Número 8


movimento primeiro: os motes

Ruído branco nunca foi uma revista temática e nunca primou por uma edição dessa natureza. Nossa quarta edição teve um quê de tema, mas foi por mero acaso. Talvez por isso seja a melhor de todas, até então. Esta, de agora, no entanto, é a melhor edição de ruído branco. Ela é temática. Chama-se: ruído branco azul da Prússia. Comemora os vinte anos da tragédia do Césio 137, em Goiânia. Comemora porque, no Brasil, reverenciamos a morte com festa — quiçá para superá-la. Seu primeiro mote vem de “Fe4[Fe(CN)6]3”, texto de Patrícia Ferreira Martins, em Patchwork, que acompanha o quadro pintado por ela durante a tragédia de 1987. A descrição crua do texto certamente é remédio para a dor desta actante presente no cenário da morte. E como se fosse pouco doer sozinha, ela se acompanha, lá nas Contribuições, de João Colagem, com suas duas peças de hálito azul prescrito pelo silêncio de desaparecer. O mote seguinte vem do “Capítulo I” do romance em andamento A nervura da morte e Outros amores, de Wesley Peres, em Vaca de Nariz Sutil. Neste, Leide das Neves é instalada para a urdidura mais dolente de nossa memória em seu caixão de chumbo e tamanho sem fim. Nem por isso nem pelos aquilos, esta é nossa melhor edição. Ela o é porque adoecemos de tão punhal que é o azul da Prússia pintado na ausência dos lábios.

movimento segundo: os percursos

“Azul feito o céu de um dia de inverno”, de André de Leones, em Mieloma de Ocasião, tem o poder de voz de uma criança perturbada pelo celeste frio da morte. Essa criança, ele mesmo, constrói um mundo teratológico a partir das lacunas adultas dos pais. Noutro fio, reconstruindo o título de “Para Lennon e McCartney” (Lô Borges – Fernando Brant – Márcio Borges), e retomando Lô e aquele que consagrou a canção, Milton Nascimento, Nilson Pereira estréia em ruído branco com o conto-crônica “Para Borges e Milton”, em VIVER DÓI!. Nisso, ele nos convoca ao espanto do enterro de Leide das Neves, cujo fim foi proteger as pessoas, mas não havia proteção ali, porque “a morte está no ar”. jamesson Buarque, na coluna página p., segue essa mesma poesia de morte, azul, crônica e reminiscência em “Morrer é ficar azul Ou o pó é o formato da morte”. A reminiscência em formato de crônica é vital, ainda, em Êxtimo, pela voz em que Cristiano Pimenta se enreda, movido como presença pertencida no cenário azul da Prússia, de Goiânia.

“Crônica de ferro e raio” é também de uma estréia, a de Nereu Afonso da Silva, em Gargântua. O autor alinhava, como formulasse um ideograma, a espantosa descoberta da cinematografia pelos ribeirinhos do Níger com a tragédia do Césio 137. O texto nos pesa em azul, reminiscência e morte. O mesmo pesar é o do peso do poema-crônica de Wilton Cardoso, em Neuropop. O colunista canta desencantado diante do programa político de morte pelos aparelhos de controle do sistema brasileiro e ocidental de medir a vida na medida de baixas aceitáveis. Daí salta aos ouvidos o labor poético e musical de Paulo Guicheney, em C-dur, com “Cidade com menino e ferragista amarela, op. 1987”. E se somos surdos para não conseguir ouvir a crônica e reminiscência do músico, podemos fatalmente sofrer o peso da morte entre os intervalos dos acordes, no jogo que o próprio músico me ensinou: CÉSio: C significa dó, E, mi e S, mi bemol. Posso, afinal, dizer que tantas vozes distintas em uníssono são, as fagulhadas breves e longas, imaginadas pelos dedos de Dheyne de Souza, em Hexercício Íbrido, com “Poema-ruído”, com aquele sabor de gilete cravada para onde o pêlo não finca a pele. E não pensem que exagero, quando acrescento, agora, que, na Cova do Corvo, Frederico Assunção ficou tão doente de ferrugem e pavio fremindo nas veias, que sua peça me carcomeu na escuridão, como se não fosse possível mais flores nos quintais. Tomara que todos vocês adoeçam também.

movimento terceiro: os escapes

As Contribuições nos salvam. Contribuam, leitores-nautas! Ou toquem um tango argentino, para morrerem depois dos oitenta e dois. Além do já citado João Colagem, Henrique Rodrigues, poeta e outras coisas menos desnecessárias, aparece com “Chão de Ícaro” e “Fotografia”, desenhando, embora não no tema, o mesmo gosto de sangue da reminiscência da morte em nome da ausência que parece de tato. O outro caso, é uma peça de Estércio Cunha, sobre quem devo convocar a voz de Paulo Guicheney: “Sobre o Estércio, posso dizer que é um dos maiores compositores brasileiros. E se não é conhecido de todos, é porque o Brasil é um país de surdos. ‘Música para soprano, flauta e violão n° 2’ é uma pequena obra-prima. É raro escutar tamanha simbiose entre texto — e o texto é do próprio Estércio — e música”.

p. s.: acabo de descobrir um condão: isto não é um editorial, é um prefácio. detalhe: observem a malfeitura do estilo pela iteração doentia da palavra “morte”. definitivamente — me diz o condão —, eu nunca fiz um editorial para ruído branco, só fiz prefácios.



jamesson buarque