Gargântua



Crônica de ferro e raio


I.

Jean Rouch, documentarista e etnógrafo francês, contou que diante de um suspeito pedação de ferro, as pessoas foram se amontoando e eram mais de três; chegaram intrigados, coçando o queixo, homens e mulheres com uma espécie de intuição lhes assegurando que a partir daquela máquina de metal atingiriam os mortos. E, em certo sentido, era isso mesmo... Faltava-lhes somente o especialista, aquele que abriria o ferro, que extrairia da estranha máquina o mistério. Então foi assim: durante toda a preparação não deram sequer um ai, estatelaram-se ali, olhos voltados para o centro do metal, ignorando gentilmente a surpresa pairando perto. O especialista chegou. E realmente houve uma surpresa: de repente o feixe, e em seguida todo aquele “ô”, em coro. Nunca tinham visto nada que se assemelhasse a tal coisa. Do nada, a máquina escancarada e do seu avesso, mais precisamente do osso do avesso, expandia-se um raio azul de dentro para fora do metal. De início, bem no início da emanação, aqueles homens e mulheres não sabiam para onde olhar, mas muito rápido, menos de vinte segundos depois, estavam todos voltados para o lugar certo, para aquele ponto fixo e delirante que lhes invadia as retinas: a tribo toda seguindo o brilho azul que saía do ferro e terminava impactante na mansa lona sustentada por dois galhos da maior árvore da aldeia. Aprenderam que tal tecido se chamava tela e que o pedação de ferro se chamava projetor e que entre os dois equilibrava-se e repousava a imagem do filme, o documentário que o próprio Jean Rouch filmara anos antes e que agora trazia de volta revelado, revelando seus protagonistas, azul do rio, hipopótamos, homens e mulheres dançando, cantando e caçando, muitos deles desaparecidos para sempre. Os espectadores choraram seus mortos e, ao mesmo tempo, segundo Rouch, compreenderam de imediato as sutilezas dos cortes, planos, zooms, degustando pela primeira vez, lágrimas nos olhos e também sorrisos, o prazer da experiência cinematográfica. E isso aconteceu à margem do rio Níger... Muito, muito longe de Goiânia.

II.

Mas um dia inventaram outra história, da qual tenho apenas uma parca e rara imagem vinda de televisor, a antena em “v”, uns chuviscos intermitentes, sempre os mesmos e mais quase nada, numa tela de Jornal Nacional com aquela voz — e isso eu invento ou lembro? — do Cid Moreira, bem melosa, oito horas, boa noite, terno e gravata, hoje, Goiânia, ao vivo, com locuções, palavras e mais palavras misturando melodrama, ignorância, fim de vida em pele azul, publicidade, e no final, depois da cotação da bolsa e dos gols da rodada, uma derradeira palavra: um outro boa noite, assim, vejam vocês, quase inofensivo, preparando a telenovela e deixando no ar [salve-se quem puder!] aquilo de que ninguém nunca tinha ouvido falar: ç-cé-césio, o quê?

Pelo que contaram, ali também aparecia, no proscênio do tumulto, um pedação de ferro, de novo. Mas dessa vez, gente, longe, bem longe do azul do Níger. E o que poderia ser mais atraente naquele metal de ferro velho do que sua aparente ausência de atração? Resposta: — De novo, o seu avesso, o osso de seu avesso, mas dessa vez, gente, dessa vez...



Nereu Afonso da Silva

Nereu Afonso da Silva nasceu em São Paulo, em 1970. É autor de Correio Litorâneo, Editora Record, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, na categoria contos. Formado em filosofia pela USP, enveredou para o teatro. Foi um dos Doutores da Alegria (palhaços em hospitais). Hoje vive na França, onde escreve, atua, leciona e dirige para o teatro. Mantém o blog http://bombyx.wordpress.com.
E-mail: nereu.afonsodasilva@neuf.fr