Êxtimo
PSICANÁLISE SEM MEDO
Está em cartaz, em Goiânia, o filme Sem Reserva (2007), realizado por Scott Hicks, e estrelado por Catherine Zeta-Jones e Aaron Eckhart. Trata-se de uma comédia romântica em que a perfeccionista chef de cozinha Kate Armstrong (Catherine Zeta-Jones) vive o drama de ter de superar seus próprios obstáculos subjetivos para se permitir se apaixonar por um homem, o colega de cozinha, o bonitão Nick Palmer (Aaron Eckhart). Este, por sua vez, se apresenta a nós como — além de também ser chef de cozinha — um estrategista a altura de seduzir a bela mulher que só se interessa pelo bom andamento da cozinha de um singelo, mas aconchegante restaurante. Ele é o personagem que sabe fazer o que o vizinho de Kate, que há muito tentava seduzi-la, nada conseguia. A perspicácia de Nick se sobressai numa cena em que, depois de jantar com sua pretendida, criando um momento íntimo e propício, ela se sente à vontade e se oferece para ser beijada. Ele se aproxima como se fosse beijá-la, mas, de modo divertido, revela que está apenas querendo pegar seu casaco, sobre o qual ela está sentada, para ir embora. Procedimentos de um especialista da sedução, pois, ganhar um beijo ali poderia significar perder a amada posteriormente. Ou seja, ele contava com a existência nela de poderosas forças opositoras à entrega no amor. Freud notou isso em abundância: as mulheres se defendem da entrega amorosa, se defendem da feminilidade. A entrega no amor para uma mulher, quando, e somente quando, um homem ocupa a posição de homem diante dela, é experimentada com angústia, estranhamento e pudor. Não se trata, nessa entrega, de uma mulher simplesmente se permitir ter uma relação sexual. Trata-se de uma entrega a uma experiência transcendente que os poetas não se cansam de descrever. Mas não falo da experiência de transcendência dos próprios homens no amor, que eles não se cansam de descrever nos poemas. Falo da experiência delas. Ser arrebatada para uma outra dimensão, transcendente, é o que define o gozo propriamente feminino, o gozo místico do qual fala Lacan. E disso elas, naturalmente, fogem, por um simples motivo: seria intenso demais, seria um experiência de perda de controle. Trata-se, no gozo propriamente feminino, de uma experiência com o próprio corpo, de um acontecimento no corpo que não é localizado (pobre daqueles que estão a procurar o Ponto G!), trata-se de uma perda da noção dos limites do próprio corpo. Ou seja, trata-se de quando “confundimos tanto as nossas pernas”. Os homens se vangloriam de terem feito sexo com numerosas mulheres. Mas a questão é: quantas eles conseguiram levar para a cama dessa Outra dimensão? Quantas eles realmente fizeram gozar o gozo místico feminino, que não se restringe ao simples orgasmo?
Voltemos ao nosso casal de Sem Reserva. O detalhe que me interessou foi o fato de ela, Kate, fazer análise. A presença de psicanalistas nos filmes diverte o psicanalista na medida em que este constata o não saber dos autores sobre o que é uma psicanálise. Em quantos filmes vemos a figura do psicanalista como sendo aquele que está lá para explicar o que se passa na subjetividade de tal personagem! Mas, neste filme bobinho de Scott Hicks, vemos a análise se desenvolver estando o psicanalista no lugar de objeto que causa e permite a fala de sua paciente, e não no lugar de mestre que sabe das coisas. Aliás, o analista aí tem um certo ar de tolo, de bobinho, coisa altamente recomendável a um analista, pois lhe permite, no momento escolhido, sair detrás da moita e surpreender o analisando. Esse modo de funcionamento do analista neste filme é o que permite a existência de uma cena engenhosa
Não há descrição melhor do que é uma experiência analítica do que essa relatada por Freud numa carta ao pastor Pfister, e que Serge André colocou como epígrafe de um de seus livros:
Penso, pois, que a análise sofre do mal hereditário… da virtude; ela é obra de um homem demasiadamente respeitável, que se supõe, portanto, preso à discrição. Ora, essas coisas psicanalíticas só são compreensíveis quando são relativamente completas e pormenorizadas, do mesmo modo que a própria análise só avança quando o paciente desce das abstrações substitutivas até os pequenos detalhes. Daí decorre que a discrição é incompatível com a boa exposição de uma análise; é preciso ser inescrupuloso, expor-se, entregar-se como pasto, trair-se, portar-se como um artista que compra tintas com o dinheiro das despesas da casa e queima seus móveis para aquecer o modelo. Sem algum desses atos criminosos, não se pode realizar nada corretamente.
E não fica evidente que a experiência analítica é também um modo de transcender para uma Outra dimensão? Pobre daqueles que possuem o desejo de se submeter a uma psicanálise, mas não o fazem! E não o fazem por quê? Falta de dinheiro? Hummm… Não creio. Não o fazem, com todas as justificativas, por medo.