VIVER DÓI!



Cacos de dores

Mas todos agora vão livres da dor de escrever sobre a morte, mas ela vige sobre todos nós ainda mais agora.

O trágico nasceu para ser doença de nobre. Ou pelo menos teorizaram assim. Diante dos cidadãos e na frente de seus palácios, os aristocratas gregos davam piti sofisticado que contaminava a todos, pois os problemas ali por resolver trariam conseqüências sociais de dimensões consideráveis. O povo era castigado pelos fenômenos da natureza até que o herói se dignasse a enfrentar seus medos desmedidos.

Mas aprendemos todos também com o trágico, talvez por conseqüência dos pecados dos nobres, e, nessa doença, nos perpertuamos incuráveis. Daí que as artes subseqüentes continuaram a retratar, digo, cantar as situações trágicas, e muito mais nas camadas “inferiores” do povo; súbito, nos descobrimos universais. Mas não foi o mal trágico que doía nos nobres e afetou o povo. É que os nobres o sofisticaram e fomos atingidos por esta descoberta (só para não deixar passar o exemplo, como uma cápsula de césio desleixada nas ruínas de um hospital em construção por governantes em promessa de campanha: acharam, tava fechada, abriram, se fuderam, nos fudemos — mas nem tudo neste exemplo tem a ver com minha afirmação). A sofisticação naqueles tempos se deu pelo intermédio da escrita. Os letrados nos condenaram a jamais ignorar a tragédia em nós. E já não somos mais inocentes, pois adotamos com louvação a arte da littera, por achar que ali obteríamos o aparente conforto dos heróis... puff!

A diferença, agora, é que a origem da descoberta não alivia nossas dores e talvez as aliviasse naqueles cidadãos. O herói descobriria que ele mesmo era a fonte dos males; ele e toda sua estirpe. Assim, já não nos basta levar os aristocratas para a guilhotina ou quedar a bastilha. Bastardos, aprendemos que nada mais é bastante. E o capital reproduziu tudo isso em larga escala, embalou em papel celofane multicolorido e vende no cartão ou boleto em gerúndio telemarketing — o que é pior, pois conseguiu, numa espécie de deus ex machina (poder divino), desaparecer com o patrão; os nobres são agora o global.

Então, como já disse, já não importa mais procurar quem pariu Mateus (não nesse caso, porque depois a luta continua, companheiros). Quero compartilhar (como sou bonzinho!), nesse texto, o trágico que agora temos, em algumas manifestações que nossa cultura literária perpetua.

Entretanto, este texto ainda é uma introdução do que vai acontecer nesta coluna — os trágicos marginais do dia a dia, daí VIVER DÓI!.

Algo a estranhar aqui é o tom levemente irônico e descomprometido do meu discurso. Mas o último número de Ruído Branco ainda está doendo, então decidi aliviar, e qualquer desatenção. Faça não. Pode ser a gota d´água!

Enfim, este texto é, por enquanto, só um anúncio. Assim também é o trágico: ele se anuncia, se evidencia gritante, muitas vezes com humor, como Dioniso, em As Bacantes, faz do rei Penteu um travesti, o embebeda, ensina-lhe os passos da dança bacante e o envia como o bode expiatório para as selvagens celebrantes das dionísias.

Em tempo, escreverei sempre esta coluna com a parceria do meu compadre Finado Túlio, o qual, em sua sede de túneis, como os punhais, encerra o anúncio trágico com alguns cacos literários aqui e ali, que virão por aí

como conta a Clarice no conto de Lispector em que uma moça visita o amado em seu trabalho na rua e ele amando lhe oferece um pastel;

Como Naziazeno e o desassossego e Os ratos, trinta, arredondando, com a iminência da chegada do leiteiro;

Como o menino nasceu entre a lama e a faca (...) um deus de bermuda, um pé-de-chinelo/ imperador do morro, reizinho nagô/ o corpo fechado por babalaô;

Como Raskólnikov e o peso do machado que não tem volta;

Como Sinhá Vitória lambendo no focinho de Baleia o sangue do preá;

Como João gostoso/ bebeu/ cantou/ dançou/ e depois...;

Como José (...) E agora?

Como o rei da brincadeira, ê José/ o rei da confusão, ê João;

Como o malandro é o barão da ralé (...) entre tapas e bofetões;

Como Emmanuel Nazaré Ou o tecelão de parábolas que em seu novíssimo testamento reza À noite desce um sonho de cárcere e desejo./ Há olhos o concebendo, olhando para si em desespero./ As íris deles são damas vestidas de preto e sem vozes./ Os olhos são luas também outras luas de si mesmas./ Seus cílios nascem nimbos-cúmulo à escuridão/ Da noite;

Como tudo em Baal, de Brecht;

Como Chaves morreria por Seu Madruga, e sempre tolera o ego de Kiko, e deixa Kiko ser seu alter ego, e deixa Chiquinha o amar, e não deflagra que Seu Barriga paga com a barriga o pecado de ter dinheiro, e não diz a Nhonho que ele e o pai são a mesma pessoa, e finge aprender com o professor Lingüiça, e se faz de menino mal para Dona Florinda se achar boa mãe, e tem piripaque de medo da bruxa do 71 só para não declarar que ela é feia, e só é guloso porque é esfomeado, e só é esfomeado porque tem fome, e só tem fome para comer e sobreviver, e sobrevive para que possa cuidar dos outros, ainda que seja o mais necessitado, e ficou necessitado sem querer querendo;

como João de Santo Cristo era santo porque sabia morrer;

...



Nilson Pereira de Carvalho

nilson pereira de carvalho foi inventado à base de amizade com o sol e a lua, desde criança e a fazer histórias com naipes de baralho, como a Alice que não mora mais aqui. Estudar letras ocorreu antes de fazê-lo na UFG, hoje, disserto, busco contrair doutorado em tesão sobre o de Chico Buarque em suas obras. Os documentos rezam goiano, mas, si mesmo, rezo olhano para todas as cidades, do céu ao inferno, que deus as tenham, pois o diabo jaz. São longos os quarenta anos e já vãos tardes quentes a ressecar a pele negra e sangue mofo e frio, qual a vida que faz doer meu compadre, o Finado Túlio, de quem literopsicografo uns poemas aí.
Email: noslinnilson@yahoo.com.br