Mieloma de Ocasião


Azul feito o céu de um dia de inverno


Muitos anos depois, eu escreveria um poema e nesse poema colocaria um verso e esse verso seria: Módica aceitação da dor. Azul.

Mas mesmo então eu não saberia direito o que era, o que tinha sido — ou o que teria sido.

Eu tinha sete anos e estava morando no sul do Pará e os meus pais assistiam ao telejornal muito preocupados, porque alguma desgraça tinha acontecido em Goiânia e tínhamos parentes lá e todo mundo estava assustado. Eu não entendia direito que diabo era aquilo.

Eu era um garoto muito ocupado.

Eu passava muito tempo sozinho em casa. Meu pai saía, minha mãe saía, meu irmão estava sempre fora. Eu passava muito tempo sozinho em casa e fazia muito calor e eu tinha os meus gibis, uns poucos, e um vinil com histórias da carochinha e um cachorro sem nome e sem raça que todos odiavam, inclusive eu, às vezes.

O meu vinil com histórias da carochinha era azul.

As notícias que chegavam de Goiânia não eram nada boas, não eram nem um pouco animadoras. Eu acompanhava a minha mãe até o posto telefônico e ela ligava para os parentes e às vezes ela chorava e eu me sentia péssimo. Todos estávamos com medo. O fim do mundo se anunciava e esse fim do mundo que se anunciava era azul feito o céu de um dia de inverno.

Eu ouvia coisas horríveis sobre o que estava acontecendo com as pessoas contaminadas.

Eu ouvia coisas horríveis porque minha mãe, como sempre, estava me preparando para o pior, porque minha mãe, como sempre, estava me preparando para o caos.

Eu ouvia coisas horríveis, muitas delas sem o menor sentido, todas elas bem menos piores do que aquilo que estava realmente acontecendo.

Eu ouvia coisas horríveis e tinha pesadelos onde os dedos das minhas mãos, tingidos de um azul lindíssimo, caíam no chão sem que eu sentisse nada, nenhuma dor, e o efeito era bem mais aterrorizante por isso, porque eu não sentia nada, dor alguma.

Eu ouvia coisas horríveis e me demorava no banho imaginando em detalhes cada uma dessas coisas horríveis.

Eu ouvia coisas horríveis e tinha pesadelos e, na escola, alguns colegas me evitavam porque sabiam que eu era de Goiânia e achavam que me evitar era uma boa idéia, achavam que me evitar era o mínimo que podiam fazer diante de toda aquela coisa.

Eu ouvia coisas horríveis e tinha pesadelos onde uma garota morta aparecia na minha frente com a pele toda enrugada e repuxada e o corpo todo mole, como se tivessem lhe arrancado alguns ossos, como se tivessem lhe arrancado uma boa meia dúzia de seus órgãos.

As notícias que chegavam de Goiânia não eram nada boas, não eram nem um pouco animadoras, mas em algum momento meu pai me disse que os nossos parentes estavam bem. Isso não me deixou despreocupado, não me acalmou, não fez com que os pesadelos parassem, não impediu que alguns colegas de escola continuassem me evitando, não ajeitou as coisas na minha cabeça, não resolveu os problemas do mundo, não consertou as coisas lá em Goiânia, não impediu que as pessoas continuassem dizendo coisas horríveis, todos os dias, naqueles malditos programas de televisão.

O azul, aquele azul.

Eles filmavam reconstituições e as exibiam com toda a tragicidade que a trilha incidental e o tom de voz do narrador permitiam. As reconstituições mostravam pessoas expostas àquele maldito pó azul, expondo-se e expondo outras pessoas. Minha vontade era de gritar para elas: Não façam isso!

Mas elas não ouviriam, ninguém ouviria.

Diziam que o brilho era extraordinariamente belo. Eu pensava que algo tão bonito só podia mesmo ser ruim.



André de Leones

André de Leones nasceu em Goiânia no ano da desgraça do nosso senhor eu-sei-que-você-não-existe 1980. É autor do romance "Hoje está um dia morto" (ed. Record), vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2005 e na época ele achou que isso significava alguma coisa. Venceu também, com um livro de contos de título engraçado nunca publicado, o Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, mas esta piada já é velha. Mantém o blog http://canissapiens.blogspot.com, cheio de piadas mais novas.
E-mail: alleones@gmail.com