Vaca de Nariz Sutil



CAPÍTULO I - A Nervura da Morte e Outro Amores

[CAPÍTULO I]

De modo inesperado, ou nem tanto, as coisas do mundo começam com um não. Uma molécula diz não a outra molécula e a morte principia a destecer a colcha. Às vezes, tudo acontece como se fosse mágico, e a colcha reluz em azul, no quarto escuro, parece até uma cidade — Goiânia ou Bombaim, pouco importa — sobrevoada por olhos de criança que, pela primeira vez, vê uma cidade do alto. Mas nem esse consolo há: num breve tempo, as moléculas começam a dizer não de modo acelerado e a ciência ainda virá para explicar tudo, “não, não é uma cidade azul sobre a colcha”. E, então, a mágica desaparece e resta apenas uma seqüência interminável de nãos.

Outubro, 26. 1987. Meio-dia: o corpo eviscerado fechado em chumbo. Em instantes, deveria-deverá ser enterrado no Cemitério Parque, Setor Urias Magalhães. Em companhia do sol sólido de Goiânia e de aproximadamente duas mil pessoas. Caixão de chumbo. Dentro, menina eviscerada. Então. Gentes.

Então, as gentes. Menina eviscerada, dentro. Caixão de chumbo. Vitupérios, todos os vitupérios, até os que não existem — ou não existiam, ainda. Os corpos, as bocas, as mãos. Palavras separadas das bocas, vindas de quaisquer bocas. Bocas sem palavras. Desgraça Demo Coisa vazia Morrida Fora daqui Corpo dos infernos. Cruz, concreto, tijolo. De cruz, tijolo, concreto, os pedaços estalando sobre o chumbo. O demo em carne delavindo a morte deva ir pelos ventos isso se esparrama pelo vento é um azul que não se vê. O mal é um azul que não se vê. Só porque a gente é pobre, não tem que aceitar não.

A coisa toda é inverossímil. A prova de que o que não acontece, acontece. A pedra. As pedras. Não só, lascas de cruz e tijolo e concreto e tudo quanté pedaço arrancável de túmulo. Que atire a primeira pedra, quem. Muitas pedras atiradas.

Menina uma, e não Maria Madalena. Nenhum Cristo por ali. Mas a mãe. Dela. A menina eviscerada dentro do caixão de chumbo. O corpo da mãe suado, encostado pelo sol, corpo de mãe entre chumbo de caixão que guarda a morta eviscerada e pedra e cruz e concreto voando e o pelo-sinal e tudo e o nada pesando mais, pois que enlaçados a vitupérios velhos e outros inaugurados só pra matar de novo a morta, só pra desterrar a morta já desterrada, eviscerar de novo a morta eviscerada.



Wesley Peres

Wesley tem 31 anos, mas sempre acham que ele tem cara de 30. Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, com o romance Casa entre Vértebras (romance), Editora Record, 2007. É autor de Água Anônima (Prêmio Cora Coralina, 2001) e Rio Revoando (Com-Arte/USP, 2003). Em 2007 lançará Palimpsestos, pela UFG. Acha deplorável pessoas que gostam de Fanta Uva, gosta muito de estourar aquelas bolinhas de plástico e da literatura produzida na Papua-Nova Guiné. Ah, é psicanalista e mestre em estudos literários pela UFG e doutorando em Psicologia Clínica na UnB. Mora na Cataluña. E-mail: wesleyperes@uol.com.br