Número 10


Camisa 10 canarinho

Um gol de placa é aquele gol espetacular, que todos sabemos como é, mas, simultaneamente, não sabemos, porque nenhum gol de placa é igual ao outro. Na verdade, somente sabemos que um gol é de placa porque ele não se parece com um gol comum. Podemos dizer que, levando em conta toda pinha de gols colecionada até hoje, o gol de placa é o velo dourado que cintila no volume do rebanho. Ele é a diferença na quantidade. Mas pode ser como o dente dourado na boca, que fica bastante feio, e lembra aqueles meliantes de quinta da cultura cinematográfica hollywoodiana.

Um gol de placa, por metonímia, pode ser também o camisa 10 da Seleção canarinho ou dourada ou brasileira, quando o tal camisa 10 era Zico ou Pelé. No caso do Vasco da década de 1980, não posso me esquecer de Roberto Dinamite — e não sou, não fui, não serei nem quero ser vascaíno nem –ino nem –ista nenhum ou algo que o valha. O caso é que estes nomes (Zico, Pelé e Roberto Dinamite) cintilam no volume do rebanho. Enquanto os outros baliam ou balem, eles latiam, e assevero arriscar que ainda hoje latem.

Segundo está publicado em minha biografia proibida — e uma biografia somente pode ser a diferença na quantidade se proibida —, eu nasci de quase 10 meses de idade. Nesse caso, eu não sei exatamente dizer se se trata de idade de feto ou de bebê. Julgo que isso é uma aporia, e como todas as aporias, deverá para sempre residir no hiato insolúvel da dúvida. Esclareçam em seu juízo, caros leitoresnautas, que a aporia diz respeito a se a idade é de feto ou de bebê até antes de alguém nascer, e não sobre que nasci de quase 10 meses. Quase 10, por aproximação óbvia — afinal de contas, não há um terço, meio nem dois terços de gol —, é efetivamente 10. Um nascimento assim só pode ser um coisa escandalosa. A pena é que, nem sempre, o velo que se destaca na branquidão da velaria é um velo dourado, quer dizer, um velo de valor sobressalente.

Doravante, esteja resolvido que a diferença na quantidade pôde gerar Zico, Pelé e Roberto Dinamite assim como pôde gerar George W. Bush (o filho, e o pai também, que dá no mesmo), ou seja: a diferença na quantidade pode merecer lenidade ou desprezo — quiçá indiferença.

Assim a white and noisy family chegou a ruído branco 10 ou a diferença na quantidade. Como estou definitivamente convencido — e se eu estou convencido, é muito difícil me desconvencer — de que nós não merecemos desprezo e muito menos indiferença, logo, pela obviedade do processo de eliminação e sobra — se é que existe esse processo e, se existe, se é que ele é óbvio —, nós merecemos lenidade. Saibam todos que não aspiramos à condição de Zico, Pelé e de Roberto Dinamite, assim como não aspiramos à condição do Velo de Ouro — principalmente deste, porque ninguém tira de minha cabeça que esse Velo desbaratinou a cabeça de Jasão, transformando-o no miserável que despirocou o juízo de Medéia, até que ela foi levada à insanidade de matar os próprios filhos. O ouro soube à cabeça, e nisso a cabeça degringola.

Agora, indo para outro foco do problema — e, sinceramente, é possível que não haja problema nem foco nenhum que seja —, ruído branco, nesta edição, está um tanto quanto diferente. Passeiem pelas colunas e procurem observar como muito de nossa linha editorial foi, de certo modo, corrompida aqui e ali. Nesse caso, não se esqueçam: a corrupção é própria para lenidade, porque é um gol de placa ou, pelo menos, um velo dourado, embora jamais de ouro. Certamente, é uma camisa 10 canarinho cintilando no volume do rebanho. E me permitindo o clichê ao qual me reportarei novamente: Boa leitura!



jamesson buarque



Vaca de Nariz Sutil


a Jacques Lacan

toda então problemática está esteve estará em que em ser se tem um está na linguagem corpo e falar a gente falando dele e ao dele falha a palavra o corpo falha falável. O corpo vibra e em seu escuro há muito mais do que silêncio, e a palavra que sai da boca porta esse a mais do que silêncio, e são cifras esse a mais, espécies de véus rasgados que emolduram cada pensamento bocadentro bocafora, o pensamento humano é um organismo que goza, um metaorganismo roendo os seus intervalos, alimentando de seus movimentos de seus líquidos de suas fímbrias de suas pequenas dores que agulham o vento minério a que almeja a palavra pensamento.

tudo então em tudo entremesclado, filosofia à-toa de café da manhã, um homem que lê a morte no jornal na palma da mão ou dos pés, um homem tomando seu café e sentindo o calor bocadentro, e o decalque das palavras no corpo que ele pensa, irá agora como outrora, irá pela milésimavez fazer o mesmo exame, pois mesmo constelados seus pensamentos roem o mesmo osso, a mesma imagem da própria morte e ele sabendo que a morte não é uma imagem, senão uma imagem rasurada rastejando pelas vísceras da palavra e do corpo.

uma química de estrelas, uma casa pura forma de ciframento da carne, a carne habita a ela própria e, nos homens, a palavra infiltra e desregula o saber instinto que insiste em se fazer lido nos olhos de um boi.

um homem na estrada vê seu corpo rasgado esses pensamentos nada submersos pensamento-imagem-cheiro-cor que se repetem, que se repetem girados acrescidos cortados de um ou outro som de uma ou outra janela de um ou outro fragmento novo do órgão-linguagem.

profilaxia impossível talvez se livrar do círculo palavro-afetivo da mesma uma outra coisa, o círculo em palavras circulando pelos desfiladeiros fímbrias do entreaspernas e os ruídos e mesmo assim o gozo dos olhos incrustado na imagem dele, o homem sentado na mesa tomando o seu café aderidoincrustado na imagempedaço do corpo-ele desdobrado para dentro, como um corpodecão com ou sem plumas, corpodecão aberto no asfalto, a noite do corpodecão aberta no asfalto da cidade em alta velocidade no si dela fluxograma de outros corpos com seus desesperos semelhante-singulares.

sempre um medo uma coisa um monstro feito de olhos olhando para ele de um lugar feito de areia ou água uma memória clepsidra um astrolábio calado sobre o corpo esguio de uma mulher sem umbigo, ele mesmo não sabe se sabe dizer o que não tem sentido nem ele procura talvez irá a um médico gosta muito de uns comprimidinhos que lhe extraia o corpo de seu comum isolamento de si mesmo.

o homem pensa, o vento se cala, uma perna não é uma asa, o agora é a noite, noite insípida, um saber que sabe os objetos da mesa, a xícara e seu café sem Deus dentro, Deus deixou a máquina mundo girando, deixou-lhe a lógica do fogo, e não é Ele mais nem menos afetado por nenhum seroutro, por nenhuma eutridade, Deus não é mais igual a sua ausência, dissolvido na xícara de ser igual a si mesmo, bela tautologia, como a água molhando a água, como esse homem que pensa enquanto o vento se cala, ele esse homem, finalmente, pode ler no Deus ausente da xícara, ele se tornou seu rumor e, seu rumor, seu próprio instrumento de prazer, o barulho das vozes, epicentro de uma dor aguda, o intenso gozo de olhar para um cadáver, a realidade é a realidade que cessa, essa dor que se dissolve, como Deus, à substância maquinal da memória, coisa morta como constelações de palavras contaminam o corpo do homem criando bordas, núcleos no corpo sedentos do glorioso gozo de se dissolver em morte.

ele esse homem olhando para a xícara é mais feliz que qualquer homem esperando a eternidade ou procurando a teoria de tudo ou qualquer gramática no gozo feminino, ou na ira fria da matéria emigrando para o fim de algo que sequer houve começo.

alitera, a vida alitera, e tudo é igual a outra coisa, um ciclo interminável de fins, junturas fraturas murro contra os sonhos.

um pedaço do corpo, uma ferida exposta, uma coisa pendurada de lado, uma flor talvez, flor de carne, infeccionada, se lhe extraem essa flor, sem essa infecção ele morre, então ele bebe seu café até esvaziar a xícara e olha a xícara de café vazia enquanto

uma mosca pousa.



Wesley Peres

Wesley tem 31 anos, mas sempre acham que ele tem cara de 30. Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, com o romance Casa entre Vértebras (romance), Editora Record, 2007. É autor de Água Anônima (Prêmio Cora Coralina, 2001) e Rio Revoando (Com-Arte/USP, 2003). Em 2007 lançará Palimpsestos, pela UFG. Acha deplorável pessoas que gostam de Fanta Uva, gosta muito de estourar aquelas bolinhas de plástico e da literatura produzida na Papua-Nova Guiné. Ah, é psicanalista e mestre em estudos literários pela UFG e doutorando em Psicologia Clínica na UnB. Mora na Cataluña. E-mail: wesleyperes@uol.com.br



Patchwork


O Percurso da Linha como Elemento Expressivo na Pintura

Parte II – Kboco

Por volta de 1946, as pinturas de Pollock já não apresentam imagens tão reconhecíveis, o que se torna reconhecível é a atividade do próprio artista na superfície da tela. Essa atividade, além de revelar a própria vida no momento da pintura, modela todo um vocabulário de arquétipos, mitos e criaturas que afloram dos experimentos do artista. Na medida em que o ritmo da pintura de Pollock se acelera, como se o processo de aplicação da tinta fosse um meio para a vida mimética, a superfície da tela se torna insuficiente para comportar os movimentos expressivos do corpo do artista.

A solução encontrada por Pollock é a de abandonar a pintura de cavalete e colocar uma tela muito maior no chão. Essa nova abordagem dá um vigor maior ao expressionismo abstrato de Pollock e favorece o uso de técnicas que revelam a expressividade de suas linhas:

A adoção da técnica de tinta respingada e jogada, e de pincéis completamente secos, varetas e colheres de pedreiro como ferramentas, pode ser também explicada, em boa parte, em termos práticos: por esses meios Pollock pôde manter uma posição relativamente vertical, distanciada do chão e da tela. A postura de pintar à distância de um braço não pode ser mantida para uma pintura estendida no chão da mesma maneira que diante de um cavalete ou de uma parede. [...] Pollock era um pintor rítmico desde o início — tornou-se inevitavelmente mais expansivo, envolveu movimentos mais amplos e mais demorados da mão que controla a aplicação da tinta. (STANGOS, N. Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 155-156).

Fazendo um salto no tempo, nesse percurso da linha como elemento expressivo na pintura, chegamos aos dias atuais com o “grafite abstrato” do artista plástico goiano Márcio Mendanha, o Kboco:

Kboco trabalha, sobretudo, com o grafite, com a utilização conjunta de rolo e spray, usando predominantemente a linha, que pode ou não se tornar figurativa. A espontaneidade e a gestualidade da obra de Kboco reativam o “automatismo” proposto por Pollock, isto é, o grafismo como forma de “autodescoberta”. De acordo com comentários do próprio artista, sua grafitagem ocorre de forma “xamânica”, as imagens surgem de gestos naturais e espontâneos. Isso também colabora para a evocação de elementos do imaginário pessoal do artista. Apesar da beleza e da suavidade das imagens de Kboco, seu trabalho também revela tensões e conflitos tanto no interior das obras quanto no ambiente que as acolhe:

Uma das bases do trabalho do artista é justamente o estabelecimento de relações com o ambiente. A observação dos espaços urbanos, especialmente aqueles que necessitam de revitalização, é essencial para a realização da sua pintura. “Hoje em dia não temos mais a preocupação de pintar na rua pra todo mundo ver. O lugar é que pede a pintura, a textura que leva anos pra se formar, a ruína... A gente pinta com a sujeira da cidade”, comenta Kboco:

A evolução da pintura no mundo se dá através de embates e conflitos, entre eles, aqueles relacionados aos aspectos da linearidade e da tridimensionalidade. O resultado desses debates é, antes de tudo, a expansão dos limites expressivos e criativos dos artistas em todos os tempos.

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Kboco nasceu em Goiânia, em 1978. Seu trabalho é marcado pela suavidade das linhas e pela influência de pesquisas sobre as culturas africana e egípcia e, também, pelo estudo da caligrafia árabe e persa. Kboco participou, entre outras mostras relevantes, da Bienal de Valência, na Espanha, em 2007. O artista mora atualmente em São Paulo e realiza projetos em conjunto com a Galeria Choque Cultural.

kboco7@yahoo.com.br

www.myspace.com/kboco





Patrícia Ferreira Martins

Patrícia é artista plástica e, atualmente, doutoranda em letras e lingüística pela UFG. Adora música alternativa na linha punk rock e grindcore. Também adora literatura, assistir televisão, surfar na internet, comer pipoca no cinema e tomar mirinda com os amigos. É casada com o Wellington.
E-mail: patricia@wsmartins.net



Mieloma de Ocasião


SEMTÍTULO

Eu estava com sono e continuei deitado. Minha esposa já tinha saído para trabalhar. Ela sai para trabalhar todos os dias às sete e meia. Eu me deito à meia-noite. Às vezes, trepamos. Pego no sono ali pelas duas. Ela acorda às seis. Ela é professora. Eu era professor. Eu a conheci em uma festa junina. A cidade em que vivemos é tão pobre em opções de lazer que festas juninas são grandes eventos. Aqui, festas juninas são eventos aos quais as pessoas, todas elas, comparecem. Há várias festas juninas, mas a melhor de todas é a do colégio das freiras. A festa junina do colégio das freiras é a melhor de todas porque as meninas que estudam no colégio das freiras e as mulheres que lecionam no colégio das freiras são quase todas muito bonitas. Minha esposa leciona no colégio das freiras. Eu lecionava no colégio estadual. A festa junina do colégio estadual também é boa, mas a melhor é a do colégio das freiras. Eu estou desempregado há um ano e meio. Eu bebo todas as noites. Minha esposa não reclama. Eu não faço nada de ruim quando bebo, exceto beber. Eu não brigo. Eu não conto mentiras. Eu não como outras mulheres. Eu fico calado, bebendo. Eu sequer gasto dinheiro quando bebo. Eu bebo no Bar do Nelson. Nelson é um amigo de infância. Nelson sempre bebe comigo. Nelson não permite que eu pague nada. Se, por acaso, Nelson decidir que eu devo começar a pagar, eu paro de beber. Eu não tenho dinheiro para gastar com bebida. Eu não tenho dinheiro para gastar com nada. Eu só bebo porque não preciso pagar. Se tivesse de pagar, viveria sóbrio. Nelson fez faculdade. Eu fiz faculdade. Nelson e eu fizemos faculdade na mesma época. Nelson estudou Ciências Contábeis. Eu estudei Letras. Todos os dias, o ônibus da prefeitura levava os universitários para a capital. Todos os dias, ao entardecer, embarcávamos para a capital a fim de estudar. Voltávamos à meia-noite, exaustos. Não estudávamos muito. Cabulávamos aulas e bebíamos nos botecos próximos da universidade. Não estudávamos quase nada. Todos nos formamos com facilidade. Eu prestei concurso para professor. Nelson assumiu o bar do pai. O pai de Nelson bebe todos os dias no bar que era seu e que agora é do filho. O pai de Nelson também não paga para beber. Poucos pagam para beber no Bar do Nelson. Nelson não reclama. Nunca vi Nelson reclamar de coisa alguma. A exemplo da minha esposa. Minha esposa não briga comigo. Eu não brigo com minha esposa. Vivemos bem, em comparação com as outras pessoas. Em comparação com os nossos vizinhos. Não armamos escândalos. Não maldizemos ninguém. Somos boas pessoas. Eu era professor. Um dia, eu decidi que não seria mais professor. Estava cansado. Não gostava de lecionar. Não gostavam de mim lecionando. Não consegui outro trabalho. Não consegui outro trabalho simplesmente porque nunca aprendi a fazer outra coisa. Eu não sei fazer nada, exceto lecionar. Exceto lecionar e beber. Lecionar e beber são as únicas coisas que eu sei fazer. Eu estava com sono e continuei deitado. Sabia que não conseguiria dormir, mas tampouco queria me levantar. Ela me beijou antes de sair para trabalhar. Minha esposa sempre me beija antes de sair para trabalhar. Um beijo no rosto. Ela me beija no rosto e sai para trabalhar. Um dia, ela me beijou e percebeu que eu estava acordado e disse: “Tchau”. Eu não disse nada. Eu fechei os olhos e fiquei calado. Geralmente, depois de um tempo, eu me levanto e passo um pouco de café. Às vezes, ligo o som. Às vezes, como alguma coisa. Um pão, uma fruta. Às vezes, pego um livro e começo a ler. Há muitos livros aqui em casa. Já li a metade de quase todos eles. Eu pego um livro, leio cem, duzentas páginas, e quando não sei mais o que estou lendo, quando já me esqueci até mesmo do título, recoloco o livro na estante. Às vezes, ligo o som. Eu gosto de escutar Johnny Cash. É a única coisa que escuto. Não escuto nenhum outro cantor ou cantora ou banda. Só escuto Johnny Cash. Minha esposa gosta de música clássica. Ela chega do trabalho, toma um banho, come alguma coisa. Ela chega do trabalho, liga o som, escolhe um CD, toma um banho, come alguma coisa e sempre me pergunta: “Vai sair hoje?”. Eu sempre saio, ela sabe que eu sempre saio, mas ela sempre me pergunta se eu vou sair. Eu digo que vou ao Bar do Nelson. Ela pede que eu não demore muito. Eu digo que tudo bem. E saio.





André de Leones

André de Leones nasceu em Goiânia no ano da desgraça do nosso senhor eu-sei-que-você-não-existe 1980. É autor do romance "Hoje está um dia morto" (ed. Record), vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2005 e na época ele achou que isso significava alguma coisa. Venceu também, com um livro de contos de título engraçado nunca publicado, o Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, mas esta piada já é velha. Mantém o blog http://canissapiens.blogspot.com, cheio de piadas mais novas.
E-mail: alleones@gmail.com



Hexercício Íbrido


Choupana

Então ela me perguntou quais eram as coisas mais importantes pra mim. Eu disse minha cachorrinha morta, meu pai internado, meu irmão preso e minha mãe que eu ainda vou encontrar qualquer dia numa rua qualquer. Qualquer.

Eu senti que. ela engoliu um suspiro. Devia estar desenganada daquela carreira, daqueles nós.

Mas eu também não sabia por que raios estava deitado naquele divã cansado. Não que não acreditasse ou, no mínimo, respeitasse aquela ciência, mas nunca acreditaria que teria a sorte o destino o acaso de encontrar os raros que a.

Foi então que comecei a me dar conta de que a observava através do escuro que nos separava. E me perguntava, nada que fosse anormal, como vivia aquela pessoa. Por que chegou ali?

Foi então que comecei a chorar. Senti que. ela me olhava penalizada. Eu também.

Imaginei que devia ter um casamento perfeito, do tipo que nunca desejou ter. Sem porquê. Que seus filhos eram porquinhos rosados. Que se depilava de dois em dois meses. Virilha. Axilas, duas semanas. Percebi quando abriu a porta do consultório, pela discrição pudica dos braços quando não havia necessidade de ser.

Falei por metáforas alguns minutos. Toda aquela multiplicidade cheirando a hipocrisia do lustre. A queda dele. Os cacos roendo minha retina. Até onde ver a queda nos olhos. Até quanto suportar enxergar a queda até nunca mais ver. Segundos.

Concordou que a vida é mesmo efêmera. Que dura um dia.

Me percebi me imaginando apaixonado por ela também. Mesmo com.

não.

Me repugnava. Sim sim, me dava pena. Toda aquela calma das cores dos móveis derretidos e caindo no balanço amarrado dos seus pés.

Seus dedos gritando mais que ela. Seus calos socando o ar.

Seu salto ereto, cansado.

Foi então que percebi que me excitei. Não, não era ela, não eram seus dedos, mas, claro, a possibilidade do salto ereto. Sua pressão selvagem de suportá-la desengonçada e extremamente incomodada com ele. Comigo.

Foi então que sorri. Foi então que ouvi que. desistiu de falar.

Ficamos com o seu quase. Mais alguns minutos em que seu quase.

Foi então que quis ir embora.

Ela suspirou muito. Raios. Aquele era apaixonante. Havia saído totalmente. Me casaria com ela, comeria assados todos os seus porquinhos, penetraria-a com seus saltos, rasparia todos os seus pêlos todos os dias enquanto a vida durasse.

Magnífico. Seria seu rei e nunca mais teríamos que estar ali. Fingindo nos entendermos.

Nunca mais como um sonho.

“do sonho” [guache sobre papel paraná, 50 cm x 39,5 cm, 2007]






Dheyne de Souza

Dheyne de Souza nasceu em Cristalândia- TO, cidade menor que Vianópolis-GO, para onde foi com dois anos e que tem menos habitantes que o campus II da ufg e que fica a 96 km de Goiânia, cidade esta em que está, no momento. Dheyne às vezes fala, quase nunca de forma audível e às vezes ri muito, inclusive de si mesma, inclusive é muito engraçada, embora. Dheyne às vezes é bacharel em literatura, às vezes fez letras, às vezes nada. Sempre escreve e voltou a desenhar. Não gosta de comer e seu nome é como Jane, em inglês, vulgo mulher do Tarzan. Dheyne não é mulher de ninguém, o que não é menos perigoso. Ela faz planos, dorme e cai. Fala com vacas.
E-mail: dheyness@gmail. com



Gargântua



Leitor

O que lerás a seguir é um dos meus Discursos de Entretenimento Útil e Saudável (D.E.U.S.).


Diógenes

Discurso no qual se pretende mostrar como nosso Deus encontrou-se com um filósofo e com ele travou um diálogo sem precedentes em sua biografia


Deus andava inquieto. Interrogava-se sobre a questão. E isso lhe causava uma considerável enxaqueca. Resolveu, então, pedir que lhe apresentassem Diógenes, o Cínico.

O caso de Diógenes é exemplar. Entregava-se ostentatoriamente ao mesmo prazer solitário ao qual Onan também se entregara antes de ter a vida cruelmente aniquilada por Deus.

Mas em Diógenes, Deus não metia medo.

De Grande, Diógenes topara com Alexandre e não seria, agora, a convocação do Todo Poderoso para este discurso que iria intimidá-lo.

O episódio de Diógenes com Alexandre é breve: Diógenes, relaxado e tranqüilo, aproveitava o sol do final da manhã. Alexandre chega com suas armas, pára em sua frente e diz: caro filósofo, estás diante de Alexandre, o Grande, o que desejas? Desejo que te afastes um pouco porque estás me tapando o sol, isso.

Mais uma vez, senhoras e senhores, um acontecimento histórico provava que nem sempre a maior ousadia pertence àquele em que pensamos. Mas para o Cínico, isso era de mínima, ou nula, importância. O sol é o que contava naquele momento. E o sujeito armado em sua frente adiava para o futuro a satisfação de seu presente desejo de luz e calor. Seu prazer em exercer sua liberdade de estar ali, tomando sol naquele momento, era o ponto nuclear de seu ensinamento.

Outras vezes, em outras manhãs ensolaradas, como esta agora, por exemplo, seu prazer resumia-se a enfiar a mão por baixo da veste e acariciar seu pênis até atingir a mais satisfatória das ereções. Então, tirava o membro para fora dos tecidos e, fitando-o vagabundamente, ocupava-se em completar sua excitação. Percebia nas mãos — e na imaginação — a ligeira tremedeira vinda do interior do ventre, sinal de que estava no caminho certo, à beira de um novo orgasmo para ele.

É verdade, fazia-o naturalmente, em praça pública. É o que o aproximava dos animais: longe da culpa e fiel aos seus desejos. Mas, ao contrário de um canalha, tinha cultura suficiente para não impor tais desejos a ninguém.

Mas e o pudor?, perguntou Deus, que sem perceber também tapava o sol do filósofo.

Falso valor!, respondeu o filósofo, agora na sombra. Em seguida calou-se e ficou, com todo o esmero do mundo, aplicado em sua masturbação.

Deus não soube como continuar e, como sempre, junto com a confusão, voltou a sentir os incômodos da dor na cabeça. Tomou um tempo e começou a ponderar. Aquele filósofo estava emancipado demais para seu gosto. Conseguia satisfazer as necessidades das partes baixas sem sujeitar-se a qualquer contrato de matrimônio, pois atingia resultados imediatos apenas com o auxílio das próprias mãos. Pior, colocava em risco a idéia da família, a tão sonhada família, que, há anos, era imposta mundo afora. Ai, meu Deus!, pensava sem se dar conta do desatino da frase, mas recuperava-se logo e, antes mesmo de corrigir-se com um previsível “Ai, eu mesmo!” tão típico de sua palermice, voltava ao raciocínio. É muita independência para um homem . Se o mundo continua nessa via, em breve bastará ao ser humano acariciar a barriga para que a fome seja saciada. E então, acabam de vez com a idéia do trabalho, com a idéia do sacrifício. Onde se viu! Vou ter que pensar em algo. E a simples evocação da palavrapensarlhe fez pulsar forte no crânio aquela enxaqueca dos diabos. E na sua frente o filósofo que não parava de agitar o negócio.

Percebeu que nada conseguiria naquele dia. Estava prestes a desistir quando reparou algo em seu calado interlocutor.

Depois de tanto tempo quieto na sombra, Diógenes abriu a boca para se pronunciar. Deus presumiu que fosse para continuar o diálogo. Outros acharam que seria para dizer a Deus que saísse da frente do sol. Mas julgaram errado, porque naquele instante não era conversa nem assunto de luz ou sombra que interessava. A atenção era outra. Então, fixando o fundo dos olhos de Deus, e ignorando a torrente de pensamentos do Todo Poderoso, o filósofo abriu a boca e pronunciou um simples: gozei!






Nereu Afonso da Silva

Nereu Afonso da Silva nasceu em São Paulo, em 1970. É autor de Correio Litorâneo, Editora Record, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, na categoria contos. Formado em filosofia pela USP, enveredou para o teatro. Foi um dos Doutores da Alegria (palhaços em hospitais). Hoje vive na França, onde escreve, atua, leciona e dirige para o teatro. Mantém o blog http://bombyx.wordpress.com.
E-mail: nereu.afonsodasilva@neuf.fr