C-dur
A voz de um corpo despedaçado
DESPEDAÇADO, PORÉM VIVO
Cristiano Alves Pimenta, Psicanalista
Talvez uma das aproximações mais inusitadas, e também evitadas, seja essa da psicanálise com a música. Basta lembrar o fato de que nem Freud e nem o maior de seus seguidores (Jacques Lacan) se dedicaram a ela. Mas não foi por acaso. Digamos, de uma maneira resumida e direta: a psicanálise nasceu a partir da decifração de seu objeto, a fala das histéricas, o que levou a uma prevalência (pelo menos nesse período inicial) da significação assim decifrada e revelada; a música, por seu lado, é, por excelência, o que não se deixa decifrar. A música – com relação a uma significação definida – jamais se deixa traduzir. Qualquer significação atribuída a uma peça ou a um trecho da mesma, não passa de uma aproximação, de uma tradução que não preenche a lacuna entre os significantes musicais e o significado que aqueles suscitam. Não queremos dizer, com isso, obviamente, que a música não tem sentido, pelo menos boa parte das existentes. Por mais abstrato que seja, o mero motivo inicial da Quinta sinfonia de Beethoven é algo ouvido em sua concatenação, em sua articulação. O sentido da coda dessa mesma peça, por exemplo, cria expectativas de resolução que não se realizam e deixam o ouvinte como que com essa frase na boca: afinal de contas Sr. Beethoven, quando é que porá fim nisso? O que não deixa de ter seu lado divertido, sobretudo do lado do compositor.
Uma argumentação contrária apontaria, dentre outras, para a música programática: Meu caro, você ainda não ouviu a Sinfonia Fantástica de Berlioz? Mas o que seria desta sem o texto programático que a acompanha? Seria o que toda música é: uma forma que, neste caso, é suscetível de se guiar por um texto, de se amalgamar a ele, mas que existe sem ele por mais desfalcada que fique. Mas deixemos esses detalhes de lado e acordemo-nos com os nossos detratores imaginários. O que pretendo aqui é seguir o caminho inverso, ou seja, pretendo justamente praticar a elucubração de significação que uma música pode nos permitir. Quero apenas sublinhar o meu fazer como uma elucubração de significação que não preenche a lacuna que ainda resta. Meus verdadeiros opositores seriam os defensores da música pura. Dentre eles estariam aqueles a quem o simples fato de dar como título a uma peça musical um tema figurativo causa repugnância.
Tomemos a peça de Paulo Guicheney A voz de um corpo despedaçado. Nenhuma significação exterior ao sentido musical advindo de sua própria articulação lhe é imputada, exceto o título A voz de um corpo despedaçado. Não há nenhum texto programático que vem conferir-lhe uma direção, mas há esse título que, sendo de um campo exterior ao da música propriamente dita, lhe impõe um modo de audição do qual não se pode escapar. É relevante o fato de que as relações dessa peça com um corpo já se encontram no material que lhe serve de base. Como encontramos num artigo do próprio compositor, essa peça...
“...foi inteiramente construída a partir de fragmentos de canto e respirações bucais (na maioria inspirações rápidas), além de, em menor escala, sons guturais e pequenos ruídos produzidos pela língua. Todos esses sons foram extraídos (sampleados) de gravações de uma única voz feminina (com exceção das respirações, que foram extraídas ainda de uma outra voz, também feminina).”
Também é relevante que o trabalho de processamento desses sons corporais, realizado em computador (pois se trata de uma música genuinamente eletroacústica), funciona já como um despedaçamento desse material sonoro.
“O procedimento utilizado era bastante simples: consistia em inserir periodicamente espaços de silêncio em uma amostra sonora (gapper) [...] É importante dizer que essas operações não constituem novidade em síntese granular, mas considerando as limitações do simples gapper, com o qual eu vinha trabalhando, elas foram mais do que suficientes para a criação dos sons que eu almejava. Ao utilizar o granule tornou-se possível potencializar consideravelmente a fragmentação sonora que eu havia experimentado anteriormente [...] No entanto, meu intuito não foi criar densas nuvens sonoras, mas fragmentar o som sem que ele perdesse suas características referenciais — entendendo referência como a propriedade, de um som, que expõe, indica ou, pelo menos, não oculta sua origem ou causa e, ainda, um som que aponta “[...]em direção a um cenário mais macroscópico, sugestivo de cenas naturais e fenômenos cuja origem provém de atividades humanas e mecânicas” (Caesar, 2004h)”
Portanto, essa fragmentação deveria manter ainda sua referência ao corpo, à voz, à respiração. Mas acrescentemos um fato simples, porém decisivo: a referência não é o cadáver, mas o corpo vivo, que (ainda) respira e produz sons, mesmo que sob a forma de excrementos...
Mas antes de prosseguirmos nesses comentários, vejamos as indicações do próprio compositor de A voz de um corpo despedaçado a respeito da forma da obra. Ela pode ser dividida, segundo Guicheney, em cinco seções:
Seções da peça, utilizando como critério suas diferentes texturas.
I | II | III | IV | V |
0’’ a 50’’ | 50’’ a 3’10’’ | 3’10’’ a 4’ | 4’ a 5’20’’ | 5’20’’ a 7’53’’ |
Na primeira seção prevalecem sons contínuos – embora ouçamos sons de respirações – que são interrompidos no ponto alto de um crescendo para dar lugar, na segunda seção, a uma primazia das respirações que, dessa vez, deixam em segundo plano os sons contínuos. Essa segunda seção, relativamente longa, é interrompida abruptamente quando somos surpreendidos pela entrada em cena de sons mais definidos e discerníveis que fazem, porém, um movimento brusco de sinuosidade inquietante:
“Esse é o momento da peça [terceira seção] em que há maior referência a uma linha cantada, ainda que alguns samples tenham sido estendidos até o ponto no qual perderam completamente suas características originais.”
Eu diria que um dos pontos fortes dessa peça, mesmo para o ouvinte de menor formação musical, é sua capacidade de nos surpreender com os eventos que vão surgindo em cada seção. Só a última parte, a quinta seção, mais previsível, foge a essa regra. Mas a quarta seção se inicia com uma textura timbrística inquietante (um ruído produzido sabe-se lá por qual entranha do corpo) e se complexifica com suas sobreposições canônicas até sentirmos algo da ordem de um transbordamento, um excesso aberrante que é interrompido abruptamente. Esse é o ponto em que culmina toda a peça:
“A textura imaginada para o início desta seção [a quarta] foi a de um cânone. Há a entrada de uma primeira voz e as demais vão sendo sucessivamente sobrepostas (cada uma em um diferente andamento) até o ponto em que se torna impossível discerni-las, pois, ao final, chegam a ser sobrepostas dezenove vozes. Deste modo, a idéia de um cânone se dissolve em uma miríade de vozes fragmentadas. A semelhança timbrística entre os eventos corrobora o amálgama final.”
Mas o que nos chama a atenção no efeito final que essa obra produz é o fato de que o ouvinte tem com esses elementos próprios ao corpo uma relação de proximidade excessiva, que se torna sufocante e até mesmo assustadora. Fica-se perto demais dessa respiração que se insinua, dessa voz que sai não se sabe de onde. É como se penetrássemos pelas cavidades labirínticas do corpo e nelas nos perdêssemos. Mas, se chamamos a atenção para o fato de que se trata de um corpo vivo, também não devemos deixar de supor que não se trata de um corpo unificado. A característica do corpo como uma unidade é dada ou pelo imaginário (a imagem unificada do corpo), ou pelo simbólico (o Um do significante vem conferir a unidade ao corpo). Ora, essa proliferação de vozes que ouvimos na quarta seção nos sugere que se trata, antes, de pedaços do corpo, como se cada pedaço tivesse sua própria voz e todas elas começassem a trombetear num concerto macabro, cada uma com sua exigência. Cada parte do corpo é uma peça solta que compõe um caos que é próprio do real, e não do imaginário ou do simbólico.
Pois bem, o que se consegue nessa peça é um efeito de encontro com o real do corpo vivo que é certamente desconcertante, paralisante, ou, numa palavra, traumatizante. E qual é essa dimensão que essa aproximação excessiva de um corpo vivo nos remete senão aquela da sexualidade humana, do encontro traumático com o gozo que habita o corpo? E o fato desconcertante de que se trata de um corpo vivo, mas despedaçado, tem todas afinidades com a noção de pulsão, tal como Freud a pensou, como sendo sempre pulsão parcial, produzida a partir de partes isoladas do corpo, chamadas de fontes da pulsão (a boca, o ânus, o olho. Lacan acrescentou a voz). Eis a aproximação que nos propomos fazer. Não temos motivos para supormos que o compositor também não estivesse aí, perto demais do corpo vivo, posto tratar-se dos sons que ele “almejava”?
Paulo Guicheney
Paulo Guicheney é compositor. Quando criança teve de optar entre ABBA e Trio Parada Dura. Optou por ABBA, mas depois descobriu que a coisa pegava mesmo era com Beethoven. Estudou piano e composição na UFG, onde também fez mestrado em música eletroacústica. Atualmente leciona composição na UNB.
E-mail: pauloguicheney@hotmail.com