Número 5









Editorial



Provocação primeira: Wesley Peres sempre nos dá a imagem-que-não? Em “Vaca de nariz sutil”, ao dispor o poema “Coisicidade” e o objeto-visual “Biografia de quando não vivi no Sertão”, em diálogo com “Goiânia”, de André de Leones, teríamos diante de nós a materialidade da palavra em nome da imagem? Suponho, e somente vocês, leitoresnautas, poderão debater com esta provocação, que a imagem-que-não de Wesley Peres forma o casamento de forma-em-si e paisagem mental e semântica que não pode ser traçado nos limites da referencialidade e das ablações das propriedades de alguma verdade.

De certo modo, a natureza verbo-visual da poesia de Wesley Peres é parente das imagens-em-nome-imagem-mesmo de Frederico Martins, da coluna “Cova do corvo”. Então a provocação se aguda: “imagem-sonho”, “cosmo” e “fundamento” são a poesia com segredo para dentro das colagens? Creio que, segredo, guardamos no bolso. Sendo assim, seria possível dizer que o poeta Frederico Martins os desguarda, pintando-os aos olhos em vozes de um ruído branco afeito em busca de um caminho sem geografia contra a angústia a serviço do grito? Quem aceitar meu convite, poderá discutir se de Peres a Martins a imagem-que-não se grava em nossos ouvidos pelas vistas. Creio que eu que os havia previsto em “página p.”, embora tenha citado apenas o primeiro. Com o não-manual “pautas da escritura ou biografia das pétalas”, este colunista da “página p.” terminou prevendo o segundo poeta, Frederico Martins, sobretudo na sétima pauta. Coisa bastante legítima de ser contestada.

Esse conluio interativo, suponho, caros leitoresnautas, não pára por aqui. Saltando para “Patchwork”, meu juízo implica que Patrícia Martins enche nossos olhos e acena de bem dentro da inteligência com seu texto “João Colagem: a Insustentável Leveza”. Nele, a colunista nos apresenta o artista plástico João Colagem, de Trindade/GO, radicado na Holanda. Dialogando com a primeira proposta, “A Leveza”, das Seis propostas para o próximo milênio, que são cinco, de Ítalo Calvino, a colunista interpreta João Colagem como um Perseu, cujos gestos artísticos se fundem em gestos de ação social que integram o sublime da arte à vida cotidiana, para o desenvolvimento da inteligência e da sensibilidade contra as máquinas de anti-ação da sociedade partidariamente organizada. Seria o caso, intriga-me o texto a pensar nisso, ver o mito de Perseu no trabalho de João Colagem? Eis minha provocação segunda, afinal, nossa colunista pode estar volvida por alguma particularidade e vocês, leitornautas, podem querer encontrar algo de mais legítimo nisso, uma vez que Patrícia Martins não se limita apenas a informar quem é o artista plástico.

Em “Neuropop” a ética da ação social, parece-me, volta à cena. Wilton Cardoso, em um ensaio que intrigantemente ele chama de “Conto turístico”, aproxima e afasta a indústria de turismo que age sobre Caldas Novas e Goiás (a Vila Boa). O colunista incita que a destruição da paisagem urbana, bem como o processo volátil de construção e substituição de edificações e comércio, é obra da máquina voraz do capitalismo. Embora reconhecendo que esta máquina age em Goiás, convertendo a cidade em mercadoria, Wilton Cardoso, no entanto, observa que neste caso há um serviço memorial cidadão, ao contrário do que ocorre em Caldas Novas. Isso me obriga a uma provocação terceira: estando Goiás convertida em mercadoria, sua condição de monumento à humanidade se presta, efetivamente, a alguma memória cidadã?

Provocação quarta: será um exagero de Heitor Dhalia, em O cheiro do ralo, fazer com que Lourenço identifique a garçonete desejada apenas pela bunda? Não seria isso que, no frigir dos ovos, importa à animalidade machista acesa apenas pelo cheiro do sexo, como se existisse um suposto estro feminino a serviço do falo-egocentrismo? Em conseqüência disso, será mesmo que nós espectadores não deveríamos encarar nossa própria ridicularidade? No mais, não seria o mundo de funcionamento limitado de O cheiro do ralo um mundo comum, tipificado na narrativa? Sendo-o, por que estaria aí um pecado do filme? Não sei, talvez eu esteja enganado. Talvez os leitoresnautas possam atender a esta provocação, visto que eu não sei as respostas, apenas as perguntas. Este é o caminho sugerido, creio eu, por Cristiano Pimenta, em “Êxtimo” — desta vez, dedicada a uma reflexão sobre a sexualidade machista no âmbito do filme de Heitor Dhalia, segunda a ótica lacaniana de nosso colunista.

E realmente me parece que nesta ruído branco 5 nossos colunistas, exceto este que também é editor, estão dispostos a provocar e provocar mais e mais vocês, leitoresnautas. Eu, sendo um, não ficaria calado. O próximo caso, provocação quinta: “Pocotó: uma odisséia musical” é a peça de Paulo Guicheney desta edição. A versão do clássico eqüino é orquestrada pelo próprio Guicheney, e também por Karlheinz Stockhausen, pelo Pe. Marcelo Rossi, por Philip Glass, Heitor Villa Lobos e pelo silêncio de flauta ausente do compositor goiano Estércio Marquez Cunha. Simplesmente uma piada, como quis nosso colunista, ou um presente para seu gosto musical, caros leitoresnautas?

Como provocação pouca é bobagem, então provoco mais: provocação sexta: voltando ao cinema, e agora numa polêmica perspectiva ética: Amarelo manga e Baixio das bestas, de Cláudio Assis, são fracassos éticos e estéticos? É mesmo o primeiro francamente ruim e o segundo realmente intolerável? E seria tolerável intolerar? Limita-se o diretor a “um discurso esquerdista fuleiro, morto e enterrado”? Ou as imagens e a previsibilidade dos filmes são propriedades de um mundo cru latindo nas ruas e o esquerdismo ainda é o equilíbrio na balança das tensões sociais? Tanta perturbação é o que acredito que pode prender vocês, leitoresnautas, a “Mieloma de Ocasião”, de André de Leones. Como antes, também acho que não sei as respostas.

Ruído branco, como todos sabem, não acaba em suas colunas. Em “Contribuições” há o conto “Solidão no 303”, de Leandro Resende — jornalista da área de economia do jornal O popular. Ainda nesta coluna, o reconhecido publicitário goiano e poeta Marcos Caiado nos dispôs alguns de seus poemas. Notem todos que esta coluna, a partir desta edição, está vinculada à sessão “Submissões”, onde tratamos de nossas “exigências” para participação em ruído branco doravante. Outra novidade no menu à direita é a sessão “Expediente”, que denuncia, mais de perto, quem somos. E como disse, ruído branco não acaba nas colunas e também nas sessões: espero ouvir um debate fervoroso com todas as provocações. Para tanto, basta escrever para o e-mail abaixo. Estou esperando!



jamesson buarque






Editor

Jamesson Buarque


Coordenação Geral

Jamesson Buarque

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Colunistas

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Música de Abertura

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Revisão

Dheyne de Souza


Webdesign

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Webmaster

Wellington Santos Martins


Idealização

Wesley Peres




Vaca de Nariz Sutil



Coisicidade

Ária vazia de olhos, igual a

um koan de madeira, estou
ao lado, um ninguém de ecos

sopra a palha e o vento
desliza em minha boca aberta
secando a língua e suas

janelas fechadas.

Um dia colecionarei aldravas
e moinhos de areia
e ruídos de cidade.

Wesley Peres




Autobiografia de quando não vivi no Sertão

Imagem: Wesley Peres





Goiânia

(FISIOLOGIA GOIANIENSE)

Goiânia não é orgânica.
Sua topologia fina, de poucas camadas,
não pulsa. Sua fisiologia,
restringível ao trânsito difícil,
de intestino grosso,
compõe-se de ruas e praças em negativo:
enxerga-se o contrário dos lugares,
escuros de onde emergem
traços de coisas feito ossos
em chapas de raio-x.
Goiânia não se permite corpo,
aquário seco de cujas torres
saltam aventureiros.


(A EDUCAÇÃO PELO AZUL)

A morte azul é pré-didática: cancerigienizadora,
não soletra vísceras carne ou corpo.
A morte azul nos iletra a carnadura,
torna-a maleável.
A morte azul nivela por baixo
qualquer fisiologia.

Em Goiânia, orgânico só o tal acidente.

André de Leones




Wesley Peres

Wesley tem 31 anos, mas sempre acham que ele tem cara de 30. Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, com o romance Casa entre Vértebras, a sair em junho pela Editora Record. É autor de Água Anônima (Prêmio Cora Coralina, 2001) e Rio Revoando (Com-Arte/USP, 2003). Em 2007 lançará Palimpsestos, pela UFG. Acha deplorável pessoas que gostam de Fanta Uva, gosta muito de estourar aquelas bolinhas de plástico e da literatura produzida na Papua-Nova Guiné. Ah, é psicanalista e mestrando em literatura pela UFG. Mora na Cataluña. E-mail: wesleyperes@uol.com.br





Cova do Corvo



"Trata-se de encontrar as palavras para muita coisa que permanece muda em mim"
Freud


A coluna Cova do Corvo apresenta, nesta edição, a série de três imagens intitulada "Dos Fatos Indutivos" (1. imagem-sonho, 2. cosmo e 3.fundamento). Frederico descreve este trabalho como "um jogo de mensagens criptografadas". É só conferir!



imagem-sonho




cosmo




fundamento






Frederico Assunção Martins

Frederico é responsável pela identidade visual da Revista Ruído Branco desde de a sua criação. Fred é contra-baixista e também explora as mais diversas linguagens de criação artística.
E-mail: selfgrind@yahoo.com.br





C-dur



Pocotó: uma odisséia musical.

Uma piada, apenas isso!



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Paulo Guicheney

Paulo Guicheney é compositor. Quando criança teve de optar entre ABBA e Trio Parada Dura. Optou por ABBA, mas depois descobriu que a coisa pegava mesmo era com Beethoven. Estudou piano e composição na UFG, onde também fez mestrado em música eletroacústica. Atualmente leciona composição na UNB.
E-mail: pauloguicheney@hotmail.com




página p.



pautas da escritura ou biografia das pétalas


primeira pauta para a escritura: (1) se quiser todas as pétalas, a pétala que é morrerá. (2) A uma pétala somente é possível uma queda. Os acenos de ascensão somente o vento processa. (3) Uma pétala se casa a uma outra que se casa a uma outra que se casa a uma outra etc. e isso somente ocorre por vontade da cola, não das pétalas, senão todas despetalar-se-iam em várias quedas. (Isso quer dizer encontrar as pétalas. É preciso muito exercício, vontade e uma psicose para encontrá-las. Solução: “Procura da poesia”, do poeta eterno, porque cansado de ser moderno.)

segunda pauta para a escritura: (4) o tamanho da pétala dispensa a extensão da rosa. (5) Uma rosa é um sopro de pétalas casadas pela vontade de colagem da cola. (Há uma rosa lusófona de oito mil oitocentos e dezesseis pétalas.) (6) uma pétala precisa para si um gesto de pedra, e, de volta, a pedra pétala — que implica em levitar para tocar os poros do vento, e assim, se não germinar mais pétalas, fecundar o perfume da rosa ou das rosas vinda(s) do casamento das pétalas. (Isso quer dizer dominar a jardinagem das pétalas em nome das rosas. Exemplo: “Invenção do mar”, do oráculo de Ipueiras.)

terceira pauta para a escritura: (7) uma pétala, se pétala mesmo, é uma arma. (8) Somente há salvação se seta uma pétala contra as barricadas da política partidária, dir-se-ia organizada. (9) Pétalas são para desorganização — há três formatos de desorganização forjados pelas pétalas: negação, indiferença e subversão. (Isso quer dizer descobrir a razão de existência das pétalas para provocar alguma funcionalidade em virtude das rosas. Casos superiores por ordem de formato: “Meditação sobre o Tietê”, “O país dos Mourões” e “Poema sujo”, de Mário, o Andrade; Gerardo, o oráculo de Ipueiras; e Ferreira, o Gullar.)

quarta pauta para a escritura: (10) silêncio não compete para mudez, por isso as pétalas assobiam enquanto quedam. (11) Silêncio é o vazio e outro entre um verso e outro quando uma pétala fala — e o silêncio é fotografável, inclusive está em fotografia (vide Maneco, o Manoel de Barros). (12) A principal gramática do silêncio é a escritura-em-si — e a escritura-em-si é aquele montinho de letras casadas e com espaço entre e dentro, como casadas as pétalas em posição de falos enterrados nos lábios da corola, que é senão a vagina de ilha das rosas. (Voltar a Maneco, “Gramática expositiva do chão”. Quando digo voltar, voltem vocês que acaso me lêem; eu não sei voltar porque desaprendi meu formato de caranguejo nalgum livro que não sei.)

quinta pauta para a escritura: (13) sem idade, uma pétala adormece no hálito de fóssil da mudez, que é não-ser-de-não-sendo-quando-foi. (Wesley Peres tem idade, é ir a “Palimpsesto” para reconhecer, sobretudo à página cinqüenta e nove — depois daquele poema, se ele morresse, teria legado uma pétala-de-toque da mais nova petalaria velha lusófona. E tenho dito. E quando tenho dito, é verdade.) (14) Idade é para reconhecer, por isso as pétalas quando secam, secam entre páginas e viram ninho de onde brotam pássaros a desamão. (15) Ninguém tira de minha cabeça que qualquer cabeça jardineira de pétalas tem a idade que tem somada a idade que tem cada um ancestral fêmea e macho plantados na árvore de pétalas da história, onde os pássaros cantam distribuindo pedras. (Sobre tanto, leiam com certa urgência — inclusive podem parar de me ler para isso — a pétala “Pequena ode a uma pétala seca ou a esperada ressurreição da rosa”, de Gerardo Mello Mourão, em “Algumas partituras”, este oráculo de Ipueiras.) (Intervalo único:

Pequena ode a uma pétala seca ou a esperada ressurreição da rosa


Entre folhas de versos de Propércio

jaz a pétala seca a flor enxuta;

a rosa úmida e inteira jaz na gruta

do amor e da memória do poeta.


O que era rosa agora é quase espinho

e na pétala seca o que se oculta

é uma rosa de sonhos insepulta

um pássaro do qual só resta o ninho.


Talvez um dia, amor, orvalho e aurora

à mão da musa que a colheu em flor

ressuscitem aroma e forma e cor

e rosa torne a ser o que foi rosa outrora.


Talvez um dia a flauta antiga toque Orfeu

e à pétala fiel as que se foram, voltem

e da corola nunca mais se soltem

e o rouxinol torne a cantar no ninho seu.)


sexta pauta para a escritura: (16) escritura requer formato de sino: imagem cantando do escuro afora. (17) Matérias para o sino: imagem-imagem-mesmo, som de língua de gente, papel queimado a vela de cera velha, papel-somente-papel, bits, tinta variada (de caneta, impressora, de pintura etc.) — p.s.: não há fórmula para o uso, nem é bom misturar tudo, senão explode; como disse Maiakovski: “Não existe fórmulas para fazer poesia; chama-se poeta justamente quem inventa tais fórmulas”. (18) Assim o sino agora pétala. (Aproveitem a deixa: vão ao “Mistério bufo”, de Vladímir Maikóvski.)

sétima pauta para a escritura: (19) um formato de sino é a contração em síntese de imagem formal e semântica e mental. (20) Assevero que uma pétala é uma imagem tridimensional, por isso cola nela e a tríade de formatos e arma e a gramática do silêncio e sua idade — se tomarem tudo como para uma didática, releiam da primeira a esta última pauta, porque certamente não entenderam nada; ou, caso contrário, não releiam, e terão entendido (relativamente) tudo. (21) A multidimensão é uma variação dentro da tridimensão de acordo com a acuidade visual e auditiva; decorre do fagulhamento de granadas no tecido de flor das peles de época a época — em outras palavras, não é para qualquer um, mas pode ser aprendida. (Para aprender em lusofonia-indo-à-brasileira: D. Dinis, Gil Vicente, Camões, Mariana Alcoforado, Cesário Verde, Gonçalves Dias, Augusto dos Anjos, Gilka Machado, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Mário de Andrade, Mário de Sá Carneiro, Cecília Meireles, Murilo Mentes, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Canção, Pinto do Monteiro, Ferreira Gullar, Dora Ferreira da Silva, Hilda Hilst, Gerardo Mello Mourão, Manoel de Barros, Afonso Félix de Sousa — e deixo vocês acrescentarem mais alguém que possa se medir ombro a ombro; medida de pétala: imagem tridimensional e cola e a tríade de formatos e arma e a gramática do silêncio e sua idade.)

p.s.: não sei porque jardineiros não podem exercício de aprendizagem. Músicos estudam música, artistas plásticos estudam arte plástica, atores estudam dramaturgia, escultores estudam escultura, arquitetos estudam arquitetura, cineastas estudam cinematografia e por aí vai. Danem-se os corretos. Cancão e Pinto do Monteiro estudaram jardinagem de boca-em-ouvido; Pessoa e Drummond estudaram de olhos-em-letra; Camões e Gerardo estudaram de boca-em-ouvido-e-olhos-em-letra, simultaneamente. E quando digo simultaneamente é simultaneamente mesmo — quer dizer: um sentado ao lado do outro, vendo o Tejo desaguar na boca de Maragogi, onde o mar é mais azul do que o Cáspio e o Egeu se ou se não se misturados. Misturar nunca é bom. Bom mesmo é colar.

obs.: um exercício:


“Paisagem do travesseiro” — episódio de outra tróia

Para patrícia martins e paulo guicheney


Se existe esta paisagem:

O poente sobre a cama

Dissolvendo a vidraça

Com seu banho de laranja,

Fatalmente os olhos lembram

Do sono quando chega

Anestesiados no refúgio da penumbra —

Nas conchas das pálpebras,

Talvez um cão resmungando

Quando o que mais importa é enxergar

Esta paisagem: o crepúsculo à vidraça

E o fogaréu lambendo a cama.


Porque existe a língua, esta espátula

Borra os pêlos e eles falam

De dentro da água da saliva

Brotando de flores de bactérias

Um suspiro sagrado:

Queremos mais dança sobre nossas ancas;

Assistir a isso tudo

E acreditar nesta paisagem

É gesto para invertebrado

E até onde se sabe de invertebrados

Invertebrados não gesticulam

Ou é preciso dos invertebrados desvendar os gestos,

Que seja descobri-los:

Tirar-lhes as cobertas ou cobertores

Para perscrutar o frio

Se se arrepiam ou se é pesadelo

Esta paisagem com uma cama dentro.


Se for cama e vidraça e sol apenas,

Por que o travesseiro não reclama?

Se o travesseiro reclamasse

Ou se lhe fosse possível reclamação,

Certamente não perceberia que adormecia

E sua existência entraria em crise

Medida a chávena preenchida de chuva;

De tanto se esborrar do esboço

Das dúvidas que plantou em sono outrora,

Então das bátegas brotaria um rio

E dele a agonia do sonho feneceria

Esta tentativa de tatear o que não se alcança.


Travesseiros existem para sono e sonho

E não esperam sobre a cama,

Que seja espera, guarida ou vela,

Que seja dizer que não têm esperança,

Não esperam, se dizia,

Que feneça a agonia, o tato quando tenta

Alcançar o desafio da laranja

Dado aos olhos cosidos fio a fio

Pelo tecido das grisalhas olvidadas

De tecer destino que não se apalpa.


Travesseiros valem a pena como pomo,

E somente os mais caros estofam o estojo com penas,

Porque assim têm substância de sumo

E fluem espesso ou caudaloso rio

Como uma espada urinando

Ou um cavalo ou um bêbado ou um cão;

Caso contrário, minguam,

Que seja dizer que mijam

Filando o único fio de veia

Ou veio de imaginação,

Esta fábrica de paisagem inconsútil

Onde carneirinhos gerenciam a contabilidade

A serviço de ombrear travesseiros a invertebrados

Em nome desta paisagem plantada em chamas

Que plumam pelo prisma do vidro.


O travesseiro observado em particular

Conduz para um lugar onde há um vale dentro

E um lago para mais dentro

Caraminholas e aranhas e uma porta

Que dá para uma livroteca

Onde dos países a geografia

Está fiada sem fuso horário

Nos diários ou jornais, nas crônicas

Dos dias diante de um relógio parado

Pela hora morta como morta a rua

Onde os vizinhos medem os ônibus

E medem seus automóveis em particular

Pela xícara de café e pelo giro da chave

Enquanto o travesseiro não arreda os pés

De onde os musgos das unhas alcançam

A ossatura mais paleolítica de sua biografia.


Seria dizer que o vale traz notícias de Tróia

A anciã e nas estantes da livroteca os livros sangrariam

Um grito antigo de escudo e espada e lança;

Seria dizer que a Helada é capítulo da História

A serviço de Ihwh revelado a Moisés contra Síon

Uma decisão de desvario

Um se amofinar no mofo das páginas

Para julgar os fungos apenas como fungos

E como fungá-los não fosse uma faceta da fantasia

Que assevera que os fantasmas são personagens

Enterrados capítulo a capítulo dos livros

E o sangue uma ilusão de ótica,

Artifício de um desejo contido

Pelo desespero de urdir os lábios sozinho.


Estar sozinho amotina as dúvidas;

Sabia disso Leonardo

E nem suas asas deltas nem seu helicóptero plumaram:

Caíram até o fundo do copo d’água

Sem fazer a água invadir o vale e beijar o lago;

E nem venturiano se trocou pelas caraminholas,

Permitiu-se apenas a calcular os passos

Até que um dia se vestiu de preto

E passou perfume e passou batom

Então se retratou desprendido dos traços do estúdio:

Havia um vale dentro e era verde

E os homens cortavam os horizontes

Com as pernas movendo máquinas

Automotoras que não se moviam sozinhas ainda.


Mover-se é para lançar um mote

E lançá-lo a vara, varando o longe

Para além da lonjura da distância

Onde residem as reticências;

Não seria levar notícias do sono

Viajar sem empacotar um sonho,

Por faltar o formato de pomo

Não haveria sumo dentro

E se não jorrar suco de um mundo que seja

As cascas não são casulos

Nem são casas,

E são apenas frutas por onde passam as facas

Cortando fora as asas das borboletas.

Esta é a paisagem de outra tróia

Com a anciã dentro e dela.


pauta coringa para a escritura: pétala rosa pedras pássaros afora.




Jamesson Buarque

jamesson buarque é poeta, professor, crítico literário e doutor em estudos literários na ufg. publicou os delírios e novíssimo testamento. sente-se muito mais antigo do que sua idade tri-trina cristã. além de poesia e magistério, gosta de vinho, cachaça mineira, desenho animado, cinema, política, bíblia e fenomenologia, tudo colado. importante: é sobre essa mistura sua coluna.
E-mail: jamessonbuarque@yahoo.com.br





Êxtimo


PELOS ORIFÍCIOS D’O CHEIRO DO RALO


Gostaria de comentar alguns aspectos do filme O cheiro do ralo, originado do livro homônimo de Lourenço Mutarelli, e dirigido por Heitor Dhalia e protagonizado por Selton Mello e Paula Braun, e que está prestes de sair de cartaz na nossa cidade.

Trata-se da história de Lourenço (Selton Mello), que trabalha num galpão onde aqueles que estão desesperados por dinheiro vão vender seus pertences. Instrumentos musicais, relógios, caixinhas de música, além de todo tipo de quinquilharia, como um olho de vidro ao qual o personagem de Selton Mello permanecerá fixado. A frieza de Lourenço nas negociações é calculada para constranger seus clientes para além, ou para aquém, de toda e qualquer dignidade. A única situação que o deixa constrangido é o cheiro que vem do ralo do banheiro, situado a alguns metros da mesa onde trabalha. Os visitantes não fazem menção ao cheiro. É o próprio Lourenço que se auto-denuncia. Um deles, o violinista que vem vender seu stradivarius, indignado, interpreta Lourenço, dizendo que o fedor exalado vem dele próprio, e que não há diferença entre o ralo fétido e o comprador mesquinho.

Não é só ao olho de vidro que ele se encontra fixado. Ou melhor, o suplemento desse olhar é o objeto visto, o objeto que se destaca dos demais, valorizado como o mais caro e que não é propriamente transcendente para Lourenço, pois é suposto como podendo ser comprado: a bunda.

Uma das cenas iniciais é o longo close na bunda da bela, mas inculta garçonete (Paula Braun) – uma espécie de loira burra pobre, cujo nome soa a Lourenço como inaudível, impronunciável. O desafio de Lourenço nessa relação, que não poderíamos chamar propriamente de amorosa, é o de ter essa mulher sem que ela se envolva afetivamente com ele, pois ele não se interessa por outra coisa a não ser sua bunda.

Achei que ficou um pouco forçado e exagerado o personagem de Lourenço não perceber que a garçonete foi substituída e pedir à substituta (Alice Braga) que se vire para que ele possa ver sua bunda, única coisa que ele consegue reconhecer realmente na mulher desejada. Ora, ele poderia perfeitamente ver que não se trata da mesma mulher e ainda continuar dando toda a primazia à bunda. Nós, expectadores, não precisamos vê-lo incapaz de diferenciar essas duas mulheres para concluir que ele só tem olhos para a bunda.

Aliás, o olhar da câmera pode ser definido como o olhar do próprio Lourenço, olhar fixado não apenas no objeto eleito, mas olhar que olha a priori desde um ponto fixo, rígido, congelado, limitado. Nas cenas em que vemos Lourenço andando pelas ruas, a câmera está num ponto fixo, olha de uma distância estática. Essa posição da câmera prevalece em todo filme.

O cenário anacrônico da década de setenta também sugere que Lourenço ficou para trás. Toda essa fixidez e limitação traduzem a posição subjetiva/sexual do próprio Lourenço. Essa posição é marcada, no fundo (fundo que é também superfície), por uma maldição, à qual todo perverso está submetido: a maldição do gozo, a maldição de estar preso, capturado e dominado por seu objeto de gozo sem nenhuma mediação. Todas as relações de Lourenço são reduzidas ao nível do mar, ao nível mais baixo, ao nível exclusivo da relação com o objeto de gozo, objeto contabilizado pelo seu preço. Não que as pessoas não participem disso de alguma forma. Elas participam quando são convocadas por Lourenço a serem olhadas pelo olho de vidro. Esse é o momento do prazer propriamente perverso, o de angustiar o Outro, seja fazendo dele objeto visto ou objeto que vê (exibicionismo, vouyerismo), ou ainda objeto que espanca ou é espancado (sadismo, masoquismo). Produzir o gozo do Outro sob a forma de seu angustiamento é o verdadeiro objetivo do perverso.

A relação de Lourenço com a mulher não é simplesmente uma relação metonímica em que ele, Lourenço, toma a parte de uma mulher (sua bunda) pelo todo (um corpo, um relacionamento)”, como disse o crítico da Contracampo. O que caracteriza a relação metonímica é o fato de haver facilmente acesso entre o termo que vem substituir e o termo substituído. O termo substituído está perfeitamente ‘à mão’. Se eu digo, passei a tarde lendo Camões, o termo substituído, a(s) obra(s), o(s) livro(s) de Camões, são significantes contíguos na cadeia, estão subentendidos. Por isso mesmo é que é indelicado fazer chistes do seguinte tipo: o rapaz na paquera diz: você me dá seu telefone? Ao que ela responde: não posso, só tenho um. Ao que ele poderia lhe responder: não se faça de desentendida.

O fato é que não existe na subjetividade de Lourenço a dimensão do objeto como um todo, a dimensão da mulher enquanto tal, esse todo que seria substituído pela parte. A presença da mulher requer a dimensão do amor, que está completamente excluída da subjetividade de Lourenço. Essa exclusão da mulher em benefício de uma relação direta com a parte do corpo é o que, dizendo de passagem, caracteriza a relação da pulsão com seu objeto. A pulsão, diz Freud, é sempre parcial, o que quer dizer que ela se satisfaz com partes do corpo. Lourenço não tem condições de ter uma mulher, de ter uma relação amorosa e até mesmo de se casar, como ele mesmo evidencia ao romper seu noivado com a desbundada noiva.

Neste sentido, a garçonete, como “toda” mulher, sabe, aliás, que sua bunda tem um papel proeminente na relação com seu homem, pois ela estava disposta a dá-la: eu te daria ela de graça. O que ela não tolera, quando Lourenço propõe pagar pela sua bunda, é a exclusão de toda dimensão propriamente amorosa, na qual o que se troca não pode ser mensurável, contabilizado. E é justamente sua exigência de amor que lhe permite, neste momento, preservar sua dignidade e não sucumbir a tornar-se mais um na série dos objetos comprados por Lourenço. Contudo, no final, ela se vende, proporcionando a Lourenço sua visão mais bela, cena em que vemos um close privilegiado de sua bunda, abraçada em seguida por Lourenço.

Em geral, gosto muito dos comentários que procedem dos próprios atores sobre os filmes que eles fazem, mas discordo de Selton Mello quando ele diz, segundo Luiz Carlos Merten, que O cheiro do ralo é a história de um canalha que se redime por amor a um derrière. Na verdade, todo seu esforço em reencontrar a garçonete e de ser um pouco mais delicado com ela não passa de algo a que ele tinha de se submeter para poder ter a bunda. Ele não se redime. A cena em que, no momento mesmo de sua morte, ele se arrasta até o ralo para seu último suspiro, deixa evidente que seu único interesse continua sendo a bunda, ou, mais precisamente, esse orifício em seu centro, do qual brota os odores mais fétidos e com o qual ele mesmo se confunde e se identifica. Trata-se do orifício da pulsão anal, é com ele que Lourenço está realmente às voltas, tentando dar-lhe uma solução sem, no entanto, estar disposto a pagar por ela (como notou Luis Gallego, ele não se dispõe a pagar 300 reais pelo conserto do ralo, mas gasta 400 na compra do olho de vidro e muito mais com a prostituta). Esse buraco não pode ser tapado definitivamente, por mais esforços que ele faça, pois trata-se aí de um gozo do qual ele não é capaz de abrir mão. É por isso que ele não se redime.

Esse personagem expõe a céu aberto aquilo que Lacan chamou de a causa de desejo. Um homem só deseja uma mulher quando ele encontra ou distingue nela uma parte de seu corpo que tem o efeito de captura da sua libido, que é seu interesse sexual. Lacan deu a estes objetos da pulsão o nome de objeto pequeno a. O que distingue o perverso Lourenço de um sujeito neurótico é o fato de que este é capaz de envelopar esse gozo, de recobri-lo com os véus do amor. Neste caso, a mulher amada pelo neurótico poderá ser idealizada, idolatrada, amada, até o ponto de, no limite, tornar-se um objeto que não pode mesmo ser tocado.

Embora O cheiro do ralo seja um filme interessante e que vale a pena ser visto, ele peca em algum lugar que não sabemos muito bem localizar. Penso que esse ponto se encontra não no fato de ele poder ser reduzido a um caso clínico psicanalítico como se disse, mas em nos apresentar um mundo fechado sem possibilidade de mudança, mundo em que prevalece a rotina e não há lugar para nenhum acontecimento não previsto por esse funcionamento limitado. O assassinato de Lourenço no final do filme é uma decorrência lógica do seu modo de ser e, neste sentido, é um acontecimento previsível. Um dia ele acabaria se dando mal. O que faltou foi um acontecimento imprevisto que subvertesse ou mesmo questionasse de algum modo toda essa montagem, que fizesse com que ela (essa montagem de sua vida, seu modo de gozo) perdesse seu sentido habitual, e com isso, o próprio Lourenço experimentasse a perda de si mesmo. Aí o autor permaneceu fechado, tal qual seu personagem, não ousou... O autor deu uma de Lourenço... Ops! Como é mesmo o nome do autor do livro em que o filme foi baseado? Lourenço Martelli.




Cristiano Alves Pimenta

Nascido em Goiânia, vivido na velha, ou não tão velha, Vila União, logo começou a ler coisas por conta própria e se deparou com uma epígrafe de autoria de Antonio Gramisci: “Todos somos filósofos”. Pronto! Primeiro raciocínio propriamente filosófico: “Se todos os homens são filósofos” (premissa maior), e “Cristiano é homem” (premissa menor), logo: “Cristiano é filósofo”. Tornou-se, então, um jovem filósofo, amante da verdade, leitor de K. Marx, Sartre, Hegel, entre outros. Foi salvo da megalomania apenas pela humildade, que o obrigava por à prova os produtos dessa ratio pessoal. Tortuosos caminhos o levaram, contudo, da faculdade de filosofia (USP) para a psicanálise Freudo-Lacano-Milleriana. Outro pronto! O amor à verdade caiu. Hoje, mais lhe vale uma “ilusão útil” (Baudelaire) do que mil verdades inúteis.
E-mail: cris.alvespimenta@yahoo.com.br








Mieloma de Ocasião


PORNOCHANCHADA HARDCORE


Já disse, escrevi, e repito: o cinema de Cláudio Assis é um fracasso ético e estético. Explico logo de cara: ele, que intenta denunciar o caos social, a exploração da mulher, o bestialismo e a violência cotidiana, realiza filmes que acabam sendo, eles próprios, caóticos, exploradores da mulher, do bestialismo e da violência cotidiana. Nunca um tiro saiu pela culatra com tanta força e com tamanho estrondo no âmbito do cinema brasileiro.

O filme mais recente de Cláudio Assis, o premiado Baixio das Bestas, aprofunda os problemas verificados no anterior, e primeiro longa do cineasta, Amarelo Manga. Se Amarelo Manga era apenas e francamente ruim, Baixio das Bestas é intolerável. Poucos filmes, ao filmar a torpeza e as brutalidades de uma pá de personagens, conseguiram atingir um resultado tão desastroso. Tudo nele é caricato, desajeitado, velho e, acima de tudo, risível.

Tome-se como exemplo a personagem Auxiliadora (Mariah Teixeira). Seu avô e pai (Fernando Teixeira), a fim de garantir uns trocados, exibe a nudez da menina para uma platéia punheteira de caminhoneiros e desocupados. Viram? Há uma denúncia aqui, de uma realidade degradante e trágica. Ninguém, é claro, duvida que uma coisa dessas aconteça, e aconteça com uma freqüência assustadora. O problema é que, mais adiante, a câmera de Assis focaliza a mesma personagem tomando banho em um córrego, só de calcinha. O diretor, em matéria publicada na revista Piauí deste mês, defendeu-se dizendo que precisava mostrar a personagem em seu espaço. Ahã. Colocou-se na mesma posição do avô/pai explorador. E, pior, coloca o espectador na mesma posição dos onanistas. O problema, creio, é que o cineasta não sabe mesmo o que está fazendo.

A matéria publicada na Piauí foi a primeira crítica negativa do filme que li na grande imprensa. Nela, dar voz ao diretor foi a maneira encontrada pelo jornalista de, vejam só, corroborar o próprio ponto de vista crítico em relação ao filme. Porque basta deixar Assis “defender” seu trabalho que ele se estrepa sozinho. Sempre. Por outro lado, todos os grandes jornais e alguns festivais se renderam a uma suposta beleza plástica do filme e ao seu tom incisivo, desbragado, violento, de “denúncia”. Muitos elogiam os filmes de Assis dizendo que ele domina como poucos “autores” brasileiros a técnica cinematográfica, que seus filmes são bem fotografados (também, com Walter Carvalho no time) e bem montados. A que ponto chegamos... Posso estar enganado, mas saber fotografar e montar é o mínimo para alguém que se diz cineasta, não? Logo, elogiar um diretor de cinema por isso é como elogiar um sorvete porque ele está assim bem gelado.

Em uma “cena-chave” de Baixio das Bestas, um dos personagens, olhando diretamente para a lente, diz que no cinema pode tudo. Mais adiante, o pai-avô explorador é justiçado pelo Maracatu (é ver pra crer, numa cena que levou pessoas a gargalharem no cinema em que eu estava). Uma prostituta é brutalizada por um bando de “machões” que, para tanto, utilizam um pedaço de pau (ah, as sombras...). Lá pelo meio do filme, outra prostituta é sodomizada e recebe sucessivos chutes na cabeça. A menina aparece despida uma pá de vezes e, claro, termina como puta, porque no cinema de Cláudio Assis, tão socialmente consciente, as mulheres são, foram ou serão putas.

Não tenho nada contra a pornografia, mas tenho tudo contra pornografia travestida de outras coisas. Em outras palavras, odeio hipocrisia. Quer fazer uma pornochanchada hardcore, filho? Faça, mas, por favor, chame as coisas pelos seus devidos nomes e não se esconda atrás de um discurso esquerdista fuleiro, morto e enterrado. No fundo, acredito, Cláudio Assis é um humorista. Poucos filmes brasileiros recentes são tão tristemente engraçados quanto Amarelo Manga e Baixio das Bestas.




André de Leones

André de Leones nasceu em Goiânia no ano da desgraça do nosso senhor eu-sei-que-você-não-existe 1980. É autor do romance "Hoje está um dia morto" (ed. Record), vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2005 e na época ele achou que isso significava alguma coisa. Venceu também, com um livro de contos de título engraçado nunca publicado, o Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, mas esta piada já é velha. Mantém o blog http://canissapiens.blogspot.com, cheio de piadas mais novas.
E-mail: alleones@gmail.com





Neuropop


Conto turístico


O turista que foi a Caldas Novas 15 anos atrás e voltou somente agora seria tomado de estupor diante da fúria de demolição e construção que se apossou da cidade. Casas de comércio, prédios, clubes, bairros e fortunas, tudo é some aparece de súbito e a cidade cresce exponencialmente, em população, riqueza e extensão. Em Caldas Novas, quase nada se preserva e quem caminha hoje por suas ruas, daqui alguns meses verá que muitas lojas fecharam, outras abriram e outras ainda se modificaram, do mesmo modo que as pessoas raramente se fixam por muito tempo em um trabalho: a obsolescência e a descartabilidade são as leis da cidade.

A Cidade de Goiás certamente não deixou de crescer nestes últimos 15 anos, mas há um permanente esforço de conservação de seu patrimônio histórico, seja ele simbólico (tradições) ou material (construções). Este esforço se dá por dois motivos que se auto-alimentam: uma consciência coletiva e cidadã de preservação da memória do estado e do país; e porque o turismo do qual a economia da cidade depende cada vez mais necessita desta conservação.

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Caldas Novas é uma cidade balneário muito particular, pois as pessoas não a procuram apenas por conta do poder terapêutico de suas águas termais. Se assim fosse, o perfil de seu turista seria o idoso. Mas ela é freqüentada por pessoas de todas as idades. Suas águas quentes exercem uma espécie de fascínio que atrai de crianças a velhos, passando pelos jovens. Aliás, com estes acontece um fenômeno de massa muito comum (como nas praias) no qual um amontoado juvenil atrai mais pessoas e assim sucessivamente num efeito bola de neve, a ponto de, no carnaval, a cidade ter problemas por conta de excesso de turistas.

Esta bola de neve juvenil tem características muito peculiares, pois é feita de jovens em trajes de banho e em estado festivo, não raro regrado à cerveja. Caldas Novas é a cidade dos corpos em transe: Hidra, Baco e Vênus. Mas o fio condutor desta tríade é Hidra, que se compõe com os corpos desnudos à procura de amor e embriaguez, é a água, este elemento primeiro e anterior que, em forma de piscinas termais, fascina e atrai a massa turista para o seu corpo informe.

Na Cidade de Goiás há um outro clima, mais cult e alternativo. O atrativo é a tradição rude e brutal dos ocupantes antigos de Goiás. Esta tradição se transfigura numa atmosfera que atrai uma “população mais consciente da importância da memória”. É claro que há também Baco, Vênus e até mesmo Hidra, pois nos arredores da cidade, no Rio Vermelho ou no Bacalhau, os jovens se encontram em trajes de banho e os corpos se mostram e se desejam como em Caldas Novas. Aqui também há o fenômeno bola de neve, mas o elemento condutor é a história, ou melhor, a história paralisada na forma de conservação dos prédios antigos e algumas tradições, como a procissão do fogaréu e dos doces caseiros.

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Tanto em uma como em outra cidade ocorre ainda um curioso fenômeno. O chamado turismo ecológico, propiciado principalmente por duas serras, a de Caldas, um esplêndido platô a oeste de Caldas Novas e a não menos impressionante Serra Dourada, nas cercanias da Cidade de Goiás. Aqui, outro elemento ancestral atrai o turista: a Natureza.

Outra coisa comum a ambas as cidades (na verdade a todos os locais turísticos) é a presença maciça da canção popular, seja em shows, nas margens das piscinas e córregos onde os corpos se banham ou na noite de bares e boates. O ar das cidades turísticas é saturado da canção de sucesso (sertaneja, axé, dance, rock) ou, em menor grau, alternativa (mpb, samba, caipira). São as massas turistas em conexão com Orfeu (Orfeu-pop), o que não deixa de ser uma espécie de embriaguez.

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O elemento-chave, de fascínio, o que atrai as pessoas numa cidade turística é, em geral, um fenômeno de margem. Algo que se encontra à margem da sociedade e que, normalmente, não teria uma serventia imediata para o cotidiano das pessoas, estados e empresas: águas termais, praias, tradição histórica, natureza preservada. A estes elementos-chave juntam-se outras coisas marginais, que circulam na sociedade, mas de forma clandestina ou camuflada, tais como o corpo desnudo e os entorpecentes, ou na forma de entretenimento para encher as horas ociosas, caso da canção (a poesia de agora). Enfim são coisas ociosas e marginais para a economia das sociedades. E talvez por isto mesmo sejam atraentes para as pessoas: os fluxos de margens são um fascínio para os fluxos que circulam no interior do sistema, pois implicam no seu limite, além do qual se desdobram riscos e mistérios cuja exploração é o exercício de uma ousada liberdade das regras e hierarquias sistêmicas: o fascínio da viagem, da ida que talvez não tenha retorno ou da qual se retorna outro.

Por outro lado, se as sociedades atuais dispõem desses lugares (geográficos ou sociais) ociosos, as pessoas de classe média ou alta, que se encontram num estágio de “desenvolvimento” (mesmo em países ditos subdesenvolvidos), dispõem, em maior ou menor grau, de momentos ociosos, que vão do descanso diário até as férias, passando pelo fim de semana. Isso sem falar nas pessoas que tem boa parte ou quase todo o seu tempo ocioso, como os jovens, crianças e os velhos. Esta também é uma duração de margem, na qual o corpo das pessoas não tem o que fazer de produtivo, mas que, mesmo para os que trabalham, deve existir, sob pena da queda de sua produtividade.

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O turismo promove e explora o encontro dessas duas ociosidades (ou margens), o tempo livre das pessoas e os lugares geográficos e sociais não produtivos, transformando o ocioso em produtivo. Este encontro é efetivado pelo deslocamento espacial, pela tour, a viagem de recreio.

A grande descoberta do turismo é que qualquer ociosidade pode ser produtiva, o descanso e os lugares imprestáveis podem render. Como a ociosidade (seja a das pessoas, seja a dos lugares) é margem, isto implica em trazê-la para o interior do sistema, em sistematizá-la, ou seja, em domesticar o que ela tem de perigoso e incerto e convertê-la em normalidade. Assim, a viagem de turismo não é mais um risco, nem de morte para o corpo, nem de transformá-lo de tal forma que ele retorne outro – desestruturação do corpo. O turista não explora territórios de risco, mas trafega por lugares demarcados. Assim, os elementos de margem, ligados de uma forma ou de outra ao transe, à ancestralidade e à indiferenciação, tais como água, natureza, tradição, corpo, entorpecentes, são demarcados e depurados de seus riscos e incertezas. Há, no turismo, uma racionalização destes elementos e do tempo ocioso, assim como da viagem. Todos são cercados de planejamentos e garantias para que o corpo retorne ileso, não apenas do ponto de vista de sua saúde, mas de sua identidade: o turismo não implica numa viagem para o outro, mas de um deslocamento de uma identidade sobre um espaço previamente segmentado: movimento de um fluxo demarcado subjetivo sobre um fluxo demarcado objetivo, sendo ambos internos à sociedade capitalista.

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Talvez a Cidade de Goiás (e o turismo histórico e ecológico em geral) possa parecer menos vinculada a esta domesticação dos fluxos e proporcione, de alguma forma, um encontro com o outro. Talvez porque paire no ar uma atmosfera cult, porque haja, ao lado da ambição, uma consciência cidadã de preservação da memória coletiva. Mas o fato é que a demarcação que ela sofre, por parte do estado e do capital, não difere muito, em natureza, da de Caldas Novas. Do ponto de vista da racionalização turística, a reforma e a preservação do patrimônio histórico (uma espécie de congelamento da duração) não difere muito da incessante demolição e reconstrução por que passa Caldas Novas. Em ambos os casos, trata-se de uma espécie de cenografia, uma montagem de cenários para que se possa passear e, no passeio, vivenciar o espetáculo: o turista como ator, como papel social previamente estabelecido, escrito (é claro que não se trata da escrita de um autor consciente e maquiavélico, mas da formação de um desejo de massa, inscrição social).

Neste sentido, se quisermos encontrar o lugar turístico por excelência ou, para os que gostam de essências, a natureza do turismo, não se deve procurar em cidades “reais”, como Caldas Novas, Goiás, Porto Seguro ou Rio de Janeiro, por mais voltadas ao turismo que elas sejam, mas na cidade-espetáculo que é o parque temático. O aparecimento deste se deu após a consolidação do turismo como atividade econômica, mas ele sempre foi o horizonte de todos os lugares turísticos, uma espécie de modelo a ser perseguido: quanto mais próximo da extrema demarcação de um parque temático, mais próximo da perfeição turística.

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A atmosfera cult e a consciência cidadã das cidades históricas não levam necessariamente ao outro da margem porque elas mesmas são incorporadas no espetáculo geral do turismo, formando um nicho específico que vai atrair certo fluxo de turistas, mais alternativo, mais consciente. Ainda assim, não deixa de ser um fenômeno de massa e de internalização das margens: o cult é um lugar no sistema.

A memória conservada nestes lugares, destoante e, de início, improdutiva para as sociedades modernas, exercem grande poder de atração sobre as pessoas, pois funcionam, entre outras coisas, como ressonância de uma identidade coletiva e pretérita em conexão com o sujeito presente. Trata-se de uma ponte entre tradição e presente que une (e unifica) sujeito e coletividade: há sempre um (pre)sentimento do sagrado nos lugares antigos. O turismo promove a ligação do tempo livre das pessoas com este poderoso fluxo de desejo da memória coletiva, sob o regime de outro fluxo, o de capital, tornando produtiva a contemplação da memória.

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É provável que o turismo das águas, principalmente a praia, seja o mais dinâmico dos turismos, do ponto de vista econômico. E sempre que há água, há corpos quase desnudos e a promessa da sexualidade. Mas estes lugares turísticos não se configuram pelo sexo livre ou pela facilidade de relacionamentos, os quais seguem as mesmas restrições e padrões morais de outros lugares. Talvez haja apenas um aumento na prostituição, por conta da maior circulação de dinheiro livre para a diversão. Trata-se de um fenômeno parecido com o do capital, cujo excesso em determinado lugar ou atividade não implica em facilidade para consegui-lo.

A cidade cujo turismo se baseia nas águas tem estes dois excessos que se entrelaçam: o de capital e o de sensualidade. A água (das piscinas termais, do rio, da praia) dispara o processo turístico que, por sua vez, agrega sensualidade e capital. Estes dois últimos elementos alimentam duas bolas-de-neve complementares. Por um lado, os corpos atraem mais corpos que, por sua vez, exigem mais investimentos em infra-estrutura. O capital atrai mais capital e mão de obra (corpos para o trabalho e não para o ócio). Então ela se povoa maciçamente de um fluxo de trabalhadores, turistas e capital: indústria do turismo. Mas a este excesso dos fluxos de sensualidade e capital corresponde a dificuldade dos corpos em satisfazer seu desejo por eles, pois da mesma forma que o capital é escasso à massa trabalhadora, o encontro sexual é difícil à imensa maioria dos turistas.

No turismo das águas a acumulação de fluxos (de capital, de sensualidade) exerce um fascínio sobre os corpos, atraindo-os massivamente, pois estes, no capitalismo, necessitam de complemento de fluxos (a falta constitui o corpo - no caso do turismo histórico a falta se liga à memória e identidade). Mas, apesar de sua abundância, a circulação desses fluxos sofre uma severa disciplina que os torna escassos para a massa dos corpos e, como em qualquer lugar, muito poucas pessoas se satisfazem, mantendo ativo o processo da falta que movimenta, seja a economia da sensualidade, seja a do capital.

Assim, o erotismo que na revolução contracultural se configurava como uma espécie de arma contra o capitalismo sofre, no turismo das águas, o mesmo processo de acumulação e escassez do fluxo de capital, sem que os corpos quase desnudos necessitem modificar sua moralidade se lançando a uma sexualidade que a contracultura chamava de livre, desprendidas da “boa moral”. O que implica na preservação da identidade que os corpos ganham no interior do sistema. Mesmo quando há encontros sexuais, ele tende a ser no interior dos limites da sociedade. O transe sexual não se configura como passagem para a margem, a libido não atinge o outro sistêmico como queria a utopia contracultural. Se pensarmos nos corpos pelos quais circulam a libido, isto quer dizer que eles continuam demarcados e submetidos à rígida disciplina sensual da sociedade: trata-se de uma Vênus domesticada.

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Que tipo de texto faço nesta coluna? Eis uma pergunta que eu deveria responder na primeira edição da Ruído Branco. Mas eu mesmo não sabia o que seria, embora soubesse que falaria um dia de turismo, de canção, de outros fenômenos do pop e do entretenimento, além de alguma coisa de literatura e pensamento. Mas o que faço? Ensaios, epigramas? O que me ocorre mais imediatamente é a ficção, contos. Faço, neste espaço, contos, narrativas, mas sem fábulas, compostas somente de digressões. É o mesmo trabalho digressivo de um narrador, o mesmo gesto de observação e registro, o mesmo mapeamento, mais olfativo e manual que visual e auditivo: tateios da mente. São contos que perderam a história.

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e agora zé

literatura acabou

contracultura

é a favor

utopia rodou

pé na estrada é turismo

ismo nenhum sobrou

todo sonho so

çobrou

e agora zé

que fazer do que resta

da festa

que que eu faço com o agora