Foucault e o bestiário de Borges


Roberto Amaral


Michel Foucault (1926-1984) atribui a gênese de seu livro As palavras e as coisas (1992) a um texto do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), que menciona a existência de uma certa “enciclopédia chinesa”, cujo conteúdo apresenta uma incongruente classificação de animais,

"a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas" (apud FOUCAULT, 1992, p. 5).

O pensador francês demonstra sua perplexidade através de um longo riso, posto que a leitura do inaudito escrito, o posicionou numa distância considerável da familiaridade do pensamento ocidental, assentado na ordenação lógica, racional e conceitual.

A taxionomia revelada pela enciclopédia chinesa torna-se ainda mais intrigante por se apresentar em ordem alfabética, dando a ela ares de verossimilhança, o que coloca o logos do ocidente diante de seu próprio limite, ou seja, na impossibilidade de pensar tal possibilidade.

Porém, tal irrealização não se apresenta com força suficiente para impedir a sanha cartesiana de dar um mínimo de sentido e razão de ser à ordem apresentada pelo bestiário chinês. Foucault busca, então, rearranjar a impraticável classificação referida, numa nova ordem, palatável ao modo de pensar logocêntrico. Em sua nova apresentação, os animais referidos seriam divididos, basicamente, em reais, aqueles com existência física observável e tangível (embalsamados, domesticados, leitões, cães em liberdade, que se agitam como loucos, que acabam de quebrar a bilha), e fictícios, que só existiriam no âmbito do imaginário (pertencentes ao imperador, sereias, fabulosos, inumeráveis, desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo).

No entanto, uma nova dificuldade se impõe, pois a grande questão, não é justapor animais reais e fictícios numa série alfabética, mas em que espaço se poderia promover este inusitado encontro. Para Foucault, não há outro topos possível para esta incrível reunião animalesca, senão no espaço da linguagem, localizada, neste caso, naquela folha em branco que Borges transcreveu as imagens que dele desejavam irromper.

A possibilidade do riso de Foucault, então, não se consumou, senão por um alargamento profundo de sua compreensão, a ponto de abrir poros nas fronteiras de sua racionalidade, para que se ventilassem os sopros de outros níveis e modos de conhecimento. Neste sentido, inegavelmente, o pensamento oriental, representado aqui pela improvável enciclopédia chinesa de Borges, leva larga vantagem em relação ao ocidental, já que está envolvido, desde a sua fundação, numa atmosfera prenhe da inefável transcendência, e cuja linguagem escrita não traduz o som da voz em linhas horizontais, distanciando-se do infinito, mas se alteia em colunas verticais, os ideogramas, resguardando a busca de intimidade com os céus.

A impossibilidade do pensamento ocidental, racionalista e racionalizante, em abarcar interpretativamente os motivadores daquele absurdo congraçamento bestial está na tentativa malograda de se pensar as imagens, em que eles se constituem, abstraindo-se das mesmas, e não as tomando em sua densidade simbólica. Por este motivo, também se percebe nesta nossa breve discussão empreendida a partir de Foucault, o menosprezo, por parte do logocentrismo ocidental, pelo mundo das imagens, pela intensidade equívoca do âmbito do imaginário, instaurador da exigência de uma fina sintonia interpretativa para o vislumbre dos inúmeros e mutáveis sentidos de sua manifestação.


Roberto Amaral é Mestre e doutorando em Educação pela Universidade Federal de Goiás. Poeta, prosador e crítico de ocasião. Curte a hermenêutica dos símbolos e das imagens. Atualmente mora em Palmas – TO.

e-mail: penedo.amaral@gmail.com

home: penedo65.wordpress.com


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Dia 18 — O Homem que Matou a Lua

Micheliny Veruschk


Nunca saberia eu dizer-lhe o nome. Estranha coisa, portanto. Mais estranho, porém, dizer que seu nome lembrava a lua, mas não uma qualquer. Exata aquela que surge por trás da serra quando é quase noite por aqui, mas ainda se vê a púrpura tarde sangrando pouco preto. Talvez por isso, pelo seu nome, e não pelas cores, tenha trazido tanta dor. Era branca, eu lembro. Olhos como frestas que tinham lá sua arrogância. Nariz, dura beleza. Tudo nela era beleza, se diga. Boca de dizer palavras que não sei e nunca soube. Sorriso nunca para mim. E eu tanto amava. Tanto que me perdi nas noites sem descanso, nos passos que seguia, nos bilhetes dispersos na cabeça, no vento do desesperar, no paraíso incendiado de álcool, no picadeiro de uma agonia que não tinha nome mas que eu sabia ser meu porque meu era, palhaço derrotado por ela, apenas ela. Tanto que me perdi. Não pode ser coincidência essas histórias todas que se contam e que têm a lua por má sina do final. De que faz uivar ferozes bichos. De que sangra mulheres. De que murcha cabelos. De que põe perdição nos dementes. Não, coincidência não pode ser. E foi ela mesma que me pôs perdição. Não a lua, digo. Mas ela, de nome que lembrava uma certa lua, o que não deixa de ser a mesma coisa. Me pôs fatalidade a tal. Como não? Sei bem o que me houve. Os olhos atentos de lágrimas. A fome que nunca mais veio. As manias de morder os lábios até sangrar. As sobrancelhas cortadas à lâmina mais de uma vez. Os gestos repetidos como letras que se enfileiram. A tatuagem feita com ferro quente no meu peito com o nome dela, o mesmo que não sei dizer embora esteja gravado para sempre bem aqui.

Um dia, tudo me foi cansativo demais e o que eu amava foi ficando sem ar. Primeiro roxo ao redor dos olhos. Depois, em torno da boca. Sem ar simplesmente. Depois cavei um buraco bem fundo com cheiro forte de terra úmida e a enterrei. Sem pompas, mas respeitosamente. Sem ninguém que a chorasse além de mim. Era um buraco tão fundo que chamei de buraco do fim do mundo, só pela graça de dar um sorriso. Depois, procurei a polícia e confessei. Não acreditaram em mim. Zombaram da minha dor. Os levei até a mesma paisagem. Cavaram a sepultura improvisada e, ao fim, riram ainda mais. Diziam que ela não era ela, mas apenas fotografias de revistas. Foi então que se deu o primeiro uivo e talvez por ele e pelos seguintes é que me trancaram aqui nesse lugar. Pelo assassinato, não. Dizem eles que não posso tê-la matado por que ela é de muito longe, nome como de lua eu já dizia, quem lembra? Dizem de uma loucura minha que não sei bem o que se trata. Acho que é vingança, porque todos eles a queriam tanto quanto eu. Desdém a todos, porém, o pagamento dela. A falsa. Enfim, não sei como é que ela sumiu do local do crime. Fez isso só pra me vexar.

“ELA POR ELA MESMA"

Nasci no Recife, Pernambuco. É um dado mais biográfico do que afetivo, porque quem me deu identidade foi Arcoverde, cidade do interior pernambucano que absolutamente amo, apesar dos tantos problemas estruturais.

Micheliny foi o nome que meu pai escolheu, por causa de uma moça também com esse nome que fez muito sucesso na década de 1970 no programa de Flávio Cavalcanti. Verunschk, que é nome também, foi minha mãe quem escolheu, era o nome de uma heroína de romance do qual ela nem lembra mais.

Desde muito cedo sou leitora: meu pai comprava livrinhos e minha mãe, lia desde muito cedo poemas comigo e para mim. Meu primeiro poema escrevi aos dez anos e chama-se "Cura" e é engraçado porque é muito empolado para uma garotinha. Menininha estranha eu fui, é certo. Nunca mais parei de escrever.

Poesia foi uma conquista mais natural, se é que se pode usar esse termo. A prosa, temo. Tem armadilhas que me assustam, mas nem por isso ela deixa de ser sedutora.

Escrevo. É meu ofício de existir, aquele que escolhi. Tenho a pretensão de ser a melhor dentro dos meus critérios e isso faz com que seja bem exigente com minha produção. Se serei a melhor para os outros, não sei, minha urgência é escrever.”

(Publicado em Revista Idiossincrasia)




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TEMPO E DEVASTAÇÃO EM TAKESHI KITANO


Renata Wirthmann Gonçalves Ferreira


O filme Dolls, do diretor Takeshi Kitano, nos apresenta, ao mesmo tempo, três histórias de amor e de extrema violência, três histórias de devastação. A primeira é de Matsumoto e Sawako, inicialmente separados pela ambição da família de Matsumoto que queria que o jovem se casasse com a filha do presidente da empresa em que trabalhava. Esse evento, o quase casamento, leva Sawako a uma tentativa de suicídio. Ela não morre, mas fica num estado alheio ao tempo e a realidade. Frente a essa notícia o jovem noivo abandona a filha do presidente da empresa antes do início do casamento para ir atrás de Sawako. Nessa relação amorosa temos duas grandes separações: a primeira, em que eles ficam fisicamente separados, pela escolha de Matsumoto de seguir o planejamento de sua família e a segunda, em que eles ficam fisicamente unidos, mas estranhamente separados.

Esse estranho que aponto é o estranho freudiano. Matsumoto e Sawako são familiares e estranhos um ao outro. Andam todos os dias juntos, amarrados por uma corda, fisicamente amarrados, todos os dias juntos, exclusivamente juntos, mas separados, mais do que nunca. Assistimos ao filme sempre na expectativa de que aparecerá algo de inesperado na relação dos dois, que daquele cotidiano fixo e inalterado, que independe do tempo, sejamos abruptamente surpreendidos, não por uma estranheza, mas por uma familiaridade.

Durante todo o filme o casal andarilha sem destino e, nesse percurso, caminha o tempo. Isso se evidencia pelas estações do ano: o filme inicia na primavera, com flores e diversas cores; passa pelo verão; pelo outono violentamente vermelho até chegar ao branco inverno. Apesar de vermos o tempo passar ele não passa do mesmo modo para Matsumoto e Sawako. Na verdade o tempo não passa para Sawako. É o extremo alheamento do tempo que permite que nem sequer ela envelheça ou se modifique. Enquanto Matsumoto emagrece, fica com os cabelos longos e com a pele tocada pelo tempo, Sawako permanece com as feições de menina, o cabelo não cresce, ela não se suja, nada acontece ao seu corpo, o tempo não a toca, tampouco a realidade.

O tempo não a toca por quase todo o filme, até o inverno. Após mais uma das várias recordações do casal aparece um elemento de familiaridade entre os dois: Sawako mostra para Matsumoto o pingente que representava a união dos dois, a promessa de amor, o pingente que ele oferecera a ela no dia que a pediu em casamento. Nesse momento, o tempo e a realidade a atingem como uma bomba e o efeito é devastador. Acompanhamos os efeitos dessa bomba nas expressões do rosto de Sawako que se inicia com o espanto — nosso, dele e dela —, passa por um leve sorriso que nem chega a se completar e é interrompido por uma profunda tristeza até desabar no desespero e na devastação. Pronto, a impiedade do tempo e da realidade a atinge de uma só vez.

Esse jogo com as separações, com as impossibilidades das relações amorosas e com o tempo aparece também nas outras duas histórias de amor, na história de Hiro com sua namorada que o espera num banco de praça por todos os almoços de sábado da sua vida, e na história do fã Nukui e a Cantora Pop Haruna. As três histórias do filme nos auxiliam a contornar uma única: dos bonecos de Banraku.

O tempo se faz questão tanto na construção dos personagens quanto na própria construção do filme. As histórias são todas entrelaçadas, os três casais, das três grandes histórias de amor, passam uns pelos outros, durante todo o filme, assim como elementos do passado das histórias desses casais, que percorrem a recordação e o tempo presente no qual o filme se situa, elementos simples como um chapéu que fora utilizado no passado e que agora aparece sendo soprado pelo vento.

Essa construção faz toda nossa compreensão do filme depender do tempo, de um só depois, retroativamente. O filme conta, já no início, tudo o que vai acontecer, narra a devastação das relações amorosas através do teatro de Bunraku, mas disso nos só nos damos conta no final do filme, quando, retroativamente, há um ganho de sentido, aquilo retorna com uma nova significação.

Na construção das cenas do filme encontramos os três tempos do tempo lógico lacaniano: o tempo de olhar — de assistir o filme do modo que ele se apresenta aos nossos olhos, com os elementos e seqüências que nos são dados; o tempo de compreender — quando começamos a sair da posição de simples espectadores e passamos a rearranjar os elementos e cenas apresentados até então; e, finalmente, o tempo de concluir em que nos somos tomados por uma urgência de concluir. O filme chega ao fim e nos força a encerrar minimamente o tempo de compreender. “Passado o tempo para compreender o momento de concluir, é o momento de concluir o tempo para compreender. Pois, de outro modo, esse tempo perderia seu sentido” (Lacan, Escritos).

Na história apresentada pelo teatro de Bunraku há dois personagens, um casal. A Boneca (doll) diz: “Eu lhe imploro. Acalme seu coração. Não seja escravo de tantos sentimentos tristes. Quem o deixou nesse estado. Ninguém mais. Ninguém mais além de mim Umekawa. Eu sou culpada de tudo. Eu devo me arrepender? Ou devo me lamentar? Eu não sei. Veja meu coração. Prostrado de tanta angustia”. O Boneco (doll) responde: “São apenas grãos de areia passageiros. Seus vestígios tornaram-se poeira espalhados pelos caminhos para Ymato para serem pisadas para sempre”.

A história dos Bonecos (dolls) não conta apenas o trajeto do casal principal, mas dos três. “Quem o deixou nesse estado? Devo me arrepender? meu coração também está prostrado”. Nesse tipo de amor devastador, violento, não há sobreviventes. “Como posso me arrepender de ter deixado-o nesse estado se isso também me custou tão caro?”. O filme conduz para o impossível dessas relações amorosas, para seu inevitável fim.



Renata Wirthmann Gonçalves Ferreira é professora de Psicologia da Universidade Federal de Goiás — Campus de Catalão —, psicanalista e doutoranda em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). A autora tem destaque pelos seus ensaios sobre cinema e artes plásticas.