Êxtimo



Só-depois do Trauma


Falar sobre o acontecimento do Césio-137 não é algo tão simples para os goianienses que o viveram de forma próxima ou distante. É que ele foi para nós, ou para a maioria de nós, um acontecimento traumático. Vale lembrar que o trauma não decorre necessariamente da gravidade de um acontecimento. Pode ser grave e não ser traumático. Para sê-lo é preciso que seja um acontecimento imprevisto. A imprevisibilidade desregula, desorganiza, desorienta a subjetividade. Mas, sobretudo, ela deforma o campo. Ela é acidental, um acidente, como o do césio. Lembro-me de um caso clínico em que o paciente dizia “as coisas estão tudo bem, tudo bem, só há o fato de que não consigo dormir há três dias”. O acontecimento traumático que o havia desbussolado era o simples fato de que ele, sendo casado, teve uma aventura sexual. Isso, banal para muitos, era inaceitável para ele.

O elemento traumatizante também possui a característica de exterioridade íntima, extimidade (para lembrar o título da minha coluna). Aparentemente, ele vem apenas de fora, explodindo todas as couraças protetoras. Mas quando se olha com atenção, vê-se que ele partiu do próprio interior do qual ele não faz parte. Lacan observou, com a lupa que usava sobre os textos freudianos, que o trauma tem uma estrutura temporal que faz com que o efeito propriamente traumático só seja experimentado como tal no só depois, apès coup. Mas ele também formulou a noção de uma temporalidade lógica composta por três momentos: instante de ver, tempo para compreender, momento de concluir.

Se nos lembramos do acontecimento do césio tal como ele foi experimentado inicialmente por aqueles que o viveram diretamente, salta aos olhos o primeiro tempo, o instante de ver: encanto delirante com o azul fosforescente. Não apenas desinformados, mas capturados pela dimensão do imaginário. Por outro lado, os silenciosos e ultra-poderosos raios do elemento-137 se irradiavam por todas as direções, atravessando carne e ossos, mas..., sem alarde, sem dor, sem cor, invisíveis, sem efeito real aparente. Ou seja, sua atuação se dava mais-além do imaginário, se dava no real. Só depois, no dia seguinte, e nos dias seguintes, efeitos no real começaram a aparecer. Eis que começava, pelo menos para alguns, o segundo tempo, o tempo para compreender. Só dezesseis dias depois, chegou, para um só, a esposa do desvairado Devair, a Sra. Maria Gabriela Ferreira, o momento de concluir.

E nenhum especialista estava lá, coube a ela aquilo que David Hume disse que só a crença, e não a razão, pode articular: causa e efeito (como dizia o “Francês” em Matrix). Algo de estranho e mortal começou depois que a cápsula chegou. Eis a conclusão, eis os dois fatos que ela juntou: doenças, mortes, com cápsula. Pronto! Filósofa! A senhora Maria Gabriela Ferreira. Mas os poderes da razão vieram tarde demais. A cavalaria da CNEM já não tinha índio para matar. A vítima mais vulnerável foi talvez a menina Leide das Neves. A mais resistente foi seu pai, Devair Alves Ferreira. O corpo de Devair, é preciso que se diga, é feito de “um estofo à parte”, é de chumbo, eis a explicação de sua enorme sobrevida apesar de sua enorme exposição. Mas seu coração não, é de cristal, azul fosforescente.

Mas o acontecimento com o césio é traumático também porque, a partir dele, uma nova ordem, uma nova vida, tem seu início, e uma vida amarga para aqueles que ficaram. É a vida do pós-trauma. Há um bando de traumatizados pelo acidente do Césio-137 que ainda hoje sofre na sombra do descaso e do esquecimento das autoridades. Césio? Esqueça isso, é melhor deixar quieto. O maior responsável? Sim muitos sabem, mas é melhor não futucar nisso. É melhor deixar o tempo passar. Tempo, tempo, tempo, tempo... ele dá jeito em tudo, diz um certo censo comum. Mas o recalcado, diz Freud, é indestrutível, e ele é também o que insiste em vir à tona, é uma cadeia significante que insiste em ser reconhecida, diz Lacan, nem que seja sob a forma da mentira.

Mas o que mais me surpreende no acontecimento do Césio-137 é a sua temporalidade em mim. Eu estava relativamente próximo do local, estudava no mesmo bairro, na antiga Escola Técnica Federal de Goiás, atual CEFET. Vivi, sim, na época, uma certa apreensão, mas no fundo, eu recalquei o verdadeiro significado do que ocorria, de modo que eu me sentia distante de tudo, das mortes, do fato de que a radiação poderia ter me afetado... O Césio-137 foi para mim equivalente a Chernobyl, uma catástrofe, mas distante como a ex-União Soviética. Foi só depois, quando eu vi na TV o filme Césio 137 – O Pesadelo de Goiânia, é que eu tive, não apenas a verdadeira noção do que se passou, mas a noção de que eu mesmo estava implicado nisso de algum modo. Foi na minha Goiânia, foi próximo, eu até tinha amigos que eram parentes de um dos rapazes que tiraram a cápsula das ruínas da Santa Casa. Tudo isso ganhou uma coloração significativa diferente. E a frase que um colega me dizia na época ressoou de modo diferente: a essa altura todo goianiense deve ter sido afetado pela radiação. Ver o filme foi o mesmo que soltar a cápsula na minha cabeça. Foi acordar não do, mas para o pesadelo. Pouco importa o valor estético desse filme, o que importa é que sou eu que sou, de alguma forma representado nele. O sujeito, diz Lacan, é sempre representado. Que coisa! O que fica evidente é que eu precisei de um distaciamento para poder ver. Na época eu estava perto demais. Precisei, não apenas do distanciamento temporal (não faz tanto tempo que vi o filme), mas do distanciamento da representação fílmica. Daí que o Nelson Xavier, o ator que representou Devair, é o meu desvairado Devair. A cidade onde o filme foi feito nem é Goiânia (acho que seria impossível fazê-lo aqui), mas é ela que fica na minha mente, insistindo em substituir o lugar real. De fato, nunca tive intimidade com o lugar onde tudo se passou, mas há em mim uma evidente recusa em tê-la. Eis os mecanismos de defesa, os meus, necessários para um sujeito poder lidar com o real traumático. Toda representação é uma mentira construida a respeito do representado. Mas essa mentira possui uma função subjetiva eminente. Como diz Lacan com precisão, “algo que não foi apreensível originalmente, só-depois o é, e pelo intermédio dessa transformação mentirosa proton pseudos.” Do núcleo real traumático, o próprio inconsciente não tem outra coisa a fazer senão construir suas defesas por meio da mentira. Mas “essa mentira é sua (do inconsciente) maneira de dizer a verdade acerca disso (do real traumático)”, acrescenta Lacan. E eis que ela, a minha verdade, roubou a cena do meu artigo desta edição.




Cristiano Alves Pimenta

Nascido em Goiânia, vivido na velha, ou não tão velha, Vila União, logo começou a ler coisas por conta própria e se deparou com uma epígrafe de autoria de Antonio Gramisci: “Todos somos filósofos”. Pronto! Primeiro raciocínio propriamente filosófico: “Se todos os homens são filósofos” (premissa maior), e “Cristiano é homem” (premissa menor), logo: “Cristiano é filósofo”. Tornou-se, então, um jovem filósofo, amante da verdade, leitor de K. Marx, Sartre, Hegel, entre outros. Foi salvo da megalomania apenas pela humildade, que o obrigava por à prova os produtos dessa ratio pessoal. Tortuosos caminhos o levaram, contudo, da faculdade de filosofia (USP) para a psicanálise Freudo-Lacano-Milleriana. Outro pronto! O amor à verdade caiu. Hoje, mais lhe vale uma “ilusão útil” (Baudelaire) do que mil verdades inúteis.
E-mail: cris.alvespimenta@yahoo.com.br