Editorial


ruídobranco continua viva, se alguém pensou que abeirávamos o silêncio. este é nosso segundo volume, edição, número ou coisa que o valha. continuamos lúdicos, sem perder a sisudez e sempre descalçados das botas da frivolidade. passamos por hanói, zurique, são tiago de compostela, nova iorque, garanhuns, boituva e nem arredamos os pés de goiânia. faltou um diálogo mais intenso no último volume (etc.), mas tudo se justifica pela apreensão: “aonde isto vai dar?”. dará sempre, esperamos — e a espera monta guarida batendo polichinelo — na ruídoplosão do sentimento — esta arquitetura psíquica com ética dentro. por isso, cara e caro leitornautas, não se apoquentem, voltaremos mais vezes e vezes mais com o peso salino das lágrimas e a elasticidade dos sorrisos. e por falar em sentimento, força supressora da paixão — esta égua desenfreada —, na coluna patchwork, patrícia martins nos convida à leitura de “uma experiência estética” — texto de onde roubei aquela imagem da arquitetura etc. e de onde fiz uma ablação para a página p. no texto da coluna, a autora começa indagando, com sua sempre acuidade crítica, sobre a postura do observador da arte contemporânea, este co-autor perdido na conquista da própria interatividade com as obras. a autora expõe o problema à dialética entre mundo funcional e desinteressado, colocando devidamente em crise a necessidade de recepção lógica impingida à obra de arte pelo mundo ocidental. em neuropop, wilton cardoso nos dá sua “canção da cidade”, lembrando-nos do “programa para a necessidade – 3”, de seu tratactus marginale (2006) — disponível para download ou pirataria na naumarginal (v. link), por excelente iniciativa contracomercial do autor. no “programa”, o wilton já nos ensinava, antes da “canção”: “Escrever coisas necessárias, várias, móveis, imbricadas com a vida e encharcadas de mundo. Estender o texto na carne das cidades, enredá-lo para que seja a viagem pela margem da urbe, para que seja a sua própria margem” (p. 10) — que, para não matar o poema à força de certos recortes, é a melhor apresentação que dele posso fazer neste espaço limitado. andré de leones, em mieloma de ocasião, põe-nos em contato com a teoria da relatividade geral, de einstein, não nos limitando a lembrar de que dela resulta parte da conduta do sujeito contemporâneo, mas nos levando a observar que einstein é o autorcientista do mito da formação cosmogônica do universo, superando newton, kepler, galileu, os medievais e os antigos (árabes, gregos e hindus). na pagina p., jamesson buarque finalmente conclui seu texto “dúvida, amor, poesia e traição ou simplesmente sobre judas e dante”, sem uma boa dose de credo, a despeito de seu novíssimo testamento, e sob o pretexto do mote: “a traição inquire dúvidas”. com seu “metaprosema”, em vaca de nariz sutil, wesley peres, na boa medida do gosto de seu prosema romanceado casa entre vértebras, põe em questão a linguagem e a criação literária, pondo a própria questão também em questão, e nos convida àquilo que a apoteose da literatura sobre si mesma no século xx assumiu o cargo de olvidar: a imaginação. a própria forma escolhida pelo autor, e na qual é mestre, voltada para si mesma sem se ensimesmar por força do mero cinismo da linguagem autoexplicativa, é uma tessitura de formas onde até um leão em carne viva, com o qual se sonha sem dormir e se vê em sono, ruge em nome da encarnação da verdade. em c-dur, paulo guicheney, com a peça eletroacústica “a voz de um corpo despedaçado”, oferece-nos um gesto de criação de cultura sobre cultura, partindo da matéria morta que se faz viva na comunhão de melodia com sibilos, sussurros, cliques, e quiçá urros suspendendo uivos. a composição do paulo nos arranca de nossa acomodada recepção musical com injeções de metamorfose moduladas em pedaços na distensão do espaço-tempo. o texto “despedaçado, porém vivo”, do psicanalista cristiano pimenta nos golpeia para pensar “a voz de um corpo despedaçado” saindo do estado de redução da melodia (sonoridade pura) em movimento para o estado de expansão sintático-semântica da língua, que é uma desapropriação inteligente da pureza musical, em um sentido de interlinguagens.

jamesson buarque



C-dur


A voz de um corpo despedaçado


DESPEDAÇADO, PORÉM VIVO

Cristiano Alves Pimenta, Psicanalista

Talvez uma das aproximações mais inusitadas, e também evitadas, seja essa da psicanálise com a música. Basta lembrar o fato de que nem Freud e nem o maior de seus seguidores (Jacques Lacan) se dedicaram a ela. Mas não foi por acaso. Digamos, de uma maneira resumida e direta: a psicanálise nasceu a partir da decifração de seu objeto, a fala das histéricas, o que levou a uma prevalência (pelo menos nesse período inicial) da significação assim decifrada e revelada; a música, por seu lado, é, por excelência, o que não se deixa decifrar. A música – com relação a uma significação definida – jamais se deixa traduzir. Qualquer significação atribuída a uma peça ou a um trecho da mesma, não passa de uma aproximação, de uma tradução que não preenche a lacuna entre os significantes musicais e o significado que aqueles suscitam. Não queremos dizer, com isso, obviamente, que a música não tem sentido, pelo menos boa parte das existentes. Por mais abstrato que seja, o mero motivo inicial da Quinta sinfonia de Beethoven é algo ouvido em sua concatenação, em sua articulação. O sentido da coda dessa mesma peça, por exemplo, cria expectativas de resolução que não se realizam e deixam o ouvinte como que com essa frase na boca: afinal de contas Sr. Beethoven, quando é que porá fim nisso? O que não deixa de ter seu lado divertido, sobretudo do lado do compositor.

Uma argumentação contrária apontaria, dentre outras, para a música programática: Meu caro, você ainda não ouviu a Sinfonia Fantástica de Berlioz? Mas o que seria desta sem o texto programático que a acompanha? Seria o que toda música é: uma forma que, neste caso, é suscetível de se guiar por um texto, de se amalgamar a ele, mas que existe sem ele por mais desfalcada que fique. Mas deixemos esses detalhes de lado e acordemo-nos com os nossos detratores imaginários. O que pretendo aqui é seguir o caminho inverso, ou seja, pretendo justamente praticar a elucubração de significação que uma música pode nos permitir. Quero apenas sublinhar o meu fazer como uma elucubração de significação que não preenche a lacuna que ainda resta. Meus verdadeiros opositores seriam os defensores da música pura. Dentre eles estariam aqueles a quem o simples fato de dar como título a uma peça musical um tema figurativo causa repugnância.

Tomemos a peça de Paulo Guicheney A voz de um corpo despedaçado. Nenhuma significação exterior ao sentido musical advindo de sua própria articulação lhe é imputada, exceto o título A voz de um corpo despedaçado. Não há nenhum texto programático que vem conferir-lhe uma direção, mas há esse título que, sendo de um campo exterior ao da música propriamente dita, lhe impõe um modo de audição do qual não se pode escapar. É relevante o fato de que as relações dessa peça com um corpo já se encontram no material que lhe serve de base. Como encontramos num artigo do próprio compositor, essa peça...

“...foi inteiramente construída a partir de fragmentos de canto e respirações bucais (na maioria inspirações rápidas), além de, em menor escala, sons guturais e pequenos ruídos produzidos pela língua. Todos esses sons foram extraídos (sampleados) de gravações de uma única voz feminina (com exceção das respirações, que foram extraídas ainda de uma outra voz, também feminina).”[1]

Também é relevante que o trabalho de processamento desses sons corporais, realizado em computador (pois se trata de uma música genuinamente eletroacústica), funciona já como um despedaçamento desse material sonoro.

“O procedimento utilizado era bastante simples: consistia em inserir periodicamente espaços de silêncio em uma amostra sonora (gapper) [...] É importante dizer que essas operações não constituem novidade em síntese granular, mas considerando as limitações do simples gapper, com o qual eu vinha trabalhando, elas foram mais do que suficientes para a criação dos sons que eu almejava. Ao utilizar o granule tornou-se possível potencializar consideravelmente a fragmentação sonora que eu havia experimentado anteriormente [...] No entanto, meu intuito não foi criar densas nuvens sonoras, mas fragmentar o som sem que ele perdesse suas características referenciais — entendendo referência como a propriedade, de um som, que expõe, indica ou, pelo menos, não oculta sua origem ou causa e, ainda, um som que aponta “[...]em direção a um cenário mais macroscópico, sugestivo de cenas naturais e fenômenos cuja origem provém de atividades humanas e mecânicas” (Caesar, 2004h)”[2]

Portanto, essa fragmentação deveria manter ainda sua referência ao corpo, à voz, à respiração. Mas acrescentemos um fato simples, porém decisivo: a referência não é o cadáver, mas o corpo vivo, que (ainda) respira e produz sons, mesmo que sob a forma de excrementos...

Mas antes de prosseguirmos nesses comentários, vejamos as indicações do próprio compositor de A voz de um corpo despedaçado a respeito da forma da obra. Ela pode ser dividida, segundo Guicheney, em cinco seções:

Seções da peça, utilizando como critério suas diferentes texturas.



I

II

III

IV

V

0’’ a 50’’

50’’ a 3’10’’

3’10’’ a 4’

4’ a 5’20’’

5’20’’ a 7’53’’



Na primeira seção prevalecem sons contínuos – embora ouçamos sons de respirações – que são interrompidos no ponto alto de um crescendo para dar lugar, na segunda seção, a uma primazia das respirações que, dessa vez, deixam em segundo plano os sons contínuos. Essa segunda seção, relativamente longa, é interrompida abruptamente quando somos surpreendidos pela entrada em cena de sons mais definidos e discerníveis que fazem, porém, um movimento brusco de sinuosidade inquietante:

“Esse é o momento da peça [terceira seção] em que há maior referência a uma linha cantada, ainda que alguns samples tenham sido estendidos até o ponto no qual perderam completamente suas características originais.”[3]

Eu diria que um dos pontos fortes dessa peça, mesmo para o ouvinte de menor formação musical, é sua capacidade de nos surpreender com os eventos que vão surgindo em cada seção. Só a última parte, a quinta seção, mais previsível, foge a essa regra. Mas a quarta seção se inicia com uma textura timbrística inquietante (um ruído produzido sabe-se lá por qual entranha do corpo) e se complexifica com suas sobreposições canônicas até sentirmos algo da ordem de um transbordamento, um excesso aberrante que é interrompido abruptamente. Esse é o ponto em que culmina toda a peça:

“A textura imaginada para o início desta seção [a quarta] foi a de um cânone. Há a entrada de uma primeira voz e as demais vão sendo sucessivamente sobrepostas (cada uma em um diferente andamento) até o ponto em que se torna impossível discerni-las, pois, ao final, chegam a ser sobrepostas dezenove vozes. Deste modo, a idéia de um cânone se dissolve em uma miríade de vozes fragmentadas. A semelhança timbrística entre os eventos corrobora o amálgama final.”[4]

Mas o que nos chama a atenção no efeito final que essa obra produz é o fato de que o ouvinte tem com esses elementos próprios ao corpo uma relação de proximidade excessiva, que se torna sufocante e até mesmo assustadora. Fica-se perto demais dessa respiração que se insinua, dessa voz que sai não se sabe de onde. É como se penetrássemos pelas cavidades labirínticas do corpo e nelas nos perdêssemos. Mas, se chamamos a atenção para o fato de que se trata de um corpo vivo, também não devemos deixar de supor que não se trata de um corpo unificado. A característica do corpo como uma unidade é dada ou pelo imaginário (a imagem unificada do corpo), ou pelo simbólico[5] (o Um do significante vem conferir a unidade ao corpo). Ora, essa proliferação de vozes que ouvimos na quarta seção nos sugere que se trata, antes, de pedaços do corpo, como se cada pedaço tivesse sua própria voz e todas elas começassem a trombetear num concerto macabro, cada uma com sua exigência. Cada parte do corpo é uma peça solta[6] que compõe um caos que é próprio do real, e não do imaginário ou do simbólico.

Pois bem, o que se consegue nessa peça é um efeito de encontro com o real[7] do corpo vivo que é certamente desconcertante, paralisante, ou, numa palavra, traumatizante. E qual é essa dimensão que essa aproximação excessiva de um corpo vivo nos remete senão aquela da sexualidade humana[8], do encontro traumático com o gozo que habita o corpo? E o fato desconcertante de que se trata de um corpo vivo, mas despedaçado, tem todas afinidades com a noção de pulsão, tal como Freud a pensou, como sendo sempre pulsão parcial, produzida a partir de partes isoladas do corpo, chamadas de fontes da pulsão (a boca, o ânus, o olho. Lacan acrescentou a voz). Eis a aproximação que nos propomos fazer. Não temos motivos para supormos que o compositor também não estivesse aí, perto demais do corpo vivo, posto tratar-se dos sons que ele “almejava”?



[1] Guicheney, Paulo. Dois percursos composicionais em música eletroacústica.

[2] Idem.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[5] O imaginário e o simbólico formam, juntamente com o real, os três registros necessários para se compreender a experiência clínica, tal como sugeriu Jacques Lacan.

[6] Peças Soltas é o título de um Seminário recente e ainda não publicado de Jacques-Alain Miller.

[7] Trata-se da noção de real que encontramos em J. Lacan, tal como Jacques-Alain Miller a tem trabalhado.

[8] Sim, porque a sexualidade dos animais não é traumatizante.



AVozDeUmCorpo.mp3






Paulo Guicheney

Paulo Guicheney é compositor. Quando criança teve de optar entre ABBA e Trio Parada Dura. Optou por ABBA, mas depois descobriu que a coisa pegava mesmo era com Beethoven. Estudou piano e composição na UFG, onde também fez mestrado em música eletroacústica. Atualmente leciona composição na UNB.
E-mail: pauloguicheney@hotmail.com




página p.


dúvida, amor, poesia e traição ou simplesmente sobre judas e dante — parte dois ou final


a traição inquire dúvidas. esta é a senha, mote, palavraentrada ou óvulossêmen do segundo tomo do novíssimo testamento — que o público em geral não conhece. aliás, o público em geral — que eu não sei exatamente do que se trata — não conhece sequer o primeiro tomo, ainda que levando em conta uma página do jornal o popular (mar. 2005) e uma indicação de leitura da revista entrelivros (out 2005) — neste caso, por força da poeta de mão pejada micheliny verunsky, autora de geografia íntima do deserto (landy, 2003). bom, feita esta digressão quiçá desnecessária, deixem-me voltar ou vão embora. aquela senha não somente abriu o segundo tomo do novíssimo testamento — cujo cantar de abertura é “judas ou a traição inquire dúvidas” — como impediu que eu continuasse o cantar, o tomo e a trilogia toda. (só mais esta digressão: o novíssimo testamento é uma trilogia. embora alguns leitores pensem que aquele conjunto publicado seja o poema tríptico em si. bem, não é ou não é para ser. de todo modo, não deixa de ser uma trilogia. mas os leitores que não prestaram atenção, vão lá à edição (ufg, 2004) e confiram a informação na folha-de-rosto. acabei.) a traição inquire dúvidas. se eu não fosse eu, fosse, por exemplo, matsuo bachô ou cancão — estes poetas com uma capacidade de concisão invejável —, esta senha sairia na conta exata como segunda parte deste texto — iniciado no número anterior ou primeiro de ruídobranco, como queiram. para o azar geral, não sou e tenho uma verve atrevidamente épica — o que significa uma boa dose de hipérboles, um gosto insaturado para desgraça e uma despreguiça de falarescrever que só vendo… mas desta vez vou devagar — tanto que supraespaceei as linhas um pouco, para o leitor não pensar que eu não sou eu, se o texto não sair tão longo como de costume. se um mote empurra ou tem a finalidade, ou função única de empurrar, o barco de uma suposta obra literária para conferir propulsão ao motor — daí mote, motor, motivo, moção, mover etc. —, nada mais natural do que realizar esta finalidade ou dar azo a sua função até certo grau de presteza. mas, como diz patrícia martins em “uma experiência estética” (“patchwork” atual ou fev.): “a arte como representação da natureza deixou de ser um ideal artístico há mais ou menos um século”. e por extensão: natureza não é coisa própria para os movimentos da arte, ainda que se defira materiais, disposição biomotora e sinapses — afinal de contas, sem sinapse, pollock teria vivido de pintar retratos em cody, wyoming; samuel beckett não teria passado de professor de italiano e/ou francês em dublin ou mesmo em foxrock, onde nasceu; cancão (joão batista de siqueira) teria se limitado a sua condição prática de oficial de justiça lá em são josé do egito, no sertão de pernambuco, e eu nunca teria lido flores do pajeú; e antúlio madureira jamais seria capaz de tocar schubert usando um serrote de serralheiro. materiais, disposição motora e sinapses à parte, os movimentos da arte são coisas da cultura. grosso modo, e isto não é uma novidade, a natureza não faz arte sozinha. mas como pode um mote, ele mesmo, movido das entranhas de seu autor — sujeito historicamente materializado a serviço das relações sociais e da neurose — com uma única função apenas — por isso é um mote —, trair a si mesmo, e a seu autor por extensão, descumprindo sua finalidade? penso que chega um dia que o mote se esquece de ser, mesmo que tenha acontecido — até porque não seria mote sem acontecer. sou pisciano: geralmente, gosto de fazer perguntas; mais geralmente ainda, gosto de não respondê-las; e, sobretudo, não sei lidar muito bem com isso — senão, seria taurino. logo, exatamente onde doem os sisos quando nascem, lateja-me a pergunta: quem traiu quem? judas a jesus, ou o contrário? ando fortemente balançado, se os sisos agüentarem e não precisarem de uma cirurgia — dessas que deixam um veio de cordões atados no fundo da boca —, a pensar que as questões da pergunta têm resposta positiva. este é o lugar onde o amor pede licença para descalçar as botas. se o amor descalça as botas, a traição hasteia a flâmula. então o amor precisa de vigília? não. a ele apenas foi negado o direito de descansar. jesus queria fazer, e fez, uma revolução sócio-política entre os judeus sob o domínio de roma. não raro, sobretudo em sociedades teocráticas como as das ovelhas de caifás, uma revolução sócio-política é também uma revolução religiosa — independentemente de sincera vontade ou necessidade de revolução espiritual. daí sócrates, o platonismo, ihwh (iavá, iavé ou eu sou aquele que é e coisa semelhante ou de ossatura maior), augusto, vergílio, maria, madalena, paulo, plotino, santo agostinho, são francisco de assis, são boaventura, dante, tomás de aquino, joana d’arc etc. judas queria fazer, e não fez, uma revolução sócio-política entre os judeus sob o domínio de roma. ele nunca havia encontrado homem mais determinado a tanto do que aquele tal de yeshuah, de olhos amendoados e duros, com certa ternura, a pele tostada de sol, o cabelo escuro e longo encruado pelo ar seco, pelo sol e pela areia desértica do oriente-médio, as mãos calejadas e cicatrizadas de trabalho pesado com madeira, pregos e redes de pesca, e os dentes brancos, que judas sempre quis ter, mas a vida pior não lhe ensinou como. para judas, e talvez jesus nunca tenha perguntado, a revolução deveria ser armada, não de palavras nem de epilíricas sobre o reino dos céus, a casa do pai etc., deveria ser armada de lâmina crassa, pedra de aguilhoar, e mota pela vontade e pela necessidade do derrame de sangue romano e de judeus agraciados com prebendas patrícias. jesus parecia ter o tino para um coisa assim. no entanto, ao que tudo indica, depois da sabatina — que me perdoem o termo, de vez que é posterior à passagem da idade média baixa para o renascimento — na feira, mercado, sinagoga ou coisa que o valha, na jerusalém da época — lugarzinho destinado a cenário da derruição humana —, tudo também indica que judas ficou ainda mais empolgado com a determinação daquele homem. a questão é: jesus lhe deixou tudo claro? tudo indica que não. bem, de todo modo, judas continuou com aquele homem, que mais ressuscitava do que matava. logo, inferimos que judas também não deve ter deixado claro a ele suas intenções de revolução. por isso trair, traduzir, trazer, transitar, transar etc. têm a mesma implicação radical: mover ou ser movido ou fazer com que se mova de um ponto para o outro. na primeira parte deste texto, sem razões muito aparentes, quis dialogar com o leitor no sentido de fazê-lo fustigado a voltar-se com mais cuidado para a pertinente presença da dúvida no conjunto de todas as relações humanas. amar, ler poesia, trabalhar, informar-se do mundo em volta em tempo sincrônico senão real etc. deve ser vivido sempre com um florir reticencial de interrogações gritando de garganta afora. no final, não teremos feito muito mais do que perguntar. creio que toda vez que uma pergunta leva a outra ou gera mais uma questão dentro de seu próprio sistema inquisidor, a nova pergunta ou questão já é parte do mundo possível das repostas. e se? bem, não sei ainda. e quando, prometo: não avisarei.




Jamesson Buarque

jamesson buarque é poeta, professor, crítico literário e doutorando em estudos literários na ufg. publicou os delírios e novíssimo testamento. sente-se muito mais antigo do que sua idade tri-trina cristã. além de poesia e magistério, gosta de vinho, cachaça mineira, desenho animado, cinema, política, bíblia e fenomenologia, tudo misturado. importante: é sobre essa mistura sua coluna.
E-mail: jamessonbuarque@yahoo.com.br




Patchwork


Uma Experiência Estética


A arte como representação da natureza deixou de ser um ideal artístico há mais ou menos um século. O artista rompeu com o código referencial em favor do código poético. Assim, a arte, que tinha um referencial na realidade exterior, passou a ser centrada em sua lógica interna, adquiriu sua própria realidade fora do âmbito convencional.

Mas, um século depois de processada essa mudança, o que vemos, na postura do observador diante da arte contemporânea, é a neutralidade ou a apatia diante da obra. O que é estranho uma vez que o espectador ganhou o status de co-autor, podendo interagir com a obra num verdadeiro processo de comunhão. A lógica interna, própria da arte atual, parece não fazer sentido. O espectador pergunta, com freqüência, o que o artista quer dizer ou qual o significado da obra, como se houvesse um significado fixo. A obra de arte deveria provocar um diálogo intersubjetivo entre artista e espectador.

A origem desse problema, como não poderia deixar de ser, está centrada em questões que envolvem toda a conjuntura social, econômica, política, cultural etc. Nossa educação é voltada para a formação de pessoas mais ou menos funcionais para o mercado de trabalho. Se, por um lado, temos acesso à informação como nunca, por outro lado, nossa capacidade de gerar conhecimento é estancada. Nesse contexto, as informações se transformam em respostas prontas. Para que as informações se tornem conhecimento, é preciso avaliá-las através de processos cognitivos lógicos. Os mesmos processos que, quando precários, segundo Piaget, nos afastam da compreensão do mundo.

Na era da informação, o gosto pela arte pode se transformar em dogma. O que é adquirido como informação passa a reger o que deve ser apreciado. O dogma de “autoridades” assume o lugar da capacidade de interação com a obra.

Outra atitude freqüente é a preferência pela arte como representação da natureza exterior. Isso ajuda a evitar o estranhamento diante de obras mais instigantes e o que acaba sendo avaliado, muitas vezes, é somente a técnica do artista.

É comum, também, que a arte seja avaliada pela emoção que ela provoca. No entanto, a emoção é apenas um aspecto biológico do organismo. Ela é uma reação automática dos seres vivos, humanos ou não, que permite responder a certas situações de maneira não deliberada. A emoção não envolve processos cognitivos, ou seja, ela está aquém do conhecimento.

Na experiência estética, deve haver uma apreciação cuja via de acesso é o sentimento. Este, ao contrário da emoção, “é uma reação cognitiva de reconhecimento de certas estruturas do mundo, cujos critérios não são explícitos. É percepção das tensões dirigidas, comunicadas e expressas pelos aspectos estáticos e dinâmicos da forma, tamanho, tonalidade ou altura. Essas tensões são tão perceptíveis quanto o espaço e a quantidade”*. Existe uma relação entre emoção e sentimento: o sentimento esclarece o que motiva a emoção, ele faz a transposição do mundo da regulação automática para o mundo da regulação deliberada.

Ao nos colocarmos diante da arte com sentimento, nós passamos a nos relacionar com ela de uma forma mais profunda, acolhendo-a em todas as suas potencialidades. Assim, podemos viver uma experiência estética nova e capaz de ampliar o nosso horizonte interior. O que é articulado, nesse caso, não é uma emoção, uma agitação afetiva, mas um sentimento, uma forma de conhecimento.

Desse modo, o gosto deixa de ser uma preferência e passa a ser um interesse de conhecer, uma capacidade de julgamento sem preconceitos. Isso nos leva a um diálogo intersubjetivo com a obra de arte para além da técnica.

*Filosofando: Introdução à Filosofia. Aranha e Martins. São Paulo, Editora Moderna, 1993, p. 347.




Patrícia Ferreira Martins

Patrícia é artista plástica e, atualmente, doutoranda em letras e lingüística pela UFG. Adora música alternativa na linha punk rock e grindcore. Também adora literatura, assistir televisão, surfar na internet, comer pipoca no cinema e tomar mirinda com os amigos. É casada com o Wellington.
E-mail: patricia@wsmartins.net




Neuropop




Não se pode começar numa cidade. Nela, estamos sempre em meio a seu processo caoforme. Nem quando nascemos começamos e nem mesmo quando somos concebidos e nem ainda se começa com nossos pais e avós. Qualquer nascimento que ocorra é tão somente um pequeno processo da maquinaria urbana e antes e depois deste evento há inúmeros circuitos processuais conectados a ele. Circuitos de direções, dimensões e finalidades muito diferentes do nascer. Há um, por exemplo, que te marcará pela sexualidade, outro te marcará pela riqueza, outro pela cor e assim por diante. E cada uma dessas marcas desencadeia outros processos e marcas que serão o seu destino. Estes circuitos te esperam com suas malhas e deles não se pode escapar. As suas marcas te cobrem o corpo antes de seu nascimento, antes de haver corpo já existe, na cidade, uma férrea disciplina para ele, incontornável.


CIDADE CILADA



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CANÇÃO DA CIDADE



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Mieloma de Ocasião


Einstein, reinventor do universo

Se, conforme Harold Bloom, William Shakespeare inventou o humano, Albert Einstein reinventou o universo. As iluminações do sujeito foram e são tantas e tão extasiantes e maravilhosas que mesmo um suposto literato como eu, um (como dizem os "especialistas" com aquele olhar de desdém) "leigo", não pode deixar de procurar, dentro das minhas limitações, entendê-las. Mesmo sitiado pelos (com a licença de Clarice Lispector) esbarros da minha pouca inteligência, o pouco que consigo vislumbrar é avassalador. Principalmente o conceito de tempo imaginário, o qual, literariamente, já havia sido criado e usado por Marcel Proust nos volumes de Em Busca do Tempo Perdido, um monumento da literatura mundial.

O que eu pretendo aqui é abordar os pilares das teorias de Einstein mediante apontamentos tão obtusos quanto incompletos. Li uma batelada de artigos e ensaios de outros leigos como eu e de gente do quilate de Stephen Hawking (que, nos seus melhores textos, consegue, sim, explicar coisas complexíssimas de uma maneira pelo menos humanamente compreensível). Baseei-me mais em duas fontes. A principal delas é o ensaio O Sonho de Einstein, de Hawking, publicado no livro Buracos-Negros, Universos-Bebês e Outros Ensaios (Editora Rocco - Rio de Janeiro, 2000). Outra fonte é uma matéria trazida pela edição de Veja de 27 de julho de 2005. Ambas as fontes esclareceram muitas coisas pra mim. Daí que escrevi algumas notas esparsas e confusas.

Teoria da Relatividade Especial ou Restrita (1905) - Espaço e tempo estão compaginados e são relativos, dependendo da velocidade do observador. Mas a velocidade da luz é sempre constante. A idéia de um "tempo individual"; a constatação de que o tempo passa mais devagar quando um indivíduo está em alta velocidade em relação a outro (o batido mas válido exemplo dos gêmeos: um fica na Terra e o outro viaja pelo espaço numa velocidade muito alta; para o que está no espaço, o tempo passa mais lentamente em relação ao que ficou na Terra).

A velocidade da luz é sempre constante, independentemente da velocidade do observador.

A Teoria da Relatividade Especial demonstra que o tempo não existe, quantitativamente, por si só, estando compaginado ao espaço: falamos, então, de espaço-tempo.

Partindo do princípio de que a velocidade da luz é invariável, Einstein concluiu que, em altíssimas velocidades, o tempo se dilata e o espaço encolhe.

Teoria da Relatividade Geral (1915) - Nesta teoria, um avanço em relação às idéias de Isaac Newton: para Einstein, a gravidade não é apenas uma força que age entre os corpos, atraindo-os, mas uma deformação do espaço-tempo, fruto da massa e da energia inerentes aos próprios corpos, que desvia e/ou retém tudo o que deles se aproxima. Um exemplo? O Sol mantendo sob sua órbita os planetas do sistema solar.

A gravidade altera também a rota da luz. As posições de certas estrelas que vemos no céu, por exemplo, estão "erradas" para nós, pois o trajeto da luz dessas estrelas sofre deformações e alterações por culpa da força gravitacional do Sol.

Em outras palavras, o espaço-tempo é encurvado pela matéria e energia que contém.

Massa e energia são sempre positivas, de tal maneira que a gravidade atrai os corpos uns para os outros. O espaço-tempo, portanto, está encurvado sobre si mesmo, pois essa tal curvatura positiva do espaço-tempo, resultante da massa e da energia presentes no universo, implica que o espaço-tempo, e por decorrência o universo, sejam dinâmicos, ou seja, influenciam e são influenciados pelos eventos. O universo não é estático, inalterável, imutável. Contrariamente a essa conclusão, está o que Einstein chamou de "o maior erro de sua vida": o "termo cosmológico" ou "constante cosmológica". Vou tentar explicar.

No momento em que formulou a Relatividade Geral, Einstein acreditava que o universo era imutável, ao contrário do que previam, inclusive, as equações originais de sua própria teoria. Criou, então, o "termo cosmológico", negativo, que, relacionado com a curvatura do espaço-tempo, positiva, fazia com que ambos se anulassem, mantendo o universo inalterado, sem expansão ou retração visíveis. Em 1929, Edwin Hubble descobriu que o universo está, sim, em expansão, observando que galáxias distantes estão se afastando de nós. É curioso isso. Einstein estava originalmente certo, duvidou dos próprios cálculos, refez parte deles e caminhou para o erro que, mais tarde, reconheceu e chamou de "o maior de sua vida".

Sob diversos aspectos, portanto, a Teoria da Relatividade Geral é uma teoria incompleta. Ela previa singularidades (lugares em que o espaço-tempo teria um começo ou um término), mas não foi capaz de precisar o que adviria dessas singularidades. E o que seria?

A Teoria de Relatividade Geral nos trouxe a noção de que o espaço-tempo está encurvado sobre si mesmo. Uma curvatura positiva, que significa, em essência, que o universo não é estático. Conforme Hubble constataria em 1929, o universo está, sim, em expansão. O que eu quero anotar aqui, entretanto, não são dados ou impressões acerca dessa expansão, mas, sim, o que advém daquela curvatura.

O que faz o espaço-tempo se encurvar sobre si é a própria matéria presente no universo. O mais louco é que essa curvatura pode se dar de forma tão acentuada que uma porção do universo pode se despregar do restante do cosmos. É o que os cientistas chamam de buraco negro.

Os buracos negros, grosso modo, são estrelas colapsadas após o fim do seu combustível nuclear. Estrelas vitimadas pela ação de sua própria gravidade. Um objeto que caia num buraco negro, para escapar dele, teria de se locomover a uma velocidade maior que a da luz, o que, de acordo com a Relatividade Geral, é impossível.

É por tudo isso que se diz que a Teoria da Relatividade Geral prevê singularidades, isto é, "lugares" em que o espaço-tempo tem um início e/ou um fim, mas NÃO é capaz de dizer exatamente COMO se deram e se dão tais singularidades.

Gente como Stephen Hawking acha que este COMO seria explicado pela conjunção das teorias de Einstein com a mecânica quântica. Quem sou eu pra duvidar?




André de Leones

André de Leones nasceu em Goiânia no ano da desgraça do nosso senhor eu-sei-que-você-não-existe 1980. É autor do romance "Hoje está um dia morto" (ed. Record), vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2005 e na época ele achou que isso significava alguma coisa. Venceu também, com um livro de contos de título engraçado nunca publicado, o Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, mas esta piada já é velha. Mantém o blog http://canissapiens.blogspot.com, cheio de piadas mais novas.
E-mail: alleones@gmail.com




Vaca de Nariz Sutil


Jean Dubuffet



METAPROSEMA


Pensar respirar, pensar, não pensar, não sei, tento me embriagar de não ser eu, sei lá. Beatriz ou Ângela, também nem sei em quem penso, o nome do corpo cujo cheiro se desdobra em algum lugar vazio da memória. Não, não bebo enquanto essa voz vai sendo-me eu isso, não, nunca bebo, sou sempre assim, e minha memória não é outra coisa. Serei sempre, serei sempre o que já está morto, o que morre em cada palavra. Cada palavra materializa quem sou, isto é, a ausência de qualquer eu. Essa é minha fé: não há eu nenhum. Esse é meu inferno: a despeito da minha fé e das minhas metáforas, morrerei. Somos pó desde já, como diz o Vieira. Sempre fomos. Mas agora esse eu — que há, que não há, pouco importa — esse eu-pó pulsa e dói e sonha e é tão mesquinho e se dissolve em suas divisões: é palavra e é corpo e nódoa nua de matéria dormente e é silêncio comprimido no crânio e é acéfalo e corrosão de ventos e amor à passante de saia curta e é deus sem casa e é rato, santo, ser que ama o beco que há em cada humano que há, que não há. Deus, o mundo é mesmo azul! Deus, sei que é uma palavra, e que as palavras podem matar e assim fazer moldura em torno da dor de pulsar, pulsar mesmo, a carne pulsando, ser carne pulsando, um músculo enviando esse vinho de gosto metálico, ser corrente elétrica codificada de um modo que o corpo conhece e entende, mas nós não. Quando em linguagem, moramos de fora do corpo. Acreditamos de mais nas palavras. Acreditamos de menos. Estamos engarranchados no mais ou menos. O caminho do meio, gritam os budas nossos de cada dia. Que meio o quê? Como se houvesse pontas. A linguagem é a ou b, como quer os budas da linguagem? Isso é a máquina da linguagem, isso é o osso movediço da linguagem. Mas e o desarranjo da linguagem? mas e o eco e o oco? mas e a língua maltrapilha? Ninguém sabe o que fazer com ela, a língua do homem no boteco, a língua da mulher que ganha a vida lambendo outra língua, a língua da criança que diz só palavra que se diz a si mesma. E então? Falo da vida, só disso falo, e por isso falo do que mata a vida vivificando-a, da palavra com que fazendo malabarismos ou deixando-a quieta tentamos rearranjar o impossível, isto é, que o outro receba o que lhe enviamos. E o duas vezes impossível: que haja simetria entre minha intenção e minha palavra (ou ausência dela).


e não saber de nenhum modo o que se diz, e morrer-se vivendo-se corpo, fazendo-se palavra esbarrada de carne, e frequentar os terríveis abismos da superfície, e não mais viver a tensão calma dos opostos, do arcoedalira, mas a tensão do sem rumo, o campo do que não se opõe, mas se rasga urdindo, urdindo o que morre com o que já é morto no que morre, o eterno é o que já é morto, o que não nasceu, e apenas nos freqüenta, nós, coisa supostamente nascida. É isso, somos a coisa supostamente nascida, coisa que sucede e antecede a pétrea maciez da aniquilação. Não se trata de nenhuma metáfora mais, nem de dizer a coisa mesma. De repente sei que soube desde sempre, todos os terrores, todos os sonhos infinitamente piores do que se pensa que é a vida são o próprio nervo da vidamorte, da vidamorta, da morteviva. Sabe, quando temos um pesadelo, como quando sonhei com um leão em carne viva, respirando, um leve ronco navalhar? E aí acordamos, e respiramos pois era apenas um sonho? Pois é, sempre soube disso sem saber, quando acordamos é que dormimos, pois o nervo da vida estava lá no leão em carne viva, vivo e morto. Vestimos de palavra o leão, ou mesmo de sonho, vestimos a palavra e dormimos, e doemos a dor mineral da palavra, em carne morta e viva, em sonho de que o pesadelo é o que não existe: a realidade, querem a realidade? vejam Francis Bacon, o desenho de seus gritos ausentes... Sonhem de muito perto a nervura disso que tento apontar ao não falar disso.

O que pretendo é enfiar o leão em carne viva, vivê-lo nas palavras, dar uma morte de bolso, dar a possibilidade de chamar de arte o que é morte, sem no entanto des-afiar a navalha da fina respiração da carne viva que somos. Que a palavra não pretenda mais qualquer aplacamento, qualquer consolo. Que a palavra não mate a coisa nem a vivifique. Que a palavra seja ela própria corpo, mineral e artéria, vento e veias, borboleta e carne em decomposição, criança e morte que a criança sabe muito antes de nós.


É evidente que tudo é autobiografia, na medida em que a palavra é a carne daquele que falescreve inocentemente crendo que a palavra de algum modo o aloje fora do corpo, ou que mineralizando o corpo, torna-o monumento, coisa eternamente viva porque eternamente morta. Tudo não é outra coisa. As palavras não dizem outra coisa, dizem a elas mesmas, dizem o seu artifício, dizem que na verdade são a encarnação, a morte em carne, viva. Ao menos é isso que diz a palavra poética, que pode estar em qualquer lugar, em nenhum lugar, é isso a única coisa que a palavra poética diz: que a palavra é isso, encarnação do desparecimento do homem, do homem-carne-palavra.


Bom, há também o amor. Ficção poderosa, porque extrai da não-ficção-morte (miolo da linguagem) a potência de fazer existir o que não existe. O amor move nossas estratégias, sustenta-as. É a morte revestida de vida, ocultando mostrando a morte: “Eu morro por ti” “Estou morrendo de amor por você” “Você é minha vida”, não é assim que falam os apaixonados? Não é assim que nós nos falamos, Ana, Camila, Beatriz, Literatura, Ideais, Livros, Vinho, Futilidade, Tempo, Corrosão, Vida, Morte? Tenho medo de dizer o que digo. De qualquer forma, queira eu ou não, o medo é mesmo um dos nomes do homem, senão que o nome que mais o nomeia, apesar de nomeá-lo aos pedaços.


Então que literatura não é bem dizer ou bem escrever nada ou tudo. Literatura é o não em carne viva, talvez. Talvez, a implosão corrosiva que aloja o homem, que lhe dá o descanso de buscar descanso. Que lhe dá a paz de não querê-la. Talvez. Que faz cessar o deslizamento infinito de “talvezes”. Máscara e rosto não se opõem nem são iguais. Tudo é o giro em falso que sustenta o que é insustentável: a coisa homem e os seus nomes.




Wesley Peres

Wesley tem 31 anos, mas sempre acham que ele tem cara de 30. É autor de Água Anônima (Prêmio Cora Coralina, 2001) e Rio Revoando (Com-Arte/USP, 2003). Em 2007 lançará Palimpsestos, pela UFG. Acha deplorável pessoas que gostam de Fanta Uva, gosta muito de estourar aquelas bolinhas de plástico e da literatura produzida na Papua-Nova Guiné. Ah, é psicanalista e mestrando em literatura pela UFG. Mora na Cataluña. E-mail: wesleyperes@uol.com.br