Número 6









Editorial


ruído branco está em sua sexta edição. Neste número, viemos mais poéticos do que antes. Nas “Contribuições”, temos Edmar Guimarães, sem sombra de dúvidas, um dos melhores poetas da poesia brasileira contemporânea, com seu inédito “Tela de passagem”. No texto, o poeta desenha, com seu gesto cirúrgico de criação metafórica (“Muros artríticos/ com juntas de rochas/ ruíram”), o cenário da enchente do Rio Vermelho no final de 2001, a qual carregou pontes, muros, paredes, móveis o marco histórico que é o monumento da cruz do Anhangüera, além de ter danificado a iluminação subterrânea da Casa de Cora. É importante observar que o poema de Edmar Guimarães não se limita ao feito de crônica, mas antes, captura a emoção guardada na memória e lhe eterniza para além da história. Na mesma coluna, Irondes N. Sousa, poeta e engenheiro goiano radicado em Braga, Portugal, apresenta-nos seu “Criações”. No texto, o poeta se deixa seqüestrar pelo encantamento dos gestos de reflexão poética, gerando uma belíssima similaridade entre a criação do poema, o próprio poema e a natureza dos répteis, dos insetos e do espaço cósmico: “na página branca nasce uma serpente de letras”, “a existência da bicha em folhas soltas”, “estrela em meteórica língua de luz”.

Dentre nossos colunistas, Paulo Guicheney, da coluna “C-dur”, aparece como exímio poeta, depois de ter-nos aparecido como excelente músico. Seu poema “Três cantos para espaços vazios”. O texto se engendra na voz do silêncio que hesita e fala. Nele, o espaço e o movimento se tornam, juntos, um não-lugar ocupando os rumos, sem rosa-dos-ventos nem astrolábios nem outros instrumentos de guia, nem medida. E o poema é mesmo uma declaração de amor onde a palavra não erra nem se entrega; por isso o nome da amada fica contido na úvula e apenas salta pela boca em gesto demonstrativo: “aquela”. E por falar de amor, em “Êxtimo”, Cristiano Pimenta trata deste tema tão caro à humanidade em seu inteligentíssimo ensaio freud-lacaniano: “Os véus do amor”. O cerne do texto é descrever o amor como uma força de ocultar as coisas, força que, pela coisa ocultada, verte o ser humano até as reticências da entrega do coração. Podemos dizer que, com base em Freud e Lacan, Cristiano Pimenta debulha a razão do amor sem desmistificar sua desrazão. O colunista nos ensina: é a falta que nos faz amar; Deus, porque não existe, ou seja, porque é ausente na existência, promove o amor.

Ainda na verve poética de ruído branco 6, Wesley Peres, em “Vaca de nariz sutil”, apresenta-nos seu inédito poema “Eutridades”, em três movimentos: “Memoricidade do corpo”, “Goiânia” e “Autobiografia só para Sofia”. Perscrutador da alma, o poeta, no primeiro movimento, converte outridade em “eutridade”, espraiando o um-no-outro em um eu-no-eu-que-é-outro, dando ao ego e à terceira pessoa o corpo de cidade, afinal convertido em paisagem de luz sólida, no segundo movimento. No movimento final, Peres se imbui de muito de sua intimidade e se permite, em nome de Sofia, reinventar-se na infância, esta “única coisa morta que lateja”.

Na “Cova do corvo”, Frederico Martins traz a continuação da série “Dos fatos indutivos”, com as três imagens-poema “espanto”, “momentos” e “passado”. Observem, leitoresnautas, que o padrão de colagem de “imagem-sonho” e de “cosmo”, em ruído branco 5, move-se da configuração fragmentada de pessoas para paisagens, na coluna desta edição, e o caos dolorido das palavras, quase ordenado em “cosmo”, ganha forma mais figurativa em “espanto”. Essa dimensão figurativa já havia sido anunciada em “fundamento”, também na última edição da “Cova do corvo”. No entanto, esse corpo se esmaece em “momentos”, na presente edição, e, magistralmente, desfigura-se em “passado” — que é a colagem que transforma toda a série em uma elipse de tirar o fôlego dentro da dor de se deslocar no tempo. Também desta verve poética, e fechando este enfoque de ruído branco 6, segundo este editorial à guisa de roteiro de leitura, jamesson buarque, o da “página p.”, nos apresenta seu barroco discurso “Do mistério pior da humanidade para um mistério melhor em colagem de crônica e poema e uma dissertação fenomenológica à guisa de ensaio para explicar a má fé ou a má índole dentro de sua contra-partida: a poesia até em cenário burocrático”. Francamente: esse título me deu preguiça demais para maiores comentários. O que sei é que é alguma coisa sobre poesia. Vão lá, leitoresnautas, confiram.

O segundo eixo de ruído branco 6, que pode muito bem ser o primeiro, se vocês começarem pela esquerda — ou pode não ser, como o outro eixo, nem primeiro nem segundo, se vocês distribuírem cartas bêbados pela tela —, é de resenhas críticas. Obviamente, este palavrão não tem muita coisa haver com a resenha crítica acadêmica. E, oximoricamente, como vocês já sabem, ruído branco é uma revista não-acadêmica de gente da academia.

Em “Patchwork”, Patrícia Martins — ou a própria alma de ruído branco —, no texto “Janum, Mamu, Pakoras”, fala do romance Midnight’s children, de Salman Rushdie. Conforme a colunista, exímia leitora da língua inglesa, o romance do polêmico autor de Versos satânicos “adiciona uma nova dimensão ao inglês ao se manter fiel aos sons e expressões da Índia — e isto nos faz lembrar de que Rushdie é anglo-indiano. O romance é ambientado neste país e tem verve histórica e política, além de sua experiência de pesquisa lingüística e de sua inscrição na estética de fragmentação narrativa. O romance narra a história de Salim Sinai, e este, embora tenha nascido em 1947, não impede a digressão narrativa, que, conforme Patrícia Martins, faz o texto começar em 1919. Midnight’s children foi traduzido no Brasil por Donaldson M. Garschagen (em publicação da Companhia das Letras) como Os filhos da meia-noite e venceu o Prêmio Booker, de 1981.

Ainda na verve da resenha crítica, em “Mieloma de Ocasião”, André de Leones nos apresenta “Bergman e o silêncio de Deus”. Sua leitura é sobre o filme A fonte da donzela, de 1960. A resenha do colunista, ainda que vincada no âmbito da intertextualidade com a balada medieval A filha de Töre e na análise da fotografia, perpetra mais intimamente o fenômeno divino do milagre e a própria existência de Deus diante de Sua ausência. Assim, a coluna recupera em sua memória, leitoresnautas, a leitura de parte de “Os véus do amor”, de Cristiano Pimenta — inscrevendo este colunista também no âmbito da resenha crítica.

Inteligentíssimo crítico da cultura pop, e voraz devorador de muitos dos melhores produtos desta arte de diluição do que é cult e erudito (para reflexão e entretenimento das massas), Wilton Cardoso nos apresenta “Guerra nas estrelas”, em “Neuropop”. O texto do colunista tem dois focos: economia mítica e épica do capitalismo. Pelo primeiro, Wilton Cardoso descreve a consubstanciação ou síntese de mitologias e religiões ocidentais e orientais que compõem a hexalogia de George Lucas. Pelo segundo, o colunista fala sobre o fascínio que Guerra nas estrelas provoca no público geral — eu incluso, desde os idos de 1982, pelo que me lembro —, uma vez que os filmes casam “o poder intemporal do mito com a paixão do homem moderno pelo futuro”. A partir disso, Wilton Cardoso observa que, como a Força move a subsistência dos heróis, o Estado — entidade abstrata por excelência, como o próprio capital num mundo de forças invisíveis, como a nanotecnologia (ou as midi chlorians, analogia às mitocôndrias, dos Jedis) — move a subsistência do capitalismo.

Quero fazer uma cuidadosa observação particular para todos vocês, leitoresnautas. E vai em caixa-alta. NÃO TEMAM EM CLICAR EM NOSSO LINK DE GMAIL ABAIXO! NÃO SOMOS UM AGENTE VIRÓTICO, NEM SOMOS DAQUELES GRUPOS SECRETOS QUE SE DISFARÇAM NO ESPAÇO VIRTUAL PARA ESPALHAR VÍRUS E DEPOIS VENDER A CURA EM FORMATO DE ANTI-ISSO E ANTI-AQUILO. RUÍDO BRANCO É PERFEITAMENTE RECOMENDÁVEL PARA TODAS AS IDADES. MAS, SE AINDA ASSIM, QUEREM SER CAUTELOSOS: 1) ABRAM SUA CAIXA-DE-EMAIL; 2) DIGITEM revistaruidobranco@gmail.com (EM CAIXA-BAIXA, PARA NÃO DAR PAU); 3) ESCREVAM-NOS. ASSIM NÃO HAVERÁ RISCOS, QUE JÁ NÃO HAVIA MESMO.


jamesson buarque



Patchwork


Janum, Mamu, Pakoras

O romance Midnight´s Children, de Salman Rushdie, apresenta um relato da história política indiana, começando pelo massacre “Jallianwala Bagh” de 1919, passando pela criação do Paquistão em 1947 e pela guerra com Bangladesh em 1965. O romance também oferece um comentário sobre os conflitos lingüísticos ocorridos no período coberto pela narrativa, sobre a campanha de esterilização em massa e o Estado de Emergência no governo de Indira Gandhi. Tudo isto é narrado através da ligação entre os eventos domésticos da vida de Saleem Sinai e os eventos políticos da história da Índia. Desse modo, os acontecimentos que são supostamente relevantes são trivializados e a noção de uma história objetiva e neutra é transgredida.

A propriedade Methwold, que aparece no inicio do romance, representa a Índia prestes a ser entregue de volta aos indianos, após sua divisão e exploração pelos ingleses. O caráter corrompido do colonizador é exposto através do modo em que William Methwold seduz Vanita, mãe biológica de Saleem e esposa do acordeonista Wee Willie Winkie. O brilho dos cabelos de Methwold faz Vanita sentir vontade de tocá-los, dando oportunidade para que ele a seduza. Mais adiante, o inglês revela que seus cabelos não passam de uma peruca. Apesar de sua origem bastarda, Saleem dedica grande parte de sua narrativa tentando apresentar sua genealogia, ou seja, a genealogia de Shiva, a criança que é trocada por Saleem na maternidade. Saleem e Shiva nascem ao toque da meia-noite no dia da independência da Índia. As crianças são trocadas na maternidade pela parteira Católica, Maria Pereira, para impressionar seu namorado comunista, Joseph D´Costa. Com este ato revolucionário particular, Maria Pereira pretende dar à criança pobre uma vida de privilégios e condenar a criança rica a uma vida miserável. Saleem transforma-se, na ocasião de seu nascimento, no símbolo da “verdadeira” nação indiana. Assim, tanto Saleem quanto o país são retratados como bastardos de origem e vítimas da trapaça do colonizador.

O tema da fragmentação, que perpassa todo o romance, fornece uma variedade de versões para os eventos. Saleem é ofuscado em sua própria narrativa pelo brilho de Shiva, mesmo assim, ele decide se apresentar arbitrariamente como o herói da história. No entanto, as fronteira entre Saleem e Shiva são indeterminadas: Saleem é Shiva e Shiva é Saleem. Os objetos do cotidiano se transformam em elementos metafóricos da fragmentação. O lençol perfurado, através do qual o doutor Aadam Aziz é obrigado a examinar sua futura esposa, possui um poder de fragmentação que se revela tanto na vida pessoal das personagens quanto no destino político da nação indiana. Através do lençol perfurado, Aadam Aziz aprende a amar por partes sua futura esposa, Nassem. A filha de Aadam Aziz, Amina, também aprende a amar seu marido dedicando-se, a cada dia, a aprender a amar uma das partes do seu corpo. O reflexo do lençol perfurado em Saleem é mais dramático. A fragmentação de Saleem está ligada a sua percepção da diversidade indiana. Saleem não consegue unificar sua história, devido à fragmentação da história da Índia, o que resulta em sua desintegração física. Ao final do romance, Saleem se transforma na “bomba em Bombaim”.

Rustom Bharucha diz que a língua que Rushdie usa para escrever Midnight´s Children é “semelhante ao inglês britânico depois de ser temperado, cozido, frito e mergulhado em curry”*. Rushdie adiciona uma nova dimensão ao inglês ao se manter fiel aos sons e expressões da Índia. Quando palavras vindas das diversas línguas e dialetos indianos são adicionadas ao inglês britânico, o sentido pode ser compreendido sem que haja nenhuma explicação, como, por exemplo, quando Amina Sinai, nos momentos de carinho, sussurra a palavra “janum” ao ouvido do marido, ou quando Maria Pereira manifesta sua expressão de espanto, “baap-re-baap!”. Algumas expressões saídas do inglês refletem os preconceitos da comunidade indiana. Amina Sinai desenvolve o hábito de chamar as garotas mestiças anglo-americanas de “coca-cola girls”. Outras expressões, aparentemente inglesas, são forjadas proporcionando momentos cômicos. Alice Pereira envia um telegrama para Amina avisando que Ahmed Sinai teve um ataque do coração, usando a palavra “heartboot”. Toda a família de Amina fica chocada com a notícia e decide ir imediatamente do Paquistão para a Índia, mesmo sem ter a mínima noção do que poderia ser essa “grave doença”: “But what, my God, can be this heartboot?” (p. 354).

Em Midnight´s Children, Rushdie abre espaço para o diálogo entre uma multidão de vozes. Saleem é um narrador que resiste em apresentar um ponto de vista unificado. Sua fala é interceptada pelas vozes de várias pessoas e, também, por uma voz interior que causa interrupções abruptas no curso de sua narrativa:

I was Born in the city of Bombay... once upon a time. No, that wont do, there´s no getting away from the date: I was born in Doctor Narlikar´s Nursing Home on August 15th, 1947. And the time? The time matters, too. Well then: at midnight. No, it´s important to be more… On the stroke of midnight (p. 3)

Em várias ocasiões, a voz de Padma, funcionária analfabeta da fábrica de picles, muda os rumos da narrativa, além de outras 115 vozes que desafiam a autoridade de Saleem. Ele, por sua vez, possui a capacidade de penetrar nas mentes das pessoas. Ao penetrar nessas mentes, Saleem não absorve somente os pensamentos, mas, também, os sentimentos das pessoas. É assim que, ao penetrar na mente de seu tio Hanif, durante uma luta no estádio “Vallabhbhai Patel”, enquanto ambos olham para o show de luzes nas costas dos lutadores Dara Singh e Tagra Baba, Saleem absorve o estado mental de Hanif. A viagem de Saleem através dos pensamentos de Hanif possui diversas camadas de consciência que mesclam línguas e dialetos diferentes:

But I mustn´t let the sadness leek out of my eyes He´s butting into my thoughts, hey phaelwan, hey little wrestler, what´s dragging your face down, it looks longer that a bad movie, you want channa? Pakoras? What? And me shaking my head, No, nothing, Hanif mamu, so that he relaxes, turns away, starts yelling Ohé come on Dara, that´s the ticket, give him hell, Dara yara! (p. 202)

Entre as várias línguas que são justapostas ao inglês, o gujarati recebe um destaque especial. Durante uma raivosa passeata em defesa da língua marathi, Saleem é empurrado de bicicleta, por Eve Burns, para o meio dos manifestantes. Irritados com o garoto de aparência rica, eles exigem que Saleem fale alguma coisa em gujarati, para humilhá-lo, pois o grupo considera o gujarati uma língua vulgar. Saleem só consegue se lembrar de uma rima usada por ele para provocar crianças gujarati: “Soo ché? Saru che! Danda lé ké maru che!” (como vai você? Você vai bem? Vou mandar você para o além!). Os manifestantes marathi se entretêm com a rima e deixam Saleem de lado. Mas, eles usam a rima para provocar seus oponentes, o que resulta num conflito que deixa quinze mortos e mais de trezentos feridos.

Na tentativa de entender somente uma vida, Saleem tem que “engolir o mundo”. Mas, diante da impossibilidade de compreensão desta única vida, Saleem acaba explodindo no final da narrativa. Saleem se desintegra sem conseguir unificar sua história. O final do romance lembra Mikhail Bakthin, em Problems of Dostoevsky´s Poetics, ao dizer que, quando o diálogo termina, tudo termina. Pois, devido à essência do diálogo, este não pode e não deve chegar ao final.






Escrito em 1980, Os Filhos da Meia-noite, de Salman Rushdie, vencedor do Booker Prize no ano seguinte, só chegou ao Brasil no final de 2006, pela Companhia das Letras, com excelente tradução de Donaldson M. Garschagen. A edição, com 608 páginas, possui glossário e custa 64 reais.


* Rustom Bharucha. “Rushdie´s Whale”. In: D.M. Fletcher (ed.) Reading Rushdie, Perspectives on the Fiction of Salman Rushdie. Amsterdam, Rodopi, 1994, p. 160.


Tecido de algodão bordado em seda. O motivo do bordado é a vaca sagrada, símbolo da mãe terra e associada à Krishna


Seda bordada com ponto cheio. O motivo central é a flor de lótus, símbolo do sol.


Em diversas regiões da Índia e do Paquistão, existem várias castas e tribos vivendo na mesma área. As pessoas, nestas regiões, costumam bordar suas roupas para identificar o grupo ao qual pertencem e, também, o status dentro do grupo. Além de servir para a identificação, os bordados representam uma forma de protesto contra as fronteiras impostas entre os dois países.



Patrícia Ferreira Martins

Patrícia é artista plástica e, atualmente, doutoranda em letras e lingüística pela UFG. Adora música alternativa na linha punk rock e grindcore. Também adora literatura, assistir televisão, surfar na internet, comer pipoca no cinema e tomar mirinda com os amigos. É casada com o Wellington.
E-mail: patricia@wsmartins.net




Cova do Corvo



"Trata-se de encontrar as palavras para muita coisa que permanece muda em mim"
Freud


A coluna Cova do Corvo apresenta a continuação da série "Dos Fatos Indutivos", agora com as imagens: 4. espanto, 5. momentos e 6.passado. Confira!



espanto




momentos




passado






Frederico Assunção Martins

Frederico é responsável pela identidade visual da Revista Ruído Branco desde de a sua criação. Fred é contra-baixista e também explora as mais diversas linguagens de criação artística.
E-mail: selfgrind@yahoo.com.br






TELA DE PASSAGEM



Um veio, um olho,

entre moitas e muitas

pedras o Rio Vermelho

injeta suas artérias,

lustra fitas de clorofila

do mato esmaecido

e cresce, amontoado,

cochichando. O rio

velho nos casarios

nem descabelava pedras.

Nos vasilhames

de velharias e eras,

às famílias fantasmas,

em paredes-mesas postas,

servia licores de líquenes.

Um dia choveu na noite

quebradiça, secular.

O grande porte do espaço

se partiu. O ar acidentado

dos morros, as dobradiças

de pedra... nenhum obstáculo:

represas irregulares

em disparada – reses de lama –

invadiram a cidade.

Paredes como ramas

tombaram. Muros artríticos

com juntas de rocha

ruíram. A eles trouxas

de sombras, seixos

rio sem eixo rolaram.

Partidos, vasos de rosas

e poças. Jarros jorraram

pétalas de barro

pelos bueiros. A hemorragia

de ruídos do rio

trincou o piso das ruas.

Agora quintais paralisados.

A cidade pende de um lado,

do outro, tombada.

Restou uma gota de lama

no rosto de bronze

da estátua revelada.


Edmar Guimarães

(autor dos livros de poemas: Caderno – 2000 – e Desenhos de Sol – 2002 –)

edimar.gl@celg.com.br


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CRIAÇÕES




na página branca nasce uma serpente de letras

inunda o espaço vazio de uma frescura virgem

atônita segue o rumo das palavras em chama ardente

circunscreve o instante, define o traço pousado das horas

frio réptil lambe o azul da pena em riste

cria corpo, sentido, crepita idéias, gera conflitos em delírio lento

do nada faz-se o momento e o poeta admoesta e conduz

a existência da bicha em folhas soltas

coral de consoantes e vogais, vírgulas, pontos que tais

envenenam a cascavel que rasteja plana ou pendular

lenta ou veloz rumo à incerteza, à dor, à alegria

qual estrela em meteórica língua de luz

de existência fugaz, permite nascer e morrer, amar e odiar

aprender e ensinar, circunscrever o belo onde antes se fizera o feio

expandir o bem, verter o mal, manter conflitos, eternizar a paz

nada é tão universal como o som que produz

cada sílaba nascida morta na tua cauda de chocalhos

espanta o momento seguinte que paira no vértice da língua

e desfalece em prantos na horizontalidade da folha

onde o verde mescla com o veneno das tuas entranhas

germinando a linguagem que desconhece o instante seguinte

volatizas repentinamente tuas crias assim nascidas

confundes a mente do poeta cativo no teu centro de gravidade

que nunca se libertará da fama de as ter criado

para que outros olhos famintos de saber, as devorem

num estertor de solidão, ou prazeres vários

jamais abandonarás tua presa redonda na tua teia

para que a posteridade ajuíze o veneno dos teus botes

segue teu destino de em ti mesma enroscar-te, ou pôr-te em riste

na arrogância tenebrosa dos teus dotes

manténs o poeta refém da gula das palavras

sufoca-o num abraço pleno de fúria envolvida no pescoço

deixa-o moribundo, inerte de poder mesclar consoantes com vogais

vírgulas e pontos que tais

não tens princípio e nem fim, mas paralisas o momento da tua criação


Irondes N Sousa

Natural de Goiânia, engenheiro, reside em Braga, Portugal.

irondes-n-sousa@telecom.pt



Êxtimo


OS VÉUS DO AMOR



Quem um dia irá dizer que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração.
E quem irá dizer que não existe razão.
Renato Russo



O tema do amor está diretamente ligado ao véu, àquilo que oculta algo. No saber corrente encontramos uma série de expressões que implicitamente ligam o amor ao véu. Por ex., Fulano está cego de amor, ou seja, o enamoramento lhe impõe um anteparo que não lhe permite ver aquilo que todos estão vendo. Outro exemplo, O amor é uma ilusão, como diz a canção com sinceridade: eu não quero e não peço para o meu coração nada além de uma linda ilusão. E o iludido é aquele que vê projetar-se sobre o véu uma espécie de filme de amor. Ela vê seu príncipe encantado montado em seu cavalo. Ele, sua linda princesa na janela de seu castelo. Mas essa ilusão, como vemos na psicanálise, impede o sujeito de ter acesso ao que se esconde por detrás da tela, por detrás da cena, por detrás do véu, e que não é tão agradável de ser visto. Por detrás há um real difícil de se olhar diretamente. Mas, desde já, poderíamos apontar uma outra função para o amor como o que vela. Não apenas um obstáculo que impede o sujeito de ter acesso ao real, mas também um modo de proteção e defesa, a qual se vale dos frágeis tecidos que compõem os véus do amor.

É correto dizer que uma psicanálise, ou seja, a experiência subjetiva que um sujeito realiza por meio da palavra dirigida a um analista, o conduz a atravessar o véu do amor e se defrontar com o real que ele esconde. Tomemos um exemplo recorrente. Um sujeito começa o tratamento dizendo que ama intensamente sua mãe e que esta é uma pessoa maravilhosa. No entanto, no decorrer da análise ele é levado por si mesmo a ver que esse amor lhe servia para que ele não se defrontasse com as decepções que esta mãe lhe causou. E este saber era aquilo de que ele nada queria saber. Mas, uma vez sabido, uma vez simbolizado esse campo obscuro de sua vida, essa mãe perde sua aura de sublime. Isso está bem próximo do que Freud diz a respeito do amor transferencial. O enamoramento da paciente pelo analista é uma forma de resistência, ou seja, uma forma de estender um véu entre ela e o conteúdo recalcado em seu inconsciente que insiste em ser revelado.

Se a análise é, pois, uma prática de atravessamento do véu para encontrar o real que subsiste por detrás, um dos nomes desse real é a castração. A experiência fundamental do que Freud chamou de o “complexo de castração” é aquela em que a criança como que levanta o véu da saia da mãe e se defronta com a falta do órgão masculino, falta que a leva a supor que a mãe sofreu castração por parte de algum agente. O vestido, diz Lacan, vela não simplesmente a presença de algo por detrás, mas a falta desse algo. E essa função de velar a falta é essencial no amor. Pois, o objeto de amor é, por excelência, a mulher, esse ser faltoso, castrado, mas que vela com os seus mais belos vestidos sua castração.

A condição para que haja amor é que haja a falta no Outro. E o que é amado no Outro é a sua falta. A falta do falo, ou o falo enquanto faltoso, é representado por Lacan pelo símbolo menos phi. Essa falta pode, por sua vez, ser substituída por qualquer outra. O que falta a um homem doente é sua saúde e não o seu órgão sexual, mas essa falta de saúde pode perfeitamente vir a representar o menos phi da castração. É por isso que os homens podem ser amados. Tomemos o exemplo do famoso caso clínico de Freud, o caso Dora: o fato de o pai de Dora ser impotente e doente permite que ela o ame. Mais ainda, diz Lacan, “O amor que ela tem por esse pai é estritamente correlativo e coextensivo à diminuição deste”.

Essa condição para o amor (que o objeto amado seja faltoso) trás a Lacan uma dificuldade: como explicar o amor a Deus, este ser onipotente a quem nada falta? Pois um ser a quem nada falta não poderia causar amor. Lacan vai então encontrar uma falta em Deus capaz de torná-lo objeto de amor. O que lhe falta, diz Lacan, é a existência. Ele não existe, pelo menos como existem os objetos que estão no mundo, como uma cadeira, um corpo, etc. Por isso que “não há outra razão para se amar a Deus senão que talvez ele não exista”.

Por outro lado, amar é ofertar, é dar a sua própria falta a esse Outro faltoso. Amar é dar, mas é dar algo que está para além daquilo que se tem. Amar é dar o que não se tem. Quando se é rico, dar um presente que custou caro pode não ser uma prova de amor. Uma mulher poderá se sentir mais amada recebendo de seu parceiro rico uma mera flor, ou um simples CD com as músicas que mais gosta, o que demonstra que ele foi observador e atencioso com ela. Nesse sentido, o objeto que se dá no amor é apenas um representante do nada, este sim essencial. A troca amorosa, portanto, será definida por Lacan como uma troca das respectivas faltas, uma troca de nada por nada.

Mas, além dessa troca, é preciso ver que na relação amorosa o ser amado torna-se um objeto desejado, ou seja, objeto visado pelo desejo.

O desejo, então, se põe a serviço e em benefício do amor, e se encarrega de construir uma cena na qual o objeto amado é concebido como uma coisa preciosa (agalma), como sendo único, insubstituível, e como sendo capaz de proporcionar ao sujeito desejante a completude perdida. Em outras palavras, o objeto visado pelo desejo é o objeto tal como ele aparece na fantasia amorosa[1].

O parceiro no amor torna-se a promessa de recuperação do objeto perdido, a recuperação da unidade original com o Outro materno. Mas, sendo um objeto real, torna-se também um suporte real dessa fantasia de fazer Um, fantasia em que os amantes se fundiriam em Um só ser. É nesse sentido que o sujeito, quando encontra sua “cara metade”, se sente muito mais capacitado para vencer os obstáculos da vida.

Aqui fica evidente todo problema que se abre quando ocorre uma perda do objeto amado, quando a relação amorosa é rompida. É aí que o sujeito experimenta o que se chama angústia. É aí também que o desejo perde seu suporte na realidade e se torna uma mera cena esvaziada, uma cena que não poderá mais ser realizada.

Mas há algo que permanece velado nesse funcionamento do desejo que faz de seu objeto o que há de mais precioso. É o que Lacan formula no Seminário 10, A angústia. Neste texto, Lacan nos apresenta aquilo que faz o desejo funcionar, que atua como causa do desejo, a saber, o objeto pequeno a. No esquema proposto por Miller vemos que o objeto pequeno a como causa de desejo se localiza antes do desejo:

objeto causa desejo/amor objeto desejado

Não vou aqui dizer muito sobre o objeto a. Quero apenas dar uma idéia simples para tornar sensível sua função como causa de desejo. O objeto pequeno a não é o objeto desejado, o objeto visado, mas sendo causa do desejo, ele permite que um objeto seja desejado. Isso fica claro se tomarmos o desejo do sujeito fetichista. O sujeito fetichista só pode desejar uma mulher se ela for vinculada a um objeto fetiche, por ex. um sapato. Ora, a diferença fica evidente. O seu objeto desejado é a mulher, mas o que causa o seu desejo é esse outro objeto que ela porta, o sapato. O objeto a é a condição para que um objeto possa ser desejado, mas uma condição sempre particular, como veremos no final.

Se nos voltarmos para a fantasia do neurótico, o que perceberemos é que o objeto que causa o seu desejo está muito mais escondido e disfarçado. Não é o sapato que está sempre em evidência para o fetichista, é um objeto mais sutil, e aparece como sendo uma parte do corpo da mulher. Por ex. pode ser uma certa forma dos lábios, uma certa forma da bunda, ou um certo modo de olhar, e até mesmo um certo brilho no nariz, como observou Freud. Aliás, a importância do brilho no nariz não é negligenciada hoje pela cirurgia plástica. Há uma técnica, como me relatou um cirurgião plástico, que visa preservar ou mesmo criar a capacidade do nariz de refletir a luz. Isso é possível com certos narizes.

Eis o que se encontra por detrás do véu do amor, o objeto causa de desejo.

Por fim, resta lançar a pergunta: existe um amor para além deste cujas coordenadas demarcamos aqui, o amor que vela o real? Existe, na experiência analítica, um amor pertencente à própria dimensão do real? Sim, existe. Mas falaremos sobre ele numa outra oportunidade.



[1] Não se trata aqui das fantasias sexuais cujo caso exemplar é apresentado por Freud em Bate-se numa criança.




Cristiano Alves Pimenta

Nascido em Goiânia, vivido na velha, ou não tão velha, Vila União, logo começou a ler coisas por conta própria e se deparou com uma epígrafe de autoria de Antonio Gramisci: “Todos somos filósofos”. Pronto! Primeiro raciocínio propriamente filosófico: “Se todos os homens são filósofos” (premissa maior), e “Cristiano é homem” (premissa menor), logo: “Cristiano é filósofo”. Tornou-se, então, um jovem filósofo, amante da verdade, leitor de K. Marx, Sartre, Hegel, entre outros. Foi salvo da megalomania apenas pela humildade, que o obrigava por à prova os produtos dessa ratio pessoal. Tortuosos caminhos o levaram, contudo, da faculdade de filosofia (USP) para a psicanálise Freudo-Lacano-Milleriana. Outro pronto! O amor à verdade caiu. Hoje, mais lhe vale uma “ilusão útil” (Baudelaire) do que mil verdades inúteis.
E-mail: cris.alvespimenta@yahoo.com.br








Vaca de Nariz Sutil



Eutridades



MEMORICIDADE DO CORPO


Tudo o que ele chama de alma e não alma.

Ele, eu, penso. O meu corpo é um ele, estou de fora, parece. Estranho.

E tudo o que ele chama de alma e é a cidade, a acidez da cidade, uma certa cartografia sólida

de tão fluida,

pontiaguda.

Tudo o que nele dói, ou mesmo o prazer barato do cafezinho ou uma baforada sem trago, ou de relance povoar os olhos de uma bunda ou uma coxa.

Tudo o que nele falta

e que ele chama de alma e não alma

e sim digitais de cidade e a gente

que circulando pelas ruas

circula a gente de um jeito

a mobilizar a memoricidade

— fazer móbiles

das ruínas de um ou outro Deus

a Quem confiamos o destino que não temos, que não será o nosso,

porque o queremos de mais ou de menos.

Ela, eu penso, a cidade é uma ela,

estou de fora, parece. Estranho.



GOIÂNIA


sólido som do sol,

mar em ausência

presente sobre a pele

o centro roído

pelo enxame enxuto

de erres inervando

o sólido som do sol

pela curvilínea pele

de paisagens móveis



Autobiografia só para Sofia


Uma lua feita de arame e de esquecimento,

uma lua que se recusa,

apenas rastro de uma luz que não está.

As noites sem lua interessam mais.

Os dias sem sol?

— metafísica barata.

O homem na rua relembra

a criança

rói

a infância

é a única coisa morta que lateja.




Wesley Peres

Wesley tem 31 anos, mas sempre acham que ele tem cara de 30. Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, com o romance Casa entre Vértebras, a sair em junho pela Editora Record. É autor de Água Anônima (Prêmio Cora Coralina, 2001) e Rio Revoando (Com-Arte/USP, 2003). Em 2007 lançará Palimpsestos, pela UFG. Acha deplorável pessoas que gostam de Fanta Uva, gosta muito de estourar aquelas bolinhas de plástico e da literatura produzida na Papua-Nova Guiné. Ah, é psicanalista e mestrando em literatura pela UFG. Mora na Cataluña. E-mail: wesleyperes@uol.com.br





C-dur



Três cantos para espaços vazios



Me recolho.


Minhas trancas,

as árvores na janela,

meu espaço de morte.

Tudo caminha em uma só direção: aquela.


Digo aquela (tenho medo de dizer seu nome).


Aquela: este é o seu nome a partir de agora,

Minhas trancas.








Sul ou Norte

não interessam.

Minha casa está plantada longe do mar.

Um espaço de quatro cantos, teto e portas: muitas, infinitas.


Caminhamos os dois, separados, cada qual com sua ausência de pés.

Temos carros, temos sol, temos o Sul e o Norte que não interessam.


Temos,

ter é um sentimento?

Tememos, seria melhor dizer.


Na janela existem árvores e homens de terno

E todos os quartos são iguais.


Temo, pois não temos nem mesmo a morte.

Espaços.







Rogo teu nome


em cada canto

janela

pedaço de parede.


Rogo,

por tudo o que é igual,

tudo o que se repete.


em cada canto

janela

nos meus pedaços

nas árvores

portas.


Olho pela janela e espero,

o Milagre.


Aquela.





Paulo Guicheney

Paulo Guicheney é compositor. Quando criança teve de optar entre ABBA e Trio Parada Dura. Optou por ABBA, mas depois descobriu que a coisa pegava mesmo era com Beethoven. Estudou piano e composição na UFG, onde também fez mestrado em música eletroacústica. Atualmente leciona composição na UNB.
E-mail: pauloguicheney@hotmail.com




Neuropop


GUERRA NAS ESTRELAS

A economia mítica

Em Guerra nas Estrelas, os Cavaleiros Jedi remetem, ao mesmo tempo ao homem santo e ao herói. O conhecimento da força torna o Jedi um sábio extremo e um guerreiro virtuoso, características centrais de um e de outro, respectivamente. A habilidade com o sabre de luz, usado de forma precisa, implacável e impassível, remetem ao samurai, ao cavaleiro de capa e espada medieval, ao espadachim e ao cowboy. A capacidade de pressentimento do futuro imediato e distante, de manipulação da força para mover objetos à distância e, nos casos mais extremos como em Yoda, de emissão de raios mortais contra o inimigo, remetem aos bruxos e sábios budistas e yogues. A estes dois últimos os Jedi se assemelham ainda pelo papel da meditação em seu conhecimento do sagrado. O altruísmo, ascetismo e castidade remetem à disciplina extrema dos yogues e monges budistas e cristãos.

Os personagens centrais dos filmes, por sua vez, são um composto de personagens míticos do ocidente e oriente. Yoda é principalmente uma espécie de sábio maior, um misto de mestre yogue, Dalai Lama e Papa: trata-se de um quase santo e dentre os viventes (já que não se trata de um humano) é o que mais conhece a força. Mas é também um poderoso guerreiro e um espadachim inigualável, pois o conhecimento da força proporciona, ao mesmo tempo, sabedoria e belicosidade, embora, nele, a primeira seja o elemento predominante: é mais um homem santo que um herói. Obi-Wan é sua contra-parte, pois é um sábio, sem dúvida, mas trata-se, antes de tudo, de um guerreiro, um homem de ação, decidido e, não raro, bem humorado, um composto de cowboy, espadachim e samurai. O personagem central, Anakim Skywalker, o que, segundo a profecia, traria equilíbrio à força, já está em outro plano, o do herói mítico, o mortal superior a todos os outros ou o semideus, com um pé na mortalidade e outro na divindade. Neste aspecto, Anakim e seu filho, Luke Skywalker, remetem diretamente aos heróis gregos sofredores Hércules e Prometeu. Mas também aos sábios supremos, homens-deuses, como Buda e Cristo, que rearranjam o equilíbrio sagrado do mundo.

Sem dúvida, Guerra nas Estrelas é uma narrativa mítica, não só pela compilação de mitos de várias épocas e culturas, mas inclusive por sua estrutura, ou seja, pelo modo como amalgama esta variedade. Numa entrevista sobre o filme, George Lucas diz que, como na poesia, o filme rima as cenas, ou seja, há recorrência de fatos que remetem a outros, analogias entre acontecimentos (e entre coisas). E ele tem razão. Por exemplo, em duas cenas capitais da história (talvez as cenas centrais) acontece esta circularidade analógica entre os eventos que caracteriza o mito. Na primeira cena, no episódio III, Anakim impede o poderoso Mace Windu de matar Papatine, selando o destino do primeiro como Sith (o anti-Jedi do lado escuro da força) e do segundo como déspota da Galáxia, que passará de república democrática a império despótico. Na segunda cena, ocorrida no fim do último episódio, o mesmo Anakim (agora Darth Vader), salva seu filho Luke Skywalker, matando o mesmo Imperador cuja vida ele salvara no episódio III, o que faz Anakim se redimir e retornar para o lado luminoso da Força (mesmo depois de morto), determinando o fim do Império e a volta da república. Não só os acontecimentos são análogos, mas também as circunstâncias. Em ambos os casos Anakim assiste a agonia das vítimas de fora da luta, mas perto o bastante para nela interferir e salvá-las, se quiser. E em ambos os casos ele decide intervir e impedir o assassinato, e ambas as vezes por amor: quando salva Palpatine ele o faz por amor a Padmé e por amor a seu filho impede o mesmo Palpatine de matá-lo,na segunda cena. O mesmo amor passional (condenável num Jedi, pois implica no medo da perda, caminho para o lado obscuro da Força) que o arrasta para o lado obscuro da Força, paradoxalmente o faz retornar para o caminho Jedi. Outra característica mítica da narrativa é a composição das personagens, cujas ações são uma espécie desdobramento de disposições arquetípicas suas. Ao contrário do romance, no qual o herói é o resultado de suas peripécias (o desdobramento das ações resultam no sujeito formado), no mito, as peripécias são o desdobrar de disposições iniciais pré-formadas ou potenciais: no mito o herói não aprende como no romance tradicional que quase sempre é uma narrativa de formação. Assim, Yoda é o sábio e sua performance durante a saga será principalmente de atos de sapiência, como a de Obi Wan será de heroísmo. Neste aspecto, Anakim se compõe de arquétipos conflitantes, pois se ele é o herói salvador por excelência, também o habita a figura do traidor: Anakim é, ao mesmo tempo, Jesus e Judas. Talvez este seja o sentido da profecia do escolhido que trará equilíbrio à força, não o que os Jedi lhes dava de eliminar os Sith, mas o de transitar nos dois lados da força. Neste sentido, Anakim remete aos deuses ambíguos, como Hermes, o mensageiro astucioso, que transita entre o mundo terreno (baixo) e o celestial (elevado): o Exu do candomblé também faz o mesmo percurso.

A despeito da utilização do tesouro mítico de várias culturas, Guerra nas Estrelas acomoda-os no maniqueísmo da Força, uma potência abstrata que governa a vida no universo. No entanto, trata-se de um maniqueísmo muito particular, pois embora haja diferença efetiva entre os lados obscuro (mal) e luminoso (bem) da força, trata-se de dois pólos de uma mesma substância abstrata, ou seja, embora seja clara a diferença entre bem e mal, eles se distribuem numa escala contínua: daí o medo e o amor passional ser uma espécie de limiar entre os pólos, pois são sentimentos que misturam altruísmo e ódio, situados nos extremos opostos da força. Tal maniqueísmo não comporta, então, o bem e o mal absolutos, e muito menos a personificação destes pólos em seres como Deus e Diabo, pois suas polaridades são reversíveis (veja-se o trânsito de Anakin, do bem para o mal e novamente ao bem). Esta reversibilidade de um princípio vital supremo, abstrato e impessoal, recupera tradições religiosas orientais, como o taoísmo, com sua dualidade yin/yang, e principalmente o budismo, no qual o jogo entre a iluminação e a obscuridade é análogo ao do filme.

Épica do capitalismo

Guerra nas Estrelas, a princípio, parece sintetizar mitos e religiões de várias culturas numa fábula mítica extremamente bem armada, projetando-os num futuro (embora a introdução advirta o espectador que a história se passa “numa galáxia distante, a muito tempo atrás”, trata-se obviamente do tempo por vir) extremamente avançado tecnologicamente. O arcaísmo (mito) e futurismo (ficção científica) extremos da saga dos Skywalker explicariam duplamente o fascínio que o filme exerce sobre uma multidão de pessoas, pois nele se casa o poder intemporal do mito com a paixão do homem moderno pelo futuro que é, nos dizeres de Octavio Paz, o tempo por excelência da modernidade.

Tal explicação reforçaria a idéia de universalidade do mito, cuja dispersão em mitos particulares através da história e das culturas, seria, nada mais nada menos que a atualização de uma matriz mítica universal do homem, seja esta matriz a abstrata estrutura simbólica que o estruturalismo antropológico tanto procurou, seja o substrato arquetípico inscrito na alma do homem em geral, como quis Jung. A bem sucedida síntese mítico-religiosa de Guerra nas Estrelas seria um indício (ou até uma prova, para os mais entusiasmados) do quanto os mitos das mais variadas culturas dialogam e, no seu substrato mais profundo, são análogos. Dessa analogia geral dos mitos decorre a sua universalidade, que é também a do homem. Até mesmo nossa a paixão pelo futuro, que a ficção científica exprime com tanto sucesso, não deixa de ser uma vertente mítica constituinte do homem (o fogo de Prometeu, a nova fé de Jesus), que o Ocidente teria atualizado com mais insistência e vigor que as outras culturas.

No entanto, talvez não haja apenas a síntese mítica em Guerra nas Estrelas. O procedimento estético do filme, aliás, parece ser o que Deleuze e Guattari chamam,em seu Antiédipo, de descodificação dos fluxos. O que no passado e nas várias culturas eram sinônimos de constituição fundamental dos homens, ou seja, o que codificava e perfazia essencialmente o seu ser, perde sua constituição original e seu caráter fundador (descodificação) e é recodificado no fluxo-geral da fábula. Mas esta recodificação não dá mais aos mitos (ou ao mito) o caráter de fundação que ele possuía nas fábulas originais: no filme, o prazer da fábula subjuga o seu poder sagrado. Se este ainda se manifesta no filme, é como potência segunda, como eco ou sombra de sua substancialidade original.

O mais intrigante, porém, é que em Guerra nas Estrelas, esta primazia do prazer da fábula, que ocorre por meio da descodificação mítica (de resto, muito comum no cinema comercial norte-americano, principalmente na ficção científica), encontra-se expressa no interior da própria fábula, na figura da Força, um fluxo contínuo, abstrato, polarizado e até mesmo mensurável (na forma de contagem de midi-chlorians), que descodifica, absorve e recodifica, na economia estética do filme, os mitos mais variados. Tal descodificador geral dos mitos remete ao movimento do descodificador geral dos fluxos na sociedade capitalista, o capital, fluxo de todos os fluxos, que vai permitir ao Ocidente a modulação e absorção das outras culturas (do outro) em seu incessante movimento despido de pontos absolutos de apoio (ser ou mito fundador) mas que, no entanto não prescinde destes mesmos pontos de apoio, mas relativizados. Assim,o estado, no capitalismo não é simbolicamente calcado num poder divino (lei absoluta de deus), mas no estado de direito, ou seja, num corpo leis, móvel e laico. A Força em Guerra nas Estrelas necessita que a mitologia e seus heróis subsistam, como o capitalismo precisa do Estado, mas sob os rigores do seu continuum abstrato e polarizado.

Talvez o fascínio de Guerra nas Estrelas esteja não em seu arcaísmo ou futurismo, mas exatamente em sua extrema atualidade, em sua engenhosidade em efetuar, na economia interna do filmeverdana (na Força), o movimento de descodificação geral dos fluxos que, ao mesmo tempo que preserva a sombra (ou eco) das substâncias originais que descodifica, as recodifica sob outro regime. Então, o sucesso do filme estaria em representar ou refletir o funcionamento estrutural do capital em nossa sociedade? As idéias de representação, reflexo, ou mesmo refração não são um bom ponto de partida, pois supõem, por um lado, um real representado (e mais verdadeiro ou pelo menos verificável empiricamente) e, por outro, sua representação simbólica, a obra estética, produto de segunda mão, derivado da realidade: a arte como metáfora, conotação ou forma que se move sobre o fundo de verdade do real.

Esta idéia da obra como representação, que vê na sua estrutura estética uma denotação (inclusive em suas versões sutis de refração, distorção ou contraposição) das estruturas sociais historicamente formadas permeia uma certa crítica de matiz sociológico, não raro de formação marxista, que ressalta o vínculo entre arte e sociedade. O mito, nesta perspectiva, representaria, em sua estrutura narrativa, as relações de uma dada sociedade em um momento específico de sua história. Esta perspectiva tem a vantagem de evitar a interpretação universalista dos mitos, principalmente em sua tendência de ver em cada mitologia particular a atualização de um tesouro arquetípico primordial, universal e transcendental: tal tesouro seria, portanto, a expressão de uma suposta essência do homem. A desvantagem desta perspectiva mais sociológica é a de insistir na idéia de que o estético (simbólico) representa o social (de base material) historicamente formado, numa espécie de separação cristã entre corpo (real social) e alma (representação estética), valorizando, ao contrário do cristianismo, o material.

Portanto, dizer que a descodificação dos mitos que Guerra nas Estrelas promove em sua estrutura estética corresponde ao processo de descodificação geral dos fluxos que o capitalismo (ou a modernidade) promove, não significa que a Força representa, na economia estética do filme, o papel que o capital desempenha na economia (material e simbólica) da ‘sociedade real’. Talvez seja melhor colocar a coisa em termos de desejo, de organização (ou formação) do desejo numa dada sociedade. O capitalismo procede por uma incessante descodificação e recodificação dos fluxos, para os quais não há origem nem fim fixos (nem princípio, nem finalidade). O capital, nesta perspectiva, não é o real representável, mas uma espécie de (des)limite de descodificação de todos os fluxos, não a medida de todas as coisas, mas o fluxo que desloca todos os limites estabelecidos, o limiar a partir do qual os outros fluxos do desejo (de trabalho, de fé, de arte etc) serão descodificados e não mais se cristalizarão em torno de qualquer absoluto, embora haja cristalizações precárias (relativas) de fluxos: identidades individuais, regionais, nacionais, religiosas, estéticas: o indivíduo e as tribos do mundo atual.

O deslocamento dos mitos que Guerra nas Estrelas faz com tanta eficácia, descodificando e recodificando-os no fluxo abstrato da Força é, não a representação do ‘real da sociedade capitalista’, mas uma efetivação não menos real da descodificação capitalista. O fato desta efetivação se dar no plano simbólico não quer dizer que ela seja a representação de uma matéria original, ou seja, o filme (qualquer filme ou narrativa) não é uma forma estética derivada de uma forma histórica primeira, mas ambas as formas são co-ocorrentes e primeiras no mesmo espaço social. A forma da arte não é filha das formações sociais, mas ambas são órfãs e sua relação, menos que de causalidade ou eugenia, é de interferência recíproca, como se as cadeias simbólicas e materiais da sociedade estivessem numa situação de entrelace contínuo e assimétrico, violando-se mutuamente.

O facínio que a síntese de mitos que Guerra nas Estrelas exerce não significa que nós, ocidentais ou ocidentalizados, participamos de uma “universalidade mítica”, ou seja, o gosto pela mitogia não revela nossa universalidade. Ao contrário, este gosto é a efetivação de uma particularidade da cultura ocidental, que é a ambição cosmopolita de síntese de todos os mitos, a ânsia por compilar e digerir todas as tradições, crenças e mitologias. As outras culturas se conformam (na verdade, se comprometem) com os mitos de sua tradição específica e, quando muito, estabelecem um universal a partir de suas raízes particulares, enquanto nossa sociedade sem mitos de origem não cessa de compilá-los, deslocá-los e relançá-los, não raro em busca de uma matriz abstrata de todos eles na esperança nostálgica de uma refundação da origem, própria das religiões atuais e de algum pensamento, como o junguiano.

Por outro lado, o mito, combinado com o enredo folhetinesco e o futurismo cientificista, não funcionam como ideologia, ou seja, não são estratégias de ocultação de “significados nada inocentes” do filme, tais como um certo pendor aristocrático dos heróis (naturalmente melhores que os outros mortais) estranhamente misturado com a valorização da democracia (uma falsa liberdade?) ou a tendência maniqueísta que tanto interessaria ao imperialismo norte-americano, ávido por divisões claras entre o bem e o mal. De fato, tais sentidos circulam no filme, o que não significa que sejam a sua verdade oculta que se impõe pela ludibriação dos espectadores. Esta interpretação apenas repõe o maniqueísmo de maneira invertida, considerando ruim o que a obra apresentaria como positivo.

O fato destes sentidos e valores padrões (bem x mal, superioridade aristocrática e poderes sobrenaturais do herói) circularem na economia estética de um filme não o torna, por si só, nem bom nem ruim. Se eles circulam perpassados pela ironia, como em “Beleza americana” e “O Show de Truman” por exemplo, para permanecermos no cinema comercial norte-americano, os filmes podem se salvar esteticamente, pelo efeito de distanciamento e auto-estranhamento cultural. É claro que na maioria do cinemão americano estes sentidos tornam-se clichês repetitivos, fórmulas a serem aplicadas quase que mecanicamente e com mínimas variações. O clichê na arte de massa é uma repetição de padrões relativamente (e apenas relativamente) estáveis, previsíveis e desejáveis (pela maioria) de valores e significados ou, por outras palavras, é o próprio processo de recodificação se efetuando, recompondo identidades e sistemas bem marcados para os fluxos descodificados. Faz parte do clichê não apenas significados e valores que circulam no filme comercial (e da novela televisiva), mas também seu andamento folhetinesto, com um enredo marcado de quiprocós e revelações, numa combinação que, quando bem manejada pelo cineasta, resulta na garantia de uma grande audiência e, em consequência, uma não menos alta rentabilidade financeira.

Mas o caso da ficção científica é particular, pois mesmo que o heroísmo e o maniqueísmo apareçam sem o distanciamento crítico, em filmes como Guerra nas Estrelas, Matrix, Alien e Exterminador do futuro, mesmo ao espectador mais exigente parece que o clichê repetido soa com um sentido à mais, como se o próprio clichê remetesse a algo que o ultrapassasse enquanto tal (a mesma sensação que se tem com os melhores faroestes).

Talvez esta sensação de transbordamento de sentido ocorra porque estes filmes sejam a épica de nossa cultura. De fato, tal como a épica das outras culturas, em Guerra nas Estrelas estamos diante dos limites máximos de nosso tempo-espaço. Espacialmente, o palco é a galáxia, a maior unidade espacial imaginável. Temporalmente, ao contrário da épica antiga, que buscava o tempo mais remoto possível (a fundação do povo), o filme de ficção científica comercial busca o futuro verossímel e imaginável o mais distante possível – no sentido de que ainda possamos nos reconhecer nele, ou ainda, em que nossos clichês ainda valham. O Ocidente não procura o sentido na sua origem e nem no seu destino final (como no cristianismo e no judaísmo), mas no limite de seu devir, o limite da duração no qual ele ainda pode se reconhecer, pois num regime de descodificação geral de fluxos, as origens e fins não são limites absolutos, mas relativos, a serem deslocados e absorsivos. Por isto, ao contrário do homem das outras culturas, o ocidental não acredita piamente no conteúdo mítico de suas épicas, embora possa lhe perpassar a crença difusa de que alguma verdade universal esteja sendo dita metaforicamente (esteja conotada) pela narrativa, numa espécie de interpretação (não especializada é claro) universalista do mito. Na formação da épica do ocidente não pode haver, de fato, um absoluto em que acreditar, pois o movimento geral do capitalismo, em todas as suas dimensões (estética, política, econômica, técnica) é exatamente o do deslocamento de todo e qualquer absoluto, tornando-o relativo. Não que este deslocamento resulte numa perda total de pontos de referência (valores), muito pelo contrário, pois o estabelecimento de clichês como valores relativamente estáveis é uma força centrípeta necessária ao equilíbrio tenso do regime de descodificação dos fluxos. Mas a épica de tal regime teria também que efetuar, de uma perspectiva estética, tal deslocamento do absoluto. Neste aspecto, a Força como continuum abstrato, reversível e mensurável desempenha, em Guerra nas Estrelas, o papel de descodificador geral dos fluxos míticos-religiosos, para recodificá-los depois em clichês estéticos maniqueístas e heróicos que tanto apreciamos (desejamos). A épica não representa uma cultura, mas ela (e a religião) diz às pessoas de uma cultura o que elas são, porque o são, de onde vieram e qual o seu destino, ela é um explicador final para a falta de explicações últimas da existência. A épica do ocidente não pode nos dar tais certezas, mas ela (de)marca o estado atual e o movimento possível da descodifacação, ou seja, ela nos diz de nossa identidade relativa (nossos clichês) enquanto ocidentais e especula, na duração futura, os limites desta identidade, o quanto os fluxos (não só os tecnológicos, mas também os políticos, econômicos, morais etc) podem ser descodificados sem que deixemos de nos reconhecer como ocidentais.

Daí os clichês, em Guerra nas Estrelas, apesar de circularem no filme de modo ingênuo, ou seja, sem o distanciamento da ironia, darem a sensação de se ultrapassarem a si mesmos. De certo modo, esta ultrapassagem efetivamente se dá, pois a épica, em sentido estrito, não é o espaço narrativo do questionamento dos valores e sentidos cristalizados, mas de sua afirmação simples, pura e grandiosa, que é o que acontece na obra de George Lucas. O fato do filme ser arte de massa (magnética e contagiosa), feita no Estado central do capitalismo e estar enredada no jogo do mercado 'até a alma' (é claramente cinema comercial) não lhe tira as prerrogativas épicas. Ao contrário, tais características extra-estéticas até reforçam o seu caráter de épica que, em qualquer sociedade, é um produto simbólico umbilicalmente ligado a seus modos dominantes de produção e reprodução materiais e imateriais, além de estar em estreita sintonia com o gosto, o pensamento, os afetos e valores comuns do povo. Por outras palavras, a épica efetua brutalmente as formações de desejo que constituem a maioria (ou as centralidades) de uma cultura. Ela é de uma beleza infante: infantil e bélica, ingênua e monstruosa.