Patchwork




O percurso da linha como elemento expressivo na pintura

Parte I


Uma linha é definida como uma marca com comprimento e direção, criada por um ponto que se move através de uma superfície e podendo variar em comprimento, espessura, direção e curvatura. A linha circunscreve e delineia a forma, mas não é forma e, em geral, não é considerada como contendo uma cor. Para alguns pensadores, ainda hoje, a linha não pode subordinar a cor e, por essa razão, não pode ser considerada como pintura. Ela é associada a conceitos como razão, lógica, controle, precisão, bidimensionalidade e refinamento. A cor, por sua vez, é associada às idéias de sentimento, mobilidade, densidade, tridimensionalidade, opticalidade e qualidades tácteis. Enfim, a cor, desse modo, seria o veículo ideal e fundamental para a pintura.

A dificuldade em conceber a linha como cor (pintura) provém de uma antiga dicotomia, entre o linear e o pictórico, estabelecida formalmente em 1915, por Woelfflin, em Principles of Art History. No entanto, desde o final do Século XV essa discussão já se processava.

Ticiano e Botticelli são fortes representantes dessa polaridade. A pintura de Ticiano deve muito à escultura que, inicialmente, ensinou aos artistas como modelar e sombrear para dar uma ilusão de relevo, e, também, os ensinou como compor essa ilusão numa ilusão complementar de espaço em profundidade. A pintura no ocidente, durante muitos séculos, lutou para ser uma pintura escultural, para salvar-se da bidimensionalidade (sempre relacionada ao uso da linha). Nas obras de Ticiano, vemos o que está em seu quadro antes mesmo de ver o quadro como pintura. Para os defensores da pintura pictórica escultural, os limites lineares das obras de Botticelli, como no detalhe abaixo, é uma espécie de fuga do realismo. Em Botticelli, temos a noção da bidimensionalidade da pintura antes, e não depois de nos tornarmos conscientes do que essa bidimensionalidade contém. Ao chamar atenção para a própria pintura e não para o que está contido nela, a obra de Botticelli ganha uma dimensão auto-referencial que se tornaria, muito tempo depois, uma das principais características da pintura moderna:

Madalena Penitente – Ticiano (1530 – 1535)

Detalhe do Nascimento de Vênus – Botticelli (1485)

No século XIX, Jean-August-Dominique Ingres, apesar de ser filho de um escultor ornamentista, opôs-se radicalmente ao triunfo da pintura pictórica, representado na época por Delacroix. Ingres realizou pinturas que se colocavam entre as mais bidimensionais, menos esculturais, já feitas no Ocidente por um artista sofisticado desde o século XV. Desse modo, a partir de meados do século XIX, todas as tendências ambiciosas da pintura convergiam numa direção antiescultural, plana e linear:

The Valpincon Bather – Ingres (1808)

Massacre de Scio – Delacroix (1824)

Ao chamar a atenção para sua própria bidimensionalidade, ou seja, para o fato de ser uma superfície plana, a pintura se tornou mais consciente de si mesma. Com os impressionistas, a dicotomia entre desenho e cor (pintura) tornou-se uma questão de experiência óptica contra experiência óptica modificada:

Foi em nome do que era pura e literariamente óptico, e não em nome da cor, que os impressionistas firmaram-se na tarefa de minar o sombreado, o modelamento e tudo o mais que parecesse ter conotação escultural. E, da mesma forma como David tinha reagido contra Fragonard em nome do escultural, Cézanne, e depois dele os cubistas, reagiram contra o Impressionismo. Assim como a reação de David e de Ingres tinha culminado numa espécie de pintura ainda menos escultural do que a anterior, a contra-revolução cubista resultou numa espécie de pintura ainda mais plana do que tudo o que a arte ocidental já tinha visto desde Cimabue — tão plana, na realidade, que dificultava comportar imagens reconhecíveis. (GREENBERG, Clement. A Pintura Moderna. In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo, Perspectiva, 2002).

Entre os vários aspectos da importância de Matisse para a pintura moderna está o fato de ele ter sido o primeiro artista a liberar a linha para operar com a cor tanto quanto com o puro desenho. As linhas em seu quadro La Joie de Vivre (A Alegria de Viver) estruturam toda a composição, independentemente das figuras que se definem. As cores, nesta obra, são planas e completamente subordinadas às linhas:

La Joie de Vivre – Matisse (1906-7)

A tridimensionalidade é domínio da escultura e, para garantir sua própria autonomia, a pintura vem tentando despojar-se de tudo que poderia ter em comum com a escultura. Desse modo, a linha se tornou um importante elemento expressivo para a pintura moderna. E é nesse curso que a pintura moderna se tornou abstrata: auto-referencial e autocrítica.

Num momento mais recente da História da Arte, Jackson Pollock surge com suas borrifadas de tinta e meadas desfeitas. O Elemento mais forte da pintura de Pollock é o modo como as linhas são distribuídas na superfície da tela. Com ele, as cores são definitivamente submetidas às linhas:

Number 1 – Pollock (1950)

A partir de Pollock, as linhas ganharam uma analogia musical passando a estruturar intervalos, notas, duração, cordas e movimento (criado pelo padrão rítmico).

Mesmo distante da pintura realista, Pollock consegue dramatizar, com seu expressionismo abstrato, uma crise ou situação imediata através de uma espécie de fragmento de ação, explorando a ambigüidade entre a arte e a vida real. O vigor da pintura de Pollock está no uso de linhas capazes de assaltar os nossos sentidos, revoltar nossas mentes e se apossar de nossas almas.

Summertime: number 9A - Pollock (1949)

Number 14 – Pollock (1948)

Continua na próxima edição da coluna Patchwork...

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Referências:

GREENBERG, Clement. A Pintura Moderna. In: BATTCOCK, Gregory. A Nova Arte. São Paulo, Perspectiva, 2002, p. 95 – 106.

TUCKER, Marcia. A Estrutura da Cor. In:__________________, p. 263 – 280.

WOOD, Paul. Modernismo em Disputa. São Paulo, Cosac & Naify, 1998, p. 170 – 256.




Patrícia Ferreira Martins

Patrícia é artista plástica e, atualmente, doutoranda em letras e lingüística pela UFG. Adora música alternativa na linha punk rock e grindcore. Também adora literatura, assistir televisão, surfar na internet, comer pipoca no cinema e tomar mirinda com os amigos. É casada com o Wellington.
E-mail: patricia@wsmartins.net