Gargântua



Leque de Claudel


Tradução e apresentação:Nereu Afonso da Silva


Os dois poemas acima e outros noventa e oito formam as Cem frases para leques do poeta e dramaturgo francês Paul Claudel. Criados entre 1926 e 1927, durante missão diplomática do autor no Japão, foram originalmente caligrafados pelo poeta, litografados em acordeões de papel desdobráveis da direita para a esquerda, segundo a maneira oriental, e acompanhados de ideogramas traçados por Ikuma Arishima em suas limitadas e luxuosas edições japonesas. Em 1942, seu primeiro empobrecimento: a edição francesa, ao reduzir a obra ao espaço convencional do livro, priva nosso espírito, nossos olhos e nossas mãos do contato com o objeto precioso e nos obriga a aceitar tão-somente sua dimensão lingüística. De desfrutadores de folhas de leques pinçadas fortuitamente passamos a leitores de páginas sequencialmente encadernadas em livro. São essas, dirão alguns, as conseqüências inevitáveis da realidade técnica exigida pela necessidade de divulgação da obra a um largo público. Mas apesar disso, algum deleite pode ainda ser resgatado nas modernas edições francesas de Cem frases para leque [incluindo a edição de bolso da Gallimard], pois, em vez de optarem pela transcrição mecânica e tipográfica dos poemas, elas mantiveram em suas páginas as reproduções manuscritas dos versos de Claudel.

Nessas páginas, além da atração pela brevidade do haicai [Claudel, como se vê, não pratica a difundida forma dos três versos de 5/7/5 sílabas], percebe-se, através de sua caligrafia, através da energia ou timidez da mão no pincel, do traço firme ou hesitante, da maior ou menor quantidade de tinta embebida pela folha, do espaçamento escolhido ou escolhendo-se, da vibração imposta a ou proposta por certas letras, sílabas e palavras, enfim, percebe-se por toda a dinâmica dos elementos presentes no fluxo criativo que vai do espírito ao papel, passando pela mão, pincel e tinta ou, se preferirem, do papel ao espírito, passando pela tinta pincel e mão, o gesto justo, fonético, sonoro, colorido e sugestivo do poeta.

Para apresentar uma pequena seleção desses poemas em nossa língua – e em versão virtual – sem supervalorizar o hiato que pode existir entre as impressões dos espectadores das primeiras edições japonesas de Cem frases para leques e as impressões que terão seus leitores brasileiros de hoje, decidimos apresentá-los conjuminados com a reprodução caligrafada da edição francesa de 1942. Dessa maneira, espera-se que aqueles que se encontram face a face com esses versos traduzidos possam, pacientemente, aclimatar-se a seu ‘novo feitio’ e, quem sabe, transformarem-se em seus co-produtores ao cotejá-los com os originais, ao sentirem no ‘s’ isolado de ‘incenso’ o cheiro de sua fumaça, ao deixarem-se impregnar pela dinâmica gesto-palavra claudeliana, tão propulsora, a meu ver, de uma nova expressão de sentido.




Nereu Afonso da Silva

Nereu Afonso da Silva nasceu em São Paulo, em 1970. É autor de Correio Litorâneo, Editora Record, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, na categoria contos. Formado em filosofia pela USP, enveredou para o teatro. Foi um dos Doutores da Alegria (palhaços em hospitais). Hoje vive na França, onde escreve, atua, leciona e dirige para o teatro. Mantém o blog http://bombyx.wordpress.com.
E-mail: nereu.afonsodasilva@neuf.fr