Imagens com hálito azul: João Colagem
João Colagem é artístita plástico e vive em Roterdam, na Holanda.
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CHÃO DE ÍCARO
“E subiram sobre a largura da terra,
e cercaram o arraial dos santos e a cidade querida;
mas desceu fogo do céu, e os devorou (Apocalipse 20:9).”
Eu mergulhei na noite e suas sendas trespassadas,
Com a sensação da liberdade sobre os meus martírios.
E tudo o quanto já nos coube nas vivências terrenas
Rendeu-se à travessia vitoriosa para além destes domínios.
Daí que os céus sucumbiram ao clamor da minha angústia
E conquistei-os como um bardo que entoa docemente o seu canto
Tendo a sedução insidiosa com seus sorrisos de lírios.
Abandonei a lua — tão tímida e opaca —, outrora metafórica,
Ao mesmo tempo em que soube das estrelas todas mortas.
E então que essa soberba aniquilou meus infinitos
Enquanto a nódoa mitigava qualquer perfeição dos sonhos.
Porém, no claustro ardeu o grito denso das fatalidades
Por meio de um véu espesso, oriundo da madrugada,
Que me lembrou o peso espesso dessas mãos de chagas.
As vestes nuas sobre o céu cobriram o instantâneo,
Num grunhido de fantasmagoria sobre o jardim esquecido
(À revelia da inocência silenciosa daquelas pétalas,
Em cuja fronte jamais repousaria novamente o orvalho.)
Perdi o vão do tempo e a largura absurda dos espaços:
Na ostentação viril de suplantar o céu longínquo,
Sequer notei que a chuva demasiado fria dessa noite
No espanto desordenado queimou todas as nossas asas.
FOTOGRAFIA
Para Katiê Muller
E então que numa tarde como as outras,
Banhada nas suas sombras instantâneas
No jogo e trégua com seus fins de luzes,
Buscávamos refúgio para os dias
Tentando nos livrar desses relógios
(Com o risco de levar os próprios pulsos.)
Pudéssemos dizer: forçando o hábito
Premindo e indo contra e contraindo
Os mínimos extratos dos momentos
Até que só restasse o indivisível
Sem nome ou traço ou cheiro ou som; a vida
Na essência plena e pura dos instantes.
Contudo, o teor cítrico da tarde
Dizia a realidade como um todo,
Especialmente as coisas que sobravam
Assinalando a imperfeição do tempo.
(Mas antes que esse mar nos afogasse
Centramos no calor das superfícies.)
E veio uma indelével recompensa
Do corte que se apresentou possível:
Medida indefinida, porém clara
A todos os olhares que não medem
Mas antes se preocupam com o que é findo
Abrindo-lhes caminho, antes que acabe.
Naquela dimensão, permanecemos.
Por isso é que esse tempo registrado
(Exato e frágil e forte, feito um ovo
Medrando a previsão dos seus mistérios)
Doou-se, como quem se lança às ruas
E empresta de bom grado a própria casa.
As cores recolhidas de uma tarde.
(Colhidas porque foram cultivadas
— E optamos por colheita, e não captura,
Como parece ser normal no mundo,
No qual a retenção dos atropelos
Tomou lugar dos toques, dos encontros.)
É cedo ainda: a noite das distâncias
Embala os instantâneos. Vejo a foto,
Guardada como um sonho, em tons de cinza.
Paris, maio de 2007.
Henrique Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro, em 1975. É formado em Letras pela Uerj e mestre em Estudos de Literatura pela PUC-Rio. Trabalha com projetos de incentivo à leitura e circulação de manifestações literárias. É co-autor dos livros Quatro Estações: o trevo (1999 (independente)), Prosas Cariocas: uma nova cartografia do Rio de Janeiro (Casa da Palavra, 2004). Autor de A musa diluída (Record, 2006) e Versos para um Rio Antigo (Pinakotheke (infantil), 2007). Colabora com os suplementos literários do Jornal do Brasil e de O Globo.
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Música para soprano, flauta e violão n° 2
Estércio Marquez Cunha
Soprano: Dênia Campos
Flauta: Sara Lima
Violão: Felipe Valoz
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Estércio Marquez Cunha é doutor em Composição. Nascido em Goiatuba/GO, em 1941, Estércio tem obras representativas em diversos gêneros e formações instrumentais.
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O PIOR INIMIGO
Simulas tua queda dentro de mim, com seu orgasmo de tintas e livros gastos, escombros de vértebras e chaves cegas. Preparas um último verso em meu desmaio. Há muito não sonho com teus fantasmas azuis, e no entanto em palavras mesquinhas teu enxame de cadáveres se apropria da miséria de meus dias. Já não sei como lidar com a eloqüência de teus espelhos. Até onde esgotar o sangue dissimulado com que regas teus campos. Descarrilas em tuas pernas todo o ritmo de quimeras que rege a existência. Moscas regurgitam o útero aceso de tuas máquinas. Ciclos vorazes da soberba. Lábios metálicos consumindo frascos de metáforas anômalas. O mundo a teus pés, as pás do silêncio, o pó das surpresas. Há muito não há mais cura ou motivo para estar aqui. Teimamos porque a noite não se vai, porque persiste um labirinto profundo e delicioso ou simplesmente porque não sabemos como apagar esta lâmpada aflita do desespero. O mundo não obedece a mais ordem alguma e quando um de nós toca seu fundo já não há mais princípio ou fim, nada que reconheça o mito da ressurreição. Tuas lágrimas são fulgores vãos. A indignação uma paisagem transtornada e exposta a um reflexo risível de sua comiseração. Antes que fôssemos estas ruínas azuis eu tanto sonhei contigo ao ponto de me confundir com tuas sobras. Caminhamos pelas cidades, rimos de tudo, nos sentimos alheios à indigência humana. Nada é conosco e até nos orgulhamos de nossa descendência suicida. Por que ainda insistes nisto? Eu nunca estive aqui.
Floriano Martins é poeta, ensaísta e tradutor. Dirige, juntamente com Claudio Willer, a revista Agulha (www.agulha.com.br). Email: agulha@rapixonline.com.br.
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