta que nasceu pronta, e os temas presentes nesta primeira obra contribuem na formação da coluna dorsal de toda a sua literatura. Temas sempre retomados, palavras-chaves de um vocabulário pessoal, como símiles que a artista tão bem sabe cultivar para dar voz à sua leitura filosófica e existencial da essência do mundo, mas ao meio-dia a vida/é tão impossível.

A brevidade do verso de Orides Fontela é cortante, porque fere o leitor de forma que ao final do livro percebe-se que se foi tocado por algo inexplicável, de intangível beleza, como é típico nas leituras de grandes obras, essas que laceram pela verdade a natureza do homem.

A forma espiralada, constantemente adotada em seus textos, não se constitui artificial, pois deita raízes em estruturas elaboradas da linguagem, do pensamento, numa conformidade perfeita entre forma e conteúdo, isto é, essa elaboração artística traz para a linguagem poética o desenho das estruturas espiraladas que se remetem tanto à organização interna do vento que preenche o mundo, da estrutura do DNA, até ao espaço cósmico e suas ondas magnéticas. Não seria exagero perceber numa poética tal densidade, haja vista, ser a poesia a arte por excelência na sondagem de realidades que ultrapassa, pelo poder da sugestão, o veículo da linguagem, tangendo distâncias imensuráveis.

Astronauta

Astro

nauta

corpo nave liberta

corpo nave memória

deslocada do grave

tempoinfância

corpo plexo vogando

em campo

nulo

corponave memória

no vazio

perdido livre

corpo

despreendimento

nave.

Onde o horizonte? Astro

cai

em

órbita.

(Helianto)

Na poética de Orides Fontela, uma palavra tem de dar conta da coisa que nomeia, visto que não há espaço para explicações esparramadas. A palavra busca a plenitude em seu exíguo espaço, isto equivale dizer que a poeta busca capturar o tempo pleno em linguagem, daí a recorrência em sua obra de justaposição de vocábulos como “corponave”, dentre tantos outros, reafirmando o procedimento usado desde o seu primeiro livro.

Um olhar agudo sobre os poemas de Fontela desvenda determinadas soluções que fazem da poesia o próprio sopro de vida que anima não somente o eu-poético (que parte da invenção), mas, também, o sopro de vida da essência do ser em sua trajetória existencial. Percebe-se em toda a composição da poeta o ruído do fluxo sangüíneo nas veias de sua poesia , sangue que corre nas veias do ser humano, sem o qual ele perderá a vida, o que determina que poesia e vida constituem uma única célula. A estilística da palavra e a estilística do som construídos (e, às vezes, desconstruídos) pela autora comprovam essa unidade, complexa para a recepção, mas natural para quem não consegue vislumbrar a vida sem a poesia.

O fluxo do sangue (constância das palavras “fluxo”, “fluência”, “fluente”), este “ruído” silencioso, a “flor”(“rosa”, “girassol”), a dura “pedra”, “estrela”, o “sangue”, “ o espelho”, o “pássaro”, como símbolos de suas soluções de poesia e vida , o “círculo” (“girassol”, “lua”, “sol”), vinculado ao movimento do misterioso tempo, geometrizam em mozaico o texto labirinto, caminhos de complexidades nítidas:

Rosa

Eu assassinei o nome

da flor

e a mesma flor forma complexa

simplifiquei-a no símbolo

(mas sem elidir o sangue).

(.........................................)

Eu assassinei a palavra

e tenho as mãos vivas em sangue.

(Transposição)

No livro que fecha sua obra, Teia (1996), Orides mantém os símbolos recorrentes nos quatro anteriores, reunidos no Trevo, símbolos que no dizer da autora, compõem a sua mitologia pessoal, onde são trabalhados por meio de seu método caleidoscópico, observação de Rodrigo Garcia Lopes, em O Estado de São Paulo, por época do aparecimento do livro, editado pela Geração Editorial.

Círculo

O círculo

é astuto:

enrola-se

envolve-se

autofagicamente.

Depois

explode

-galáxias!-

abre-se

vivo

pulsa

multiplica-se

divindadecírculo

perplexa

(perversa?)

o unicírculo

devorando tudo

tudo.

(Teia)

Este poema é pertinente a um comentário de José Castello, que define bem a personalidade da poeta, além de ironizar as atitudes imediatistas do brasileiro, que o faz volúvel em seus interesses e suas buscas:

“Não é fácil ser poeta no país do folclore e do sucesso efêmero. A poeta Orides Fontela é um exemplo eloqüente. Depois de lançar Teia, ela deu entrevista no Jô Onze e Meia, se tornou personagem do Fantástico, da TV Globo, e caiu no gosto evanescente da mídia. Todos se interessaram pela mulher de vida difícil, que foi despejada de casa e se tornou famosa por comparar brigas com amigos de prestígio. E o livro? Orides é, de fato, uma mulher difícil. Seu coração está magoado e isso aparece, claramente, em muitos versos de Teia. Sua maneira de encarar a própria miséria é inquieta e pode ser confundida com a teimosia. Mas, para além do folclore, essa mulher estranha, que escreve versos curtos e dispersos, deve ser vista de outra maneira: como uma resistente.”

A poesia de Orides Fontela escuta o silêncio; silêncio de dor calada, mas que está ali, viva e vivificante, depuradora. É o canto calado do cisne, a palavra-cisne, que violenta a sua brancura com o sangue. Luiz Fernando Emediato, editor do Teia, afirma: “Esta mulher magra, seca e dura, que estudou filosofia, deu aulas e hoje vive quase à margem da vida é uma das maiores poetas da língua portuguesa. Antônio Cândido, Marilena Chauí, Davi Arrigucci Jr., Décio de Almeida Prado e Augusto Massi, entre outros, enalteceram o inestimável valor de seus versos.”

Trata-se da construção paciente, apesar da enorme impaciência, da teia surpreendente da poesia/vida, capaz de ser incompreendida pelos espíritos menos tolerantes com as contradições e absurdos da alma humana. Trata-se de projetar nas palavras a insinuação de uma presença intangível; de plasmar num enunciado a vigorosa vivência da proximidade que não admite ser apreendida a não ser como mistério. Assim como a vida.

No momento, ela não está mais por aqui, em presença física, mas a carne viva de sua poesia permanece, cada vez menos intacta, pois os leitores que se aproximam de seu canto endoidecem e saem cantando por aí a anárquica primavera de Orides Fontela.

Prof. ª Dr.ª Wania de Sousa Majadas

Comunicação feita na Academia Goiana de Letras (26/08/2004)

waniamajadas@yahoo.com.br


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“O algo” é desconcertante. Exige a concentração de acompanhar os movimentos das patas de uma viúva-negra apostando corrida com uma caranguejeira. É prosesia. Não é prosema nem poema em prosa nem prosa poética. Efetivamente, não há etiqueta para reconhecer “O algo” nas teorias para as literaturas. Seu autor, Nilson Pereira, é epígono de Rosa, Gadda, Gide, Broch, Brecht, Proust e Joyce. Em seu discurso imbricado na vida comum, quiçá folclórica, “O algo” desembaralha linguagens sendo órfico e pop, e sendo corroedor das gramáticas e dicionários possíveis à língua portuguesa. Na verbosfera wilteana, “O algo” é harmonia, uma vez que consegue, simultaneamente, contar e cantar. É também rizoma. Por enquanto, temos de chamá-lo de conto. E não deixa de sê-lo. Mas, sobretudo, é uma meta-escritura-en-abîme (ou abyme). Para mim, sem dúvidas, está entre as melhores escrituras de inéditos que tenho conhecimento, e vivo do júbilo de ser seu primeiro leitor como fui um dos primeiros de Casa entre vértebras, de Wesley Peres, antes do prêmio Sesc. Acho que já posso morrer.

jamesson buarque


O ALGO

Havia de início um algo. Encimava de trás para frente num atino de mostrar-se, mas meu contar não o justificava. Os moços mais novos o ignoravam. E ele lá, que nada, rapaz! Que não saio às claras nem na reza de um mais velho! Troço de colocar retângulos nos meus concêntricos, esse algo não se arrefaz de brutalidades antigas.

Naquela paragem, o singrar é escasso. Os pirilampos de um eram de foguetório dos demais. De mais de bom; até é motivo de êta, cada barriga d’água em qualquer pai d’égua; aquilo era bonança no alto mar. Quanto mais segava mais cegava; mais negociava, mais negaceava; mais nego no cio chegava, mais negócio chegava; mais chico te chegava, mais chicote chegava. Era assim, enfim: cansa proseio com moco, pois um gaguejo engasga é no gôgo do mais leso.

Coisa de incêndio no palato, lá veio agosto, gorro de lã e mais outro que é revés. Luva que na mão se casa, que o algo enfurnou de vez pra urso de polaina tão grudento que à boca quiucci qualquer piu espreitava nas ceras de olvidos de nós. Peito às costas, ninguém assanhava desditar que a vocação divina é do povo. Chamavam vilarejos de léguas do tamanho alardeamento, tava lá!, que arrependimento de algo é cebola sem pêlo, nem breca levada nem a troco de embreagem avança. Deusulivre!, credo em cruz e coivara. Era novena a três por quatro, que alma infestada, festa nela!

Os cavalos empoleirados sobre damas deixavam rei e bispos dessacralizados sem refúgios nas torres. Mormente mal para todos se um herege despota. Calvinava o um, no tosco das revelações da vila, mentirasmente a mente. Insignificava o que tantas provocações, assim, de ficar sozinho é como qual todomundo junto. E era, que mesmo escrivinhando indesacredito – por precavido. Levar a mal a geração interpreta, mas a cabo é missão uma, e, ofício é ofício: prossigório.

O teor exposto; resta substância. História é entreter com galopes: chega de cheganças. Início sabedeus um dia, no verão do mundo novo, no umbigo dele, nativivo – o um, era de arte a do pai, lidava com plantas. Nem plantava, nem colhia, só delas fazia confortórios de sentar, deitar, fechar casa e morrer. Isso sem pundonor, capital de pouco, só para o quiabo frito, arroz, e um dia, outro, mastigar perna de boi.

Da moldura circunlóquia verbalizada, que assim me basta este, era o que o algo via nas sortes aproximantes que a coisa se havia. Turbilhão de revestrés, mas no seu glosar bonito, un très revés, que se ouvia num jamais daquele instante um trelelê de fonemas mais para ordens galináceas. Sobre o que versava? Benzadeus! O incoercível, incognoscível, incompassível e incompatível... e põe níssel dicionário, que de incompreensível e incomodativo e inconseqüente vai para os finos do inconsumpto.

O então diversificava-se em outras falas, que o algo exibia poliglotias, mais que isso, regurgitava idiossincrasias tão absurdas que, de tão refinadas, só exalavam pertinências. Ao mentecapto não se fia, entretanto não se refuta.

A alma do desinfeliz minava as virtudes angelicais das autoridades. Os argumentos que feriam o cabeça da região iam de Jesus Cristo às mais valias. “Ora, se não já se viu: todo besta conhece que nêgo escravo no Brasil é gene livre. Precisa tanto reverberar? Dinheiro que vale bom empregado de fazenda – é preto, certo, podia ser branco, e pois? – Pois! Dinheiro desse se injeita? Não é escravidão, não, digam lá pro besta fera, é overnight.”

Sabe o povo o que o louco tem que não tem o esperto: mexer com a inteligência aburguesada. Ora sim, ora não, não se fala nisso, não senhor. Vamos simbora, vamos! Como é que é? Que hora começa o bruto, aqui é aroreira de trabalho, cansa nunca, senão vem o jumento, que tem tanto de pensamento e mais de força e cabresto, e arrenda o ofício que é de gente. Jesus Cristo é contra o que é da gente?, Divera, não se enxerga? Nosso Senhor é de favor com humildade de ser tardio em falar e pronto ao silêncio. Mas o algo insistia que sabia de muito com aquela cachoeira de páginas, uma atrás da outra, e na contra-mão também, que, embora o povo lhe desconfiasse, as autoridades precaveram punição.

Abelha que quer mel se atola é no melaço, quando não desinxerga pelas babas do quiabo. E desse o algo se lambuzava. Caiu nos intentos das autoridades o cumprimento do dever. Estava certo? Dir-se-ia: autoridade o nome já diz.

O contador julga melhor contação de se mostrar opinativo. Este aqui também opina: carência de brutalidade só para sãos da mente, pois na ignorância não se põe relevância. Aquele algo era posse das trevas; é pra lá de idiota. E se o diabo não arrebanha as ovelhas do curral de Deus... deixaqueto!

Mas pra cutucar aquele algo as autoridades tinham vara pra mais de metro. De Minas vieram três mais ou menos pau-de-fogo. Toscos de palavreado do qual siris falam mais, a troco de meia palavra bosta, fazer-se-ia um foguetório com tôco cru pegando fogo. Rasta-pé e pé-de-rodo eram as minúcias. Renunciavam matriarcas e o coro desce fino, costa a costa de um mal-me-qual quer, bem-me-qual quer. Sim senhor, não senhor, pois não e pois sim. Com aqueles o lexicar é sedoso. Carências de amenidades e pão do ló; É no frontispício do gigante que nasce o manso e na prudência subjaz o longevo.

Alardeou por lá a chegança do triunvirato, mas o algo nem tchum. Arrenega, homem! Evém lá cordilheira de sopapos! Tais conselhos soavam diagnósticos miúdos para o nosso. Esse, só parlapatão. “Que negócio é esse: então os que vêm de Minas botam banca na superfície?” O algo fez alfarrábios de ironias e sarcasmos pra figurar os tais. E por isso o tempo fechou. Também o templo, que vigário pra vigarista, é só seu o nome compor a lista. Mas o papa-defunto fez continência de sempre-alerta, com mesuras e mensuras, pesos e os devidos pesares. As finanças lhe chegavam na bagagem de forasteiros e nas bainhas das saias curtas das fiotas – além das garantidas importações das canas liqüefeitas: óbitos permanentes.

O algo era um que nem muitos, mas um que nem poucos; o algo era era único mesmo. Esse era filho de uma mãe, filho de uma égua, fé lá da puta, fiel de cruz credo, fio de uma ronca-e-fuça. Não estranhava espinheiro, não! Com bota sete-légua, ele leguava à turras. E se fivela de cinto é que enformasse os culhões, índio era tudo maricas.

Qu’est que está havendo aqui; Qu’est que estou vendo acolá? O vereador eleito de meritório voltou da viagem de très on t´onte já meio maculado do reboliço mediante o duelo anunciado. Ai, que este compadre do algo se viu com canelas ensaboadas para mœur de desvincular os arranjos! Ouvia das graças do algo e dos atributos da trindade estrangeira. Era pau! Era pau! Vai que nasceu torto e a tortura na espreita. O anjico de porteira na sede do prefeito sentiu poeira do entreposto, nosso amigo.

Ei, ei, sim, senhor. Quem é de bom dia, bom dia!

Dia. Sem se ir direito é eia que já é volto?

D’Vera, seu prefeito.

Proseado prorrompeu nos bajulados e o mote surgiu da conseqüência:

– É de que motivório o aprochego? É de vênia esse que venha, viu? Ou outro?

É o mal-me-toque desse antanho, sim senhor.

Mas ao algo não se vislumbrou jurisprudência.

Nem era o que se carecia, ruminou o amigo ao que vinha da Gália – há justiças até ao ouriço caxeiro, mas só na encruzilhada é que se inocenta um, diante de argumentos penetrantes nos alvejos. Êta, mais era o taio do facão no lombo, esse algo! É na bucha que o verbo desempenhava, que nem estopimzim de centelha.

O apanhadouro se benzeu e lambeu beiço naquelas estagens. Tinha com botões dos outros comentários concomitantes e severos, coisa de sina de pavio curto, corte de cheiro verde sem água na boca, dedinho incauto de moleque catarrento adjacente a pilão de paçoca, mandruvá mimetando no cume de mamona no lidar da roça, Isaque sem papo de anjo, e, aqui, mais reverbério, etecetera, etceteris, etceteræ...

Nádegas do triângulo mineiro perambulavam era como besuntadas de azeite, se escutavam da pouca temência do algo prestes de martírio. Seus falares, se bunda ironiza, eram de tamanho pouco-faz, como a dizer que elas já estavam cagando e andando. O primeiro: “uai, minhoca no anzol aprecia mais coragem que covardia.” O segundo: “Como é que tu tá quem pergunta é quem é que é tatu – é tatu bola, se ocê diz que dá na bola, mas na bola ocê num dá.” E o terceiro: “quem come prego, sabe o que bebe, parece que bebe; vai ter com a formiga, corajoso! Formigão é que dono de cu de quem bebe e não sabe o cu que tem.” Aqui pode ser o do mundo, mas o que mais tinha aqui era dono, povo não governa a própria escatologia, nem nos últimos dias.

Passo adiante, só com ousadia merece testemunho, pois que a lambança já se empapuça de prolegômenos. Posso narrar? Posso, o meu sabiá pede gorjeta em outras palmeiras, daí tem sempre o tal do bovarismo. Judiança muita, ciganança, arianança, caucasianança, negrança; o da berruga no nariz quis adiantar o choratório e buscou na choupana do parentesco uma pequerrucha, de batismo há pouco pelo algo (mesmo de gosto malfazejo), trazida com adorno de cadela à estalagem dos cavalos de Minas. A distância não era légua, mas o berrugudo exibiu itinerário de devorteio, intentando visagens de leitor por eleitor do emancipado; a bichinha rogando água, mas o condutor minimizava, invocando analfabetismo em cachorrês: “ e é de quatro, baleia! Ocê num é de raça?” – e ria ao grau do choro da outra.

Foram os parceiros de pedadogia primária que deram conta dos complementos da palavramundo. Os relinchos e latidos atiçaram a bisbilhota dos pequenos afoitos de bestagens, mas no adiante da assistência, não conheço esse que desdonzelou. A bagunça dos miolos deles, ainda agora admiro, não confundiu a claridão da verossimilhança de nenhum: “Carmecita chegou de só duas pata que prestava e mei medelíngua na terra. Aí, aí, os dois ôto alamberas boca, que tava chupano cana, né, um que botou a cana igual pau e fez siririca...e, nóis traversô prus fundo do curral, que dava pra vê; a Cita tava nuinha e... inda tava no chão, ês tirara ropa tumém... cabeludo demais!, menos um, que parecia doença; o pelado mais pelado troxe os cavalo: dois; tava piado. Aí, foi uma risaiada; nóis não. Que arte é essa, o Lorintino perguntô; ês vai montá ela, fazê fíi, eu falei; ê, praga ruim, e fíi cum cavalo? As vêis o cavalo era pra fugir dipois, uêi; nera não, o Neuto falô errado, vô te contá; o gordim falô pro pelado: “pi os pé de trás, sinão ês coiça!”; piô; o brerrugudo parpô o pinde um, do cavalo, e o pelado, do ôto; o Gordim abriu as perna dela e ficou passã guspe, passã guspe, passãnum tempão, quan’nóis oiô de novo, os dois cavalo já tavera arretado! e os hôme ca mão lá, e o pinto dês tumém; a gen nem falô pio, mas num tirava o ôi; Sab’quelera pequena prês, né?, aí o Gordim piô as mão dela tumém e és’perniô muito, aí gritou, ê deu na cara dela, muito, muito...; é mais inhantes, Toim, lembra?, ê ficô infiano os dedo sujo nos buraquim dela tudo, causque o guspe quêle passô afundava, échorô demais, né?; foi!, foi mermo, Lorintino!, chô contá tumém; ês laragaro um cavalo pra lá e dois pegô ela, tava de pau durainda, o Gordim sigurô assim, nos ombro, e os ôto nas perna e traversô ela porbaducavalo, aí o Gordim largô e foi patrais do cavalo, aí eu pensei quelia passa guspe no cavalo tumém, pacumê; daí ele passou foi no pinducavalo; é Neuto, ê babava demais, demais... ficava só babano, aí ê feis o cavalo comê ela, daí, só que o cavalo, é... brochô!, o ôt’não, ês largaro esse e trouxe o ôto e fêis tudinovo e entrou metadupau do cavalo, que era mais pequeno; e ela, e ela ...desmaiô, num foi Neuto; não, éjatava desmaiada, ou!; foi!, ês ficô um tempão, mas aí os cavalo... discrençô!, ê quis morde ês, aí o pelado levô os dois, guardô, vêi (os dois queto!), aí infiou os dois, sab? No... furiquin e na... sab?, o Gordim deitô e o pelado porriba, mas o berrigudo não, ficou só de boquete na boca dela; ela tavera que nem mixia, picidivê!, quetiiinha, num esperneava, num gritava, nem latia; de zói aberto, nera Lorintino? do mermo jeiquitá no caxão lá hoje, abertim!...”

Daquele ato soberbo, o povo não se curou. O velório foi despalavrado para dar lugar às bocas semitortas, os olhos secos e braços e pernas encurtados. Um todomundo de metonímias fetichistas. Bíblia não havia; o pastor, que substituía o padre fujão-responsável, tinha roupas rasgadas e, dizem, que não largava o crucifixo de antanho.

A não ser o céus, ninguém chorou.

A lama das ruas vermelhas de barro desaguava feito mênstruo no riacho magricela. O mato havia encurvado-se e assim permanecera por três dias. Os bois amuaram nos pastos como quem embesta, e leite não deu nas vacas. O jejum inflamou feito sufrágio.

Depois, três dias, o povo teve fome. Os alimentos: cará-nhame, jurubeba, jiló, gueroba, mastruz, maxixe com carangudã, losna com maniçoba crua, caldo de qüentro com quebra-pedra, chicória, boldo e milômen, carne nem a que acocorava no sujo entre os dentes, nas crateras odontológicas.

Foi o último dia de chuva. Nada a dizer, nenhuma falta, no dia seguinte, “da que consigo levava cruz âncora coração”. O prefeito pediu culto arrependido e deslavado, mais para si que para a outra, mas o pastor desinspirou. Advenistas, no sétimo dia. Afilhados de Alan Kardec se negaram a invocar lucidez e diziam que os anjos podaram suas asas, penduraram as arpas nos ciprestes e acamparam à beira do riacho.

Um ocre pálido pingava de suas asas empoadas – alguns viravam mariposas. A noite chegava chegando mais cedo, o sol preguiçava lento e era alvorada pouca. O rio era qual estancado – diziam que subia – seu gosto era de mar e ninguém carecia pôr peixe na salmora. O povo não se voltava ainda a comer de sal.

Os bares perderam seus sorrisos, seus gritos noturnos, seus sussurros da madrugada. As putas se embotaram com peitos adentro, recolheram seu gozo em amargor de Lisístrata de menopausa. Os pássaros, esses fugiram sem gralhados e sem cantigas.

Algo, por assim ser, não perscrutava o arredio citadinoso e nem se desfrugou. Sua leitura de bacharel fluía por agraciar o tomo, trazido da França pelo amigo do legislativo, de um escrevinhista refugiado entre o mar e os sonhos. E por ali andou, velejou sonâmbulo por uma suportância de almas e apaziguou seu espírito de radicalias, imagimanias, nas dialéticas do dois ao três por quatro. Sentia, às vezes, a maresia através da janela, água que desce, água que sobe, água parada de um lago profundo e escuro em sonhos de mitos de mar morto.

Nesse arrefecimento que fazia bonito, os chegados não lhe deram conta da afilhada de contrabando, decida aos sete palmos, que deus a tenha, pois o diabo já, na benzedura dos pórticos, dos portais eternos de sião, nas entradas dos umbrais dos santos dos santos de auréolas argentinas, nos altares onde a árvore e a fonte da vida dão d’água e frutos aos têm fome e sede de justiça, ao lado do seio da virgem santa maria, mãe de deus, nossa senhora do socorro instantâneo e oportuno, e todos os sacrossantos venerados e invertebrados, valei-lhe, valei-lhe, hoje, que a mim, não me valeu jamais.

Mas a noite deu ao algo a página derradeira das letras e saiu à madrugada no quarto dia do acontecido. Ali, o algo mirou sua realcunhada de Saulo a Paulo, numa visagem súbita de epifanias. Não foi a hóstia gorda de prataria, alaranjada de vergonha carmesin, contra o céu de meu deus gritando, e os pozinhos de fora a fora, junto ao vento reconforto da cidade marré decis. Mas, algo ímpio via as estrelas caídas sobre as casas, dentro delas, pinga-pingas cintilantemente, embrionadas pelas janelas e nem alma viva nas ruas. Era o céu que descera ou o chão que ascendera?

Algo chorou ali...e creu.

Sua ótica transformava as estrelas das velas externas do choro do povo e derramava todo o constrangimento em cachoeira e em espetáculo de luz.

Ninguém aqui para vigiar comigo!

Como sei eu? Sei pelas sapiências! Mas algo há que sei não, sabendo o sendo e o senão: o negrume enviesando, olhos de gato enxergando pardo na madrugada em serão, umas mãos se levantando em paralelas, no paulatino da genuflexão, de um corpo recurvando, rebuscando um vil suplício e a cabeça extrema unção, uma reza espargindo na aura a radiografia de fonação. Como um cálice pra beber bebendo, da mímica entre os seus dedos mimando, o algo a priori enjeitou bebendo, mas quando não quis querendo, entornou a embevecer, embevecendo, embevecia, embevecido, um beberrão. Em breve, tendo sido, só em deus será sempre. O gerúndio do segundo se amontoava nas semínimas e nas prolepsias de cronômetros sustenidos estacatos de minutos: os tons todos superpostos de composições harmônicas de uma fuga de bar.

O uno se fez no então e, de metáfora, era dia e era noite.

Carmecita de Jesus, de uma queda de algo que foi ao chão, brotou com os olhos dos demais arregalados e conjuntivos das moças entre o povo, que a têm por santa. A ela ninguém o diz; ela, dela mesma se diz trotskista, vivendo a tanger peregrinos e comer criancinhas. As testemunhas de seu martírio servem à ordem casta fransciscana, a cuidar humildemente dos cavalos cansados de viagem pelos lugarejos. Dizem alguns que procuram por acudir três cavaleiros, todos três chapéu na mão: o primeiro, por ser pai de verruga madura no rosto; o segundo, seu irmão, um gordo que não controla a própria saliva e o terceiro, foi aquele o qual só se conheceu sem roupa. Mas, de comportamento, as feições do trio é animal, às vezes três corpos com a mesma cabeça de cão, espreitando suicidas em cemitérios, pedindo-lhes, em turbilhão retórico, imputações de penitências; pobres, dessas almas a quem a tristeza deu a mão.

Se sei de algo não sei; ninguém sabe; sei de nada, e de sonada, uma ela que trouxe à cidade vontade outra de viver. Feita prefeita, nenhum dia passou sem festa, senão só para o emburramento de claustro de Carmecita. Era dia de santo, dia de feira, dia de finados, dia de carnaval, dia de dia, dia de noite. Mas ninguém, nunca mais vislumbrou aritmética pro calendário.


Nilson Pereira

Êxtimo


EXTIMIDADE

O termo êxtimo pertence ao jargão lacaniano[1]. Ele designa a posição que as exigências pulsionais corpóreas (as pulsões) – procedentes das zonas do corpo chamas por Freud de “zonas erógenas” – ocupam no terreno do Inconsciente (designado por Lacan como o campo da fala e da linguagem, o famoso grande Outro (A)).

A psicanálise constata, por um lado, uma dicotomia entre esse campo da palavra com seus infinitos desdobramentos de sentido, e as exigências corporais. ‘Dicotomia’ é aqui adequado no sentido teológico: “princípio que afirma a existência de dois elementos essenciais, o corpo e a alma, na constituição do ser humano” (Houaiss). A alma da palavra, mesmo tendo sua materialidade, é da ordem do incorpóreo, ela sempre se desdobra, se articula, faz cadeia, faz metáfora... Uma palavra não tem jamais uma única significação.

Já o corpo é de uma outra ordem, a da substância. Seria a substância cartesiana, res extensa, mas não é, porque esta é sempre um pedaço extenso de corpo sem vida. Trata-se da substância do corpo vivo. O estar vivo é condição para que haja exigência e satisfação pulsional

Por outro lado, os estudos lacanianos também constatam articulações entre esses dois campos essencialmente distintos da subjetividade humana. As elaborações de Lacan são, em grande parte, tentativas de traduzir teoricamente esses modos de articulação. A noção de extimidade é uma delas. A pulsão penetra no mais íntimo do Outro aí se alojando, mas continua sendo sua mais radical exterioridade.

PÁLPEBRAS

A originalidade de Freud foi colocar em primeiro plano as emoções (modo como as pulsões aparecem para nós). É impossível, diz Freud, evitar sentir quando algo nos afeta, seja de modo desagradável ou feliz. Contudo, nem sempre interpretamos corretamente o que sentimos, porque nem sempre aceitamos sentir certos sentimentos.

A tese fundamental da psicanálise é a de que nós nos defendemos do corpo.

Mas não é só a psicanálise que valorizou o corpo. O Cristianismo também o fez. A idéia da ressurreição do corpo de Cristo foi a grande novidade no campo das religiões. Como é que pode a carne, essencialmente ligada ao pecado, à miséria, ao perecimento, entrar no reino espiritual, essencialmente purificado? O Cristianismo promete um ressarcimento ao nível do corpo vivo. O corpo de Cristo ressuscitado e levado ao céu é também um êxtimo. É um elemento heterogêneo (corpóreo) que é introduzido no mundo dos espíritos.

Falando em mundo dos espíritos...

O Cristianismo promete um ressarcimento ao nível do corpo vivo. Leva, é claro, à resignação, pois ‘o reino dos céus (que só vem com a morte) pertence àqueles que sofrem’. Mas, enquanto religião isso é muito melhor do o simplismo kardecista, que nem toca no assunto dos sofrimentos da carne. Tudo fica mais fácil quando a essência é uma espécie de fluído volátil que está em constante progresso migrando de invólucro para envólocro.

Ora, ora, ora, a questão ética da psicanálise, abordada por Freud em seu artigo O mal estar na civilização, não é outra senão a de questionar o sofrimento do corpo e jamais se resignar a ele.

PSICANÁLISE E ARTE

Gostaria de propor uma definição genérica, simples e até simplória, para os objetos estéticos ou artísticos: a arte é algo que afeta o corpo.

Evidentemente, só o corpo vivo pode ser afetado.

O cadáver é inerte, inafetível.

Essa definição de arte quer dizer que o corpo vivo faz parte dela mesma.

Portanto, se os seres humanos fossem dizimados da face da terra e as obras de arte permanecessem, sua coerência interna também permaneceria e a obra de Umberto Eco teria ainda todo seu valor.

Mas seriam vazias, esvaziadas de dois lados: do gozo nelas depositado e do gozo que elas causam naquele que é tocado.

Sim, um corolário dessa definição é que o objeto artístico só pode ser produzido por um corpo vivo, o do artista, que, ao articular os elementos de seu texto, no mesmo ato, deposita-lhe a afetação de seu próprio corpo. Mas lembrem-se, tudo isso que é da ordem do corpo, dos afetos depositados na arte, não pode ser reduzido a qualquer elemento de linguagem.

É por isso que o artista tem que ser afetado pelas experiências da vida para poder ter o que dizer. O grande mestre do piano, Rubinstain, ao ver um bando de garotos enfurnados e extenuados por quase doze horas diárias ao piano lhes disse: deixem isso, vão viver, para terem o que dizer.

TRAUMA

Com Lacan a afetação mais originária que recai sobre um sujeito é, não a linguagem, mas a língua. A linguagem é uma operação organizadora sobre a língua, seu objeto. Essa, por sua vez, compõe um campo desorganizado e que não carece daquela para existir. O ato propriamente estruturalista de captar estruturas fundamentais e homólogas nas mais diversas línguas é uma invenção ordenadora que possui toda sua utilidade, mas não elimina a desordem original, dada, factual, de toda língua em constante transformação.

Pois bem, o encontro de um corpo vivo com sua língua mãe (mãe originária) é da ordem do traumático. Nós humanos somos traumatizados de saída, ou de entrada, se quiserem. Somos marcados pela língua mãe de uma forma ineliminável. E, na vida, sempre voltamos a ela nos momentos decisivos, também traumáticos. Como retorna Michel de Montaigne numa bela passagem de seus Ensaios, com a qual eu encerro meu breve percurso, e cuja leitura eu jamais deixaria de recomendar:

Não se arrancam as raízes das tendências originais; dissimulam-se tão-somente. Assim a língua latina é para mim a minha língua materna; compreendo-a melhor do que o francês. Mas há quarenta anos não a utilizo nem para falar nem para escrever. Entretanto, quando me vi tomado de forte emoção, o que me aconteceu duas ou três vezes na vida, uma destas vendo meu pai cair inanimado em meus braços, minhas primeiras palavras foram em latim. Valendo-se das circunstâncias, a natureza, há muito reprimida, ressurgia. E casos como esse, contam-se inúmeros. (Ensaios III, do arrependimento).



[1] Minha abordagem segue a via traçada por um psicanalista leitor de Lacan, famoso por ser também o seu genro, a saber, Jaques-Allain Miller.




Cristiano Alves Pimenta

Nascido em Goiânia, vivido na velha, ou não tão velha, Vila União, logo começou a ler coisas por conta própria e se deparou com uma epígrafe de autoria de Antonio Gramisci: “Todos somos filósofos”. Pronto! Primeiro raciocínio propriamente filosófico: “Se todos os homens são filósofos” (premissa maior), e “Cristiano é homem” (premissa menor), logo: “Cristiano é filósofo”. Tornou-se, então, um jovem filósofo, amante da verdade, leitor de K. Marx, Sartre, Hegel, entre outros. Foi salvo da megalomania apenas pela humildade, que o obrigava por à prova os produtos dessa ratio pessoal. Tortuosos caminhos o levaram, contudo, da faculdade de filosofia (USP) para a psicanálise Freudo-Lacano-Milleriana. Outro pronto! O amor à verdade caiu. Hoje, mais lhe vale uma “ilusão útil” (Baudelaire) do que mil verdades inúteis.
E-mail: cris.alvespimenta@yahoo.com.br










Cova do Corvo


Imagens Poéticas


Incríveis Viagens






À quem ...










Frederico Assunção Martins

Frederico é responsável pela identidade visual da Revista Ruído Branco desde de a sua criação. É contra-baixista. Fred também explora as mais diversas linguagens de criação artística.
E-mail: selfgrind@yahoo.com.br




C-dur


1979

Uma terça maior. Uma melodia. Uma modulação. Uma data. É possível fazer um retrato sonoro de alguém? 1979* é uma tentativa.

*piano: Robervaldo Linhares.




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Paulo Guicheney

Paulo Guicheney é compositor. Quando criança teve de optar entre ABBA e Trio Parada Dura. Optou por ABBA, mas depois descobriu que a coisa pegava mesmo era com Beethoven. Estudou piano e composição na UFG, onde também fez mestrado em música eletroacústica. Atualmente leciona composição na UNB.
E-mail: pauloguicheney@hotmail.com




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Tratactus marginale: poesia e capitalismo, de Wilton Cardoso, Ou taumaturgia do cinismo pela marginália



Cínico ou cão: aquele dado à abnegação das coisas materiais. Exemplos: Diógenes (séc. V-IV a.C.), Yeshuah (séc. I a partir dele mesmo) e Quincas Borba (séc. XIX-XX d.C.) — os cinco: o primeiro e o último com seu respectivo cachorro de estimação, e o segundo, sempre sozinho, coitado. (Seria também o caso de Buda, Epicuro, Zoroastro, São Francisco de Assis, São Gerardo Meiella ou O bêbado de Deus, e Rimbaud — mais para tanto, eu precisaria de umas três edições de ruídobranco, e, no frigir dos ovos, chegaria ao mesmo ponto crítico de falar apenas dos três primeiros supracitados. (Então, prometo: ficarei por aqui.)

Diógenes morava num tina de barro — um barril mesmo, semelhante à “residência” do Chaves (outro caso, um caso pastelão, mas um caso, que é o que efetivamente importa) —, às vezes em Atenas e às vezes em Corinto. Mais em Atenas. Veio de Sínope: onde provavelmente não morava em lugar nenhum — que é o mesmo que morar em todos os lugares. Era de fato um cão, kyôn: “costumo fazer festa para quem me dá alguma coisa, rosnar para quem me rejeita, e cravar os dentes nos crápulas”.

Yeshuah, quando faltava vinho nos barris, milagrava águas, num gesto taumatúrgico para consagração de corpos e almas. Passou mais de um mês no deserto, e quando voltou, foi pregar, diga-se parabolar, antes de banhar-se e mesmo de comer. O mais importante, assim como Diógenes, que veio antes dele e dos hippies: julgava que a terra inteira, todos os seus espaços, era sua casa, nem o impressionava riqueza ou poder. Yeshuah milagrava mais coisas além de água: olhos, pernas, peixes, pães, perebas hanseniásicas, sem falar de sua fabulosa taumaturgia da auto-ressurreição e da ressurreição alheia — o famoso caso Lázaro. Importante: não tinha templo, nem igreja, nem altar, nem ágora, nem feira nem shopping onde milagrar: fazia tudo pelas ruas, perambulando, vagava — e vaga é espaço viandando entre o tempo e o nada. Diógenes era, digamos, mas radical: urinava em qualquer lugar público e em público, bem como se masturbava também em público: maneira de passar, quiçá matar, a fome quando lhe faltava o único e por isso repetido prato de lentilhas. Eram hirsutos, como hirsuto o foi (era ou é) Quincas Borba.

O louco machadiano autor de Humanitas, confidente do quase-famoso Rubião e amigo de um certo Brás Cubas, também louco, mas não exatamente cínico ou cão, no sentido que tais termos gozam nesta escritura, foi (era ou é) figura de ações ridículas e intenções sublimes — pensando nestes termos como o pensou Hegel em seu idealismo da Beleza e do Sublime. (Nesse caso, é bom pensar como pensou Hegel porque é menos particular. Particulares: Hume, Vico, Dilthey, Croce, Gadamer, frankfurtianos, Derrida, Bobbio, Ricoeur. Quase particulares: Chateaubriand, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Foucault. Não-particulares, como Hegel, mas criptografados como o fossem: Kant, Comenius, Rousseau e Marx.) Antes de ficar milionário, e de morrer certamente por tanto, Quincas Borba mendigava, e isto é recíproco a morar num barril e a milagrar. Humanitas, ou humanidade, a filosofia traduzida como Humanitismo, diz respeito à essência indestrutível dos seres, como aquilo indiferente aos valores morais e materiais. Daí seu cão, também chamado de Quincas Borba, e assim — não pelo nome, mas pela Humanitas — o cão de Diógenes, era cheio disso que existe em todos, gente ou não, mesmo depois da morte. Logo, tanto faz indumentárias, cetros e pratos cheios de variedades.

Pronto: instaladas as pessoas e, logo, os lugares — as ruas, o ermo, a vastidão toda da terra, sobretudo seus baldios, incluindo nisto o dentro das bátegas — e também o tempo — dir-se-ia melhor, os tempos: antes, durante e depois de Cristo, o próprio Yeshuah, embora ele não seja o centro da questão, se existe uma —, instaladas(os), eu dizia, posso partir ao que importa: a marginália. Tomo como verdadeiro que a marginália é aquilo que Wilton Cardoso assinala em seu Tratactus marginale: poesia e capitalismo: coisa mais antiga do que a poesia marginal da década brasileira de 1970, do que a geração beat (década americana de 1950) — acrescento — e que imbrica vida e poema. Wilton desenvolve o problema — se é que é isso — no tópico “Da littera: profundos, construtores e marginais”, do ponto 22. ao 51. Embora aparentemente anti-aristotélico e avesso a Jakobson, Wilton trata da marginália como categoremas. Mas tais considerações são dissolvidas em sua escritura, seria dizer: rizomatizadas — para anunciar sua jamais velada relação com Deleuze e Guatarry.

Permitam-me uma quase brevíssima digressão: Wilton Cardoso não é, in praxe, um cínico ou um cão, porque tem vida funcional, não mora num barril nem urina nem se masturba em público, não milagra enquanto pervaga e nem mendiga. Seria dizer: tem vida funcional ativa. De todo modo, no tópico “De como fugir numa cidade”, dentro do que chamo seu terceiro “Programa para a necessidade”, ele nos ensina que é preciso inventar outra cidade além-aquém da cidade que funciona. Ali, onde os mecanismos e os agentes de controle se desregulam ou fazem a curva — como assinala Manuel de Barros: “A linha reta não sonha” —, vive o Wilton cínico e cão, que passa a fome escrevendo compulsoriamente, e isto é recíproco a masturbar-se em público, a milagrar e a mendigar. Pronto.

Voltando: como a marginália é coisa mais antiga e como Wilton não faz detalhamentos disso — até porque não é desnecessariamente delongado como o sou, e porque antigo é antigo e ponto (.) —, comecei esta escritura pelos anciãos. Mas isso pode parecer óbvio, como bem julgarão vocês, leitoresnautas; no entanto, eu não perderia a oportunidade de vociferar detalhes. De todo modo, meu juízo crítico — se tenho um — implica em que na “Ad-vertência” do Tratactus, Wilton anuncia a antiguidade da marginália ao asseverar que escrever é olfativo. Entenda-se escrever como está no tópico “Verbosfera”, do que chamo primeiro “Programa para a necessidade”. Segundo Wilton, há duas maneiras disso: contar e cantar, e ambas podem ou não se manifestar via escritura. Seria assim: falar uma história ou canção equivale a escrever com a língua um discurso que asa. Quem conta ou canta é “o farejador ou cão desejando a cadela no cio”, ad-verte Wilton, porque “o texto é um mapeamento traçado com o faro”, é pelo faro que o animal homem dedilha a cultura. Isso ensina: o texto se espraia descontrolado. É-me óbvio que tal asseveração somente poderia arrancar da livroteca onde ululam minhas caraminholas, lá no cadinho de cérebro que julgo ter, a relação do pensamento de Wilton naqueles pontos do Tratactus com Diógenes, o Cínico ou O filósofo cão; com Yeshuah, que chamam de Jesus, O Cristo; e com Quincas Borba, o louco quixotesco — outro caso de cínico e cão — de Machado.

Em sua definição-chave de bruxo — este actante mais efetivo da marginália, e podemos asseverar que o autor do Tratactus é um deles —, Wilton se aproxima mais intimamente da filosofia cínica fundada por Antístenes, mentor de Diógenes: “Bruxos não gostam de abstrações no seu trabalho, sempre concreto e chão, embora muito sutil, às vezes. É um artesão da magia”. Conta Diógenes Laércio, filósofo homônimo do outro e que viveu no séc. III d.C., que o cinismo — vejam cinofilia, cinosofia, cinopedia, cinose, cinofobia, cinotopia, mas não vejam cinérea nem cinema, simplesmente porque não vem ao caso —, o cinismo, eu dizia, era tão desafeito às abstrações, que, durante a famosa palestra sobre o vaso e a mesa, constante do Crátilo, de Platão, Diógenes retrucou o mestre da Academia dizendo: “Querido, Platão, eu vejo a mesa e o vaso, porém não vejo as respectivas idéias”. E depois de Platão em outra ocasião definir o homem como um animal bípede despenado, Diógenes gostou tanto da definição que, na palestra seguinte, levou um galo despenado à Academia e disse: "Mestre, eis um homem".

A lição sobre os bruxos, de Wilton, está no tópico “Dos bruxos”, e segue do ponto 14. ao 21. Exemplo: o cetro de ouro na mão da canção é obra de bruxaria. Significa que a arte pop conseguiu devorar, via sua principal invenção, a indústria cultural, a arte elevada ou coisa que o valha, de sorte que o historicismo estético, antes descoberto pelo romantismo, sofreu um golpe de anulação a ponto de as diversas linguagens se imiscuírem no espaço-tempo para gerar consubstanciações das mais variadas. Exemplo do Wilton: O poema sujo, de Gullar, e Metaformose, de Leminski. Bruxos às ribaltas: Adorno e Antonio Candido. Contra-exemplo muitíssimo bem sucedido: Bruno Tolentino. Eu acrescentaria, movido por Wilton: os quânticofísicos Stephen Hawking e Max Tegmark, o líder negro Nelson Mandela e inclusive o traveco Geni, de Chico Buarque, são bruxos. Reverberação da lição: “Bruxos não gostam de abstrações no seu trabalho, sempre concreto e chão, embora muito sutil, às vezes. É um artesão da magia”. (Digressão necessária: Geni era ou é cínico ou cão também: dava atrás do tanque e no mato e teve asco do zepelim gigante tão cheirando a luxo e a cobre. Não confundam o poema-concreto, lixo/luxo, de Augusto de Campos, e muito menos o concretismo, com o cinismo, porque isso seria muito cinismo — o outro, de hoje. Nada contra o concretismo-em-si. Detalhe: creio que, mas não tenho muito tempo nem paciência para isto, Galáxias, de Haroldo de Campos, em muitos aspectos, enquadra-se na poesia necessária ao mundo pós-45 do qual Wilton fala, ainda que em suas escrituras os concretos sejam os construtores, aqueles, como os profundos, avessos à marginália.)

No último período dos parênteses acima, toquei em um ponto que me intriga e me convida mais e mais para debater com a sensibilidade e inteligência de Wilton: a digladiagem entre programas estéticos. O tópico motivador desta escritura, “Da littera: profundos, construtores e marginais”, comporta um paixonema em formato de axioma que me parece bem polêmico: “Se há possibilidade da sobrevivência do poema nos dias de hoje, só pode ser pela marginália”. Acho-o de uma unilateralidade perigosa. Preserva ditames para a poesia. A poesia sofreu ditames demais ao longo de sua história de –ismos. Julgo que a contra-aguilhoada que foi o modernismo tenha nos legado o fim dos ditames. Tenha os expulsado da república da poesia. Tanto que, em sua tese República mundial das letras, a crítica contemporânea francesa Pascale Casanova concentra sua discussão em autores de contextos à margem e de discursos à parte dos centros: Mário de Andrade, Beckett, Joyce, Faulkner e Arno Schimidt, que somente pós-45 foram industrializados. E industrializá-los tanto serve ao capitalismo, ao comércio da cultura e sua reprodução em massa, quanto serve à democracia da difusão estética, que faz autores refinados como Gullar — segundo ele mesmo em entrevista ao poeta Weydson Barros Leal — converterem o legado da cultura letrada ocidental em emoção audível pelos becos e pelas platéias.

De todo modo, o axioma: “O poema é um regime energético de atmosferas” dá ao discurso das escrituras de Wilton tal abertura que o buraco para cima que chamamos de Céu é obrigado a proliferar tentáculos e mais tentáculos. Exemplo: anti-sacralismo. Se a poesia é sagrada por excelência, como sempre insistiu Octavio Paz e como diversas vezes podemos ouvir de Mircea Eliade, a urgência de comunicação, a máquina raivosa da paródia, o processador de produtos como bem de consumo do capitalismo — com a efígie de Guevara em blusas da Colcci ou coisa parecida — e a morte da unidade religiosa puseram e põem em crise qualquer sermus sacrus possível à poesia, ainda que das miríades de suas sílabas ululem ou reverberem certa epifania ou litania ou anunciação das falanges melífluas de Maria nos socorrendo de nossos tropeços — que seria dizer pecatti, os pecados.

O Tratactus marginale: poesia e capitalismo está disponível para download em http://br.geocities.com/naumarginal/. Para baixar o arquivo-texto das escrituras wiltoneanas, cliquem no link “livros virtuais” do menu canhoto.

Para conhecer mais sobre Diógenes, O Cínico ou O filósofo cão, leiam: REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga: vol. 1. São Paulo: Loyola, 1993; DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres: vol. 6. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1987 — neste caso, temos as informações consideradas mais precisas sobre o filósofo, uma vez que apenas fragmentos restaram de sua obra.



Jamesson Buarque

jamesson buarque é poeta, professor, crítico literário e doutorando em estudos literários na ufg. publicou os delírios e novíssimo testamento. sente-se muito mais antigo do que sua idade tri-trina cristã. além de poesia e magistério, gosta de vinho, cachaça mineira, desenho animado, cinema, política, bíblia e fenomenologia, tudo misturado. importante: é sobre essa mistura sua coluna.
E-mail: jamessonbuarque@yahoo.com.br