Número 9


O número que pariu

Estamos de aniversário. Engraçado que todo mês é mês de aniversário. Mas, neste caso, tudo indica que acabamos de nascer, pois nove, se nove fora, é igual a nada, e nada é zero, e zero é para onde todos os números aportam, como para o branco todas as cores também aportam. Seria dizer que o zero é branco ou vice-versa.

Nossos leitoresnautas já devem ter percebido que o editor, quase que número a número desde o número seis desta revista, vive dizendo que vai fazer um editorial diferente e termina apenas fingindo que não fez o editorial de sempre. Pois desta vez, ele decidiu não fazer nada diferente, e fará, portanto, outro tipo de editorial.

Parida por si mesma e vinda da psicografia de parições em reticências, a família ruído branco faz deste número nove o número da assunção do caos. Depois de ruído branco número quatro quase-temática e depois de ruído branco número oito doente e decididamente temática, concluímos que nossa casa é do carnaval. E hei-nos aqui, bebê parido de poros abertos a tudo o que é lado. Mas apesar da mistura de feijão com caviar e guariroba e tapioquinha com ovo frito marinados em cachaça de Bordeux para tomar com cerveja crianza de vinho de Salinas, ruído branco amalgamou, até esta parição, uma ordenação do caos. O editor quer dizer que antigos e novos terminaram definindo, a torto e a direito, uma linha editorial para as colunas, e isso ele descreve do parágrafo abaixo até mais embaixo.

Patchwork se tornou a coluna sobre artes visuais, sempre em linguagem o mais objetiva possível e sem perder a fineza da sensibilidade, para mostrar que a subjetividade não é a Casa de Mãe Joana — embora que, se fosse, poderia ser vista pelo claro da desordem. Vaca de Nariz Sutil se formou como o lugar de dizer poesia entre o espelho e o guarda-roupas de fora do lado de dentro de um quarto fechado, com o cuidado de perscrutar a humanidade pelo miolo do olho. página p. parece que tem alguma coisa a ver com poesia também. Às vezes no vestuário da poesia e às vezes das crônicas dos dias de ontem, com os óculos planando sobre as horas de agora, Neuropop se configurou como o lugar de expor à carne viva a nostalgia, o esquecimento, a angústia e outras dores das cidades. E assim, também trocando de roupa, Mieloma de Ocasião se tornou, ora em crônica e ora em conto, o lugar de escavar as feridas das ideologias em confusa combustão do mundo atual. C-dur, ora se recusando de verbo e ora o dedilhando em ponta de bisturi, é a casa dessas mais altas inteligências e sensibilidades em formato de música clássica contemporânea em meio eletroacústico. Neste ponto, a família ruído branco pede a atenção e os aplausos de todos a nosso Paulo Guicheney, pelo Prêmio Funarte da XVII Bienal de Música Brasileira Contemporânea.

Êxtimo vem sendo a coluna em que a psicanálise lacaniana coabita a arte e o cotidiano na experiência da fala fora da clínica, dada ao mundo em abertura, sem titubeio da vista. Gargântua, também de vestuário daqui para acolá e de volta, tomou as vezes da coluna que nos deixa saborear a experiência da vida, como pétala e água, ora em conto e ora em escritura de tradução com gosto de fruta madura que viça na casca o brilho do sumo. Com a sensibilidade da soma que multiplica o olho a fio de tesoura e sopro de cola, Cova do Corvo vem sendo o lugar onde a tela do monitor é brindada pelo condão da colagem — e toda grande arte vem sendo feita de colagem desde Homero e Polignoto, senão desde mais para trás, afinal o mundo nasceu de um deus se grudando nas águas para parir a imagem do verbo. Hexercício Íbrido, sabendo que poesia em muita dose nunca basta, é a coluna da poeta que não descansa de encontrar imagens e mais imagens de habilidade verbal astuta, parida, indiscutivelmente, para longevidade. Viver Dói!, pela voz de seu arauto tão órfico quanto marginal, e fincado nos veios das veias da árvore do Finado Túlio tanatografado, acaba de anunciar-se como a coluna de descarnar o nobre do trágico, para enxergar ali o que há de melhor: os nervos dos trapos.

E porque miscelânea pouca é bobagem, de número a número, saltando o número oito, para evitar parição de prematuridade, a família ruído branco vem mantendo, no melhor que os convites e as visitas podem dar, a coluna de Contribuições. Neste número figura Roberto Amaral, com a escritura “Foucault e o bestiário de Borges” — uma tão concisa quanto cuidada, e por isso precisa, análise fenomenológica do livro A palavra e as coisas, do pensador francês, cuja gênese se atribui de uma taxionomia de animais, feita pelo escritor argentino a partir de uma “enciclopédia chinesa”.

Figura também, esta poeta senhora absoluta da metamorfose de coisas em seres — e não exagero, porque se digo absoluta é absoluta mesmo —, Micheliny Verunschk. No entanto, nesta ruído branco número nove, a poeta figura de prosadora de ficção, com o conto “Dia 18 — O Homem que Matou a Lua”, do livro inédito Uma Lua de Loucos. O livro, em quase-formato de calendário, vinca um conto de louco ou santo (porque dá no mesmo) para cada dia do ano — afinal de contas, não há um dia que não seja de santo, e, por isso, dia a dia, há sempre um parafuso a menos.

No mais, temos, também, para nosso grado, a presença de Renata Wirthmann. Como “tempo de olhar” e como “tempo de compreender”, passando por alguns fios da psicanálise freudiana e lacaniana, Renata Wirthmann lê, com clareza narrativa e argumentação cuidada, o filme Dolls, do cineasta japonês Takeshi Kitano. Na leitura da psicanalista, não escapam a fotografia, a distribuição do espaço e a passagem devoradora do tempo, bem como a condição estática de nulidade desta entidade. Sobretudo, Renata Wirthmann mergulha com olhos de anzol no glúten líquido das relações humanas do imo em derruição, transitando com fina inteligência e sensibilidade pelas malhas de labirinto da angústia e da decepção.



jamesson buarque