Vaca de Nariz Sutil
Nos mares de um grão de vento:
sereias, com seus lábios de água,
com suas asas de areia.
*
Um anjo chinês
dizia em escuro
a biografia da chuva
e a escrita da luz
por dentro do muro.
*
Uma água
O som azul da maçã,
vazia maçã de massa qualquer,
qualquer massa prenhe de areia,
líquida areia de movimento deserto:
o deserto macio de sua tensão:
noite incrustada
numa água viva flutuando por dentro.
*
as redes, as palavras, o corpo —
essas coisas que guardam em seus furos
os segredos que nos escolhem
*
Percorre como um caule ou a morte,
percorre como a mão percorre o tempo
ou como a superfície do vento se percorre,
percorre, mortalmente, uma rua numa tarde sem estrelas
e em que a neve brilha o brilho de um corpo
ou das frases nuas enrolando um demônio morto
um vidro quebrado no asfalto: intermeando o vidro e o passante,
por sobre o reflexo torto, uma formiga, espremida pela imagem
que transita entre o vidro e o passante, numa linguagem nua
movida a raios de lua ou de sol ou pela coisa nenhuma
pensada agora pelo passante que percorre.
*
Folheia as profundidades da nuvem,
estica-as na carne das pedras,
antes de um mero gole de vinho,
conta as estrelas de minha voz
sem origem
e cujo destino é essa mesma origem,
e eu, aqui, por entre mim,
com passagem apenas
para o você que atravessa,
de dentro para fora,
a minha janela por quando ouço
os ventos parados molhados
por esse sol alicerçando sombras
emaranhadas nesse seu corpo aí
com você dentro, você
que é sobre tudo corpo e palavras
se dizendo,
calo-me para vê-la a me ver calado
sobre as suas rosas destiladas
destinadas a alar de musgos
a minha língua
cansada de secretamente percorrê-la.
*
Então,
em meio à eternidade,
ardia-lhe o gume
de não ser humano,
de não mais ser aquela fratura imposta,
e, sobretudo, doía-lhe aquela noite,
a única possível no depois da morte.
*
objeto de sua própria sombra,
ela sobe a escada da febre sonora,
a escada é de um verde lua
e o vento sopra suas folhagens;
observando bem, veremos
à esquerda
o corpo de Deus, nu,
vestindo o mar
do caos-mover-se
que reveste o interior dos deuses;
ela não sobe mais a escada,
observa os anjos marinhos
embaralhando nuvens:
ela, subitamente, se assusta:
um poeta, de fora da página do mundo,
a vê como se a sonhasse,
e nesse olhar, do poeta,
até mesmo Deus decai para o nada,
enquanto ela, com os seus olhos que agora olham o poeta a olhá-la,
enquanto ela sustém toda a teia daquele que a sonha.