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notícia ou alguma notícia senão uma informação, certamente desnecessária, sobre um livro que escrevi e que não terminei de escrever


Não raro, embora não-freqüentemente, e, certamente, por falta do que fazer, algumas pessoas já perguntaram — e graças a tudo de bom, se isso existe ou se é coisa para se evocar como agradecimento, ninguém me pergunta mais — por que o tal do Novíssimo testamento é sub-intitulado Tomo I. Obviamente, nunca foi, e ainda não é, de bom tom responder a essas pessoas que o subtítulo, ou mais pornograficamente falando, que aquela alínea explicativa implica que aquele volume é o primeiro de uma série. Todo mundo que lê desde um tanto cedo — embora isso não possa ser medido pela idade — sabe que tomo é cada uma das partes ou volume de uma enciclopédia. O autor do Novíssimo testamento nunca quis fazer uma enciclopédia, não por falta de vontade, mas de competência mesmo — uma vez que vontade e ambição ele tem um bocado, embora a preguiça fale mais alto.

Originalmente, saibam os interessados na pergunta: o Novíssimo testamento foi uma tentativa de redimir o ridículo primeiro suposto livro do autor: os delírios. Reescreve daqui, bricola dali, deu no volume que vocês conhecem — vocês que perguntaram. Embora configure naquele volume em segundo lugar, Tomé da Luzia foi o primeiro personagem. Ele nasceu de uma coisa que tem a ver com santos, anjos, heróis, covardes, ascetas e adolescentes imberbes de bunda de fora. E somente por ele nasceu o outro, do primeiro capítulo do poema, o tal de Emmanuel Nazaré. Na verdade, o livro nasceu deste cara, porque foi quem começou a tal de reescritura e bricolagem a partir de os delírios. Não perguntem ao autor se é suficientemente inteligente e/ou sensível reescrever e bricolar um livro fracassado. Não perguntem porque ele não sabe responder. Garanto! Bem, o resto está lá no volume publicado pela Editora da UFG em 2004, inclusive, a terceira personagem — que neste caso, ficou como terceira mesmo —, a tal de Amada Helena. Acho-a melhor. Talvez porque sou amante do pensamento e da sensibilidade feminina. A própria prefaciadora, Goiandira Ortiz Camargo, como se pode ler no volume, começou sua leitura por esta personagem. Outras leitoras, ainda que não tenham feito o mesmo, preferem a tal — segundo depoimento recorrente.

Pensando em compor um romance versificado ou um épico desarranjado, a dramaturgia espalhafatosa do autor programou os seguintes tomos: I – Emmanuel Nazaré Ou O tecelão de parábolas; Tomé da Luzia Ou A morte começa pelos olhos; e Amada Helena Ou o Juízo e o Pecado — que foi publicado, como sabem os inquisidores. II – Judas Ou A traição inquire dúvidas; Pedro O pedreiro Ou As paredes da igreja não são de pedra; e Johann Sebastian von Patmos Ou João O sebastião do bastitério. III – Abraão Linconeu Ou A abertura do gineceu para o androceu; Moisés das pragas Ou O cajadinho mágico; e Maria Chiquinha da Batuta Ou Tudo começa pelo feminino. Na lógica narrativa — porque o autor supunha que havia alguma —, o mundo perfeito resultado de quando Emmanuel Nazaré roubou Amada Helena de Tomé da Luzia, conduzindo-a do juízo da prostituição para o pecado da beatitude, deveria se derruir no terceiro capítulo do Tomo II, por força de uma metáfora explicitamente nazista e apocalíptica — que dá no mesmo. Tudo dá no mesmo ao contrário. No Tomo III, a felicidade (commedia) renasceria, por ação de um pássaro transitando entre a transa das flores até desembocar no signo de liberdade feminina de Lilith, Eva, Hera, Atena, Afrodite, Safo, D. Inês, Sóror Alcoforado, Mme. Bovary, Ema (de Pompéia), Conceição e Virgínia (de Machado) e Chiquinha Gonzaga.

Como tudo pareceu óbvio, como a escrita do Tomo I oprimia e oprime o autor por sua boa recepção — não que ele quisesse uma má, mas que ele não pensou que seria tão boa e muito menos pensou que toda a edição seria vendida em menos de um ano e meio — e como os títulos e subtítulos foram beirando o ridículo, deu muita descoragem, e ele não escreveu os outros tomos. É preciso muita coragem para fazer Literatura. Na verdade, para não mentir assim descaradamente, ele escreveu o tal de Judas Ou A traição inquire dúvidas, e também escreveu o tal de Johann Sebastian von Patmos Ou João O sebastião do batistério — mas este ele perdeu, não sabe lá em que HD ou disquete, porque ainda usava disquete há um ano, mais ou menos.

Mas, para dar a devida resposta a quem perguntou um dia — e, conseqüentemente, respondendo a quem por ventura tiver a intenção de perguntar —, o autor não continuou nem continua com seu tríptico por pura, completa e simples preguiça.




Jamesson Buarque

jamesson buarque é poeta, professor, crítico literário e doutor em estudos literários na ufg. publicou os delírios e novíssimo testamento. sente-se muito mais antigo do que sua idade tri-trina cristã. além de poesia e magistério, gosta de vinho, cachaça mineira, desenho animado, cinema, política, bíblia e fenomenologia, tudo colado. importante: é sobre essa colagem sua coluna.
E-mail: jamessonbuarque@yahoo.com.br