Michaux
Apresentação e tradução: Nereu Afonso da Silva
Poteaux d´angle, de Henri Michaux, cuja edição completa é de 1981, é composto de uma série de preceitos, aforismos e outros ‘conselhos meditativos’ destinados a um suposto ‘você’.
Livro tardio, de quando o poeta belga beirava e ultrapassava seus oitenta anos, tem o perfume moralista daquelas máximas que, de Epicuro a Nietzsche [para evocar apenas um pedaço do cenário ocidental], aparecem de tempos em tempos em nossa literatura para complementar, contrariar, fragmentar — e por vezes dinamitar — o que de fixo, austero e uno se pretende impor. Poteaux d’angle ensina [se é que ensina] contra o ensinamento; traz bagunça a certos lugares, sobretudo aos comuns; corre naqueles sulcos de anti-sabedoria que deságuam, vejam vocês, em outra-sabedoria; martela mestres e dispensa discípulos; é escrito com sintaxe iluminada por escritor nunca realizado, nunca estabelecido e nunca claro, porém claro!
Os doze fragmentos abaixo traduzidos foram pinçados no volume de bolso de Poteaux d’angle, [Poésie/Gallimard, Paris, 1981].
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O pensamento, antes de ser obra, é trajeto.
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Se você é um homem designado ao fracasso, não fracasse, contudo, de qualquer jeito.
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Não, não, não adquirir. Viajar para se empobrecer. É disso que você precisa.
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Lembre-se: aquele que adquire, a cada vez que adquire, perde.
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Aconteça o que acontecer não embarque nessa — erro supremo —, não se ache mestre, nem mesmo um mestre de más reflexões. Há ainda muita coisa a ser feita, muita, quase tudo. Sua morte colherá um fruto ainda verde.
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Sendo múltiplo, complicado, complexo e, aliás, fugitivo — se você se mostra simples, estará trapaceando, mentindo.
Você é assim.
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Faça, ao menos, algum esforço de sinceridade em vez de dissimular-se na moda da época ou em um desses grupos onde, por amizade, ingenuidade ou esperança, a gente se une.
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O estilo, essa comodidade em instalar-se e em instalar o mundo, seria isso o homem?, seria essa aquisição suspeita que elogiamos no escritor que com ela se satisfaz? Seu pretenso dom vai grudar-lhe, esclerosá-lo surdamente. Estilo: (mau) sinal da distância imutável (mas que poderia ter sido, ou deveria ter sido); distância onde equivocadamente ele permanece e mantém-se em face de seu ser, de coisas e de pessoas. Bloqueado! Ele precipitou-se em seu estilo (ou o procurou com afinco). Em troca de uma vida de empréstimo ele abandonou a totalidade, sua possibilidade de mudança, de mutação. Não há do que se orgulhar. Estilo que se tornará falta de coragem, falta de abertura, de reabertura: em resumo, uma enfermidade.
Trate de escapar. Mergulhe suficientemente profundo em você para que seu estilo não possa mais continuar.
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Em um pasto estreito pastavam uma vaca e um cavalo. A comida é a mesma, o lugar é o mesmo, o dono deles é o mesmo, o rapaz que os trará para dentro é o mesmo. Entretanto, a vaca e o cavalo não estão “juntos”. Um come o pasto de um lado, o outro do outro, sem se olhar, movendo-se lentamente, nunca muito próximos e, se isso acontece, eles parecem não perceber.
Nenhum comércio — eles não se interessam um pelo outro — mas também não há agressão, querela, nem mau humor.
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Mais vale permanecer no horripilante do que cochilar no satisfatório.
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Ele se atrapalha ao dobrar os joelhos, seus passos não são lá tão grandes, mas é ele quem melhor recebe os raios de sol, ele que nunca foi discípulo.
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Não se entregue feito um embrulho amarradinho. Ria com seus gritos; grite com seus risos.
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Aprenda com parcimônia. Uma vida inteira não basta para desaprender...
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Nereu Afonso da Silva nasceu em São Paulo, em 1970. É o autor de Correio Litorâneo, Editora Record, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, na categoria contos. Formado em filosofia pela USP, enveredou para o teatro. Foi um dos Doutores da Alegria (palhaços em hospitais). Hoje vive na França, onde escreve, atua, leciona e dirige para o teatro.
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Metáfora, Essências e Verdade na Narrativa de Marcel Proust: Deleuze e Ricoeur – Uma conciliação
Carlos Augusto Silva
Se fôssemos procurar uma imagem para ser símbolo do romance Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, talvez a mais apropriada seja a do narrador ainda menino tomando sua xícara de chá de tília, mergulhando nele o bolo Madeleine, descobrindo, através do que aquele sabor lhe revela, o sentido de toda uma vida, que será, por conseqüência, um dos sentidos de toda a sua obra. Para Proust, mais que uma coisa separada do mundo, ou um componente dele, o Tempo é, em si mesmo, como o é para Santo Agostinho, uma realidade que nos contém, e sem descobrir seu sentido torna-se impossível descobrir qualquer outro, no recorte pragmático, ou num mundo de imaginação e símbolo. Em Busca do Tempo Perdido, a mais tensa fábula sobre o tempo já criada, encontra, em suas milhares de páginas diversas vertentes de interpretação. Uma imensa lista bibliográfica estende-se, na qual se enfileiram os maiores críticos literários, os maiores filósofos contemporâneos, os maiores autores, ora discutindo a sátira social, ora as questões metafísicas, gnosiológicas e ontológicas do tempo em suas personagens. Dentre os autores célebres que versaram sobre o romance de Proust estão os filósofos compatriotas do autor, Paul Ricoeur e Gilles Deleuze. Se a obra analisada os une, as respectivas interpretações da mesma, em parte, os afastam.
Deleuze concebeu uma obra toda para discorrer sobre a série de Proust. A ela deu o título de Proust e os Signos. Ricoeur concebeu um tópico, intitulado “Em busca do tempo perdido: o tempo travessado”, pertencente à sua obra Tempo e Narrativa, no tomo II, dedicado à análise do tempo e da configuração narrativa de ficção. Deleuze, para sua análise, dispõe de cento e oitenta páginas. Ricoeur de apenas trinta, mas com elas vai além da interpretação de um só aspecto, como faz Deleuze centrando no debate sobre os signos: Ricoeur utiliza as disposições do autor de Proust e os Signos ao mesmo tempo em que discorda parcialmente delas, e propõe uma análise temporal que ganha sentido numa relevância da narrativa enquanto configuradora de sentido, numa divisão de perspectivas óticas a respeito do que viria a ser tempo perdido e tempo redescoberto, da tomada do aspecto estilístico, para ele unido a uma questão de ângulo pelo qual se enxerga, e modos de impressões e sensações a comporem a unidade ficcional da obra.
Para Deleuze, Em Busca do Tempo Perdido não versa sobre o Tempo, mas sim sobre a verdade. Diz ele no primeiro parágrafo de sua obra: a Recherche, a busca, não é simplesmente um esforço de recordação, uma exploração da memória: a palavra deve ser tomada em sentido preciso, como na expressão ‘busca da verdade’. Depois diz mais: a obra de Proust se baseia não na memória, mas no aprendizado dos signos. A afirmação parece o tanto quanto extremada para qualquer leitor de Proust, principalmente para aqueles que percorreram os sete romances em sua composição circular, que exige uma segunda leitura para se revelar a sua inteligência estrutural.
Ricoeur rebate tal afirmação sem desfazer da importância basilar dos signos e de seu aprendizado para a composição do livro: ao contrário, tenta mediar, ponderar sobre a afirmação de Deleuze e provar que a experiência do aprendizado não desqualifica o romance como obra cujo tema central é a experiência temporal. A tese de Deleuze, para Ricoeur, só ataca a confusão que se faz com as revelações da última cena do sétimo volume, O Tempo Redescoberto, com as ações da memória involuntária, já que as revelações tidas ali se referem a um aprendizado longo, que engloba toda uma visada no enredo e lhe confere sentido singular, enquanto que as revelações da memória involuntária são breves, fugidias, e centradas numa única relação metafórica.
A grande questão portanto é a do aprendizado longo e a do aprendizado involuntário serem tempo perdido na medida em que a obra de arte, revelada na última cena, torna os dois caminhos do aprendizado parte de uma coisa só, enquanto que o singular passa a ser a revelação da extratemporalidade artística, reservada somente à literatura. Mudam assim as significações temporais dos signos. Diz Ricoeur: “É o caráter excentrado dos signos da arte com relação a todos os outros que gera essa historicidade singular”.
A descoberta da dimensão eterna da obra de arte, que para Proust salva a vida da força do tempo por eternizar os sentidos, estabelece uma relação tensa com o aprendizado dos signos, que é uma experiência temporal. Portanto podemos concluir que se Em Busca do Tempo Perdido é sobre o tempo, o é na medida em que não se filia ao aprendizado breve da memória involuntária e nem ao aprendizado longo dos signos, mas coloca a relação entre esses tempos com o tempo da eternidade, o tempo da obra de arte, que salva ambos os tempos de si mesmos através de sua escritura. Roland Barthes já se atentava para esse aspecto escritural, nos Novos Ensaios Críticos diz: “La Recherche du Temps Perdu é a história de uma escritura.” E um dos aspectos dessa história da escritura que Barthes aponta é o tempo, por exemplo, o tempo que o narrador não sabe se terá para escrever sua obra, haja vista que os signos da morte se espalham nas faces envelhecidas das personagens que rodearam sua vida, avisando-o de que a sua morte também se aproxima, e essa decisão da escritura é também um rito de iniciação, na medida em que nasce um desejo, uma perspectiva de fracasso, que seria não ter tempo para realizar a obra, e a assunção, de quem acaba de apresentar, em parte sim, e em parte não, no seu final o seu começo, ou seja, a obra que escreverá acabamos nós, de ler.
Ricoeur avança, tenta demonstrar sua tese agora arraigada na afirmação de que Proust estaria aprofundado nos ideais do romantismo alemão, por Schelling, naquilo que ele chamava de “a identidade, isto é, a supressão da divisão entre o espírito e o mundo material, sua reconciliação na arte e na necessidade de fixar a evidência metafísica com o intuito de lhe dar forma durável e concreta na obra de arte.”
Para Ricoeur, a questão não é saber como a filosofia da unidade perdida pôde ser diluída no romance, mas sim como a busca do tempo perdido pôde recuperar, por meio da narrativa de ficção, a questão da unidade, cara ao romantismo alemão. A resposta está no conceito de pensamento, que vem da Poética de Aristóteles, sempre presente em qualquer discussão séria a respeito de obras literárias. Por meio da análise temporal do conceito de pensamento num plano aristotélico, logo introduzida dentro de um enredo, cuja transitoriedade de uma cena para outra se dá no tempo, poderemos verificar como o ideal romântico é recuperado por meio da narrativa.
Essa questão do pensamento é para Ricoeur ponte para falar de um ponto substancial da verificação de Em Busca do Tempo Perdido como fábula sobre o tempo: a questão do narrador. Ele o divide em dois: narrador e herói, que são figuras distintas nessa perspectiva de análise. Para Ricoeur, o herói é quem vivencia, no plano externo e interno, as ações do enredo à medida que elas acontecem, mesmo quando volta ao passado, já que até mesmo a volta ao passado inclui uma compreensão presente que visa a uma explicação futura. O narrador por sua vez não avança, pois já sabe tudo, tem caráter onisciente, tem liberdade de trânsito dentro da obra, como diz Ricoeur, “ele a sobrevoa”. É portanto a voz responsável pelos avanços e retornos na narrativa que a costuram internamente. Essa divisão, para Ricoeur, unida à questão do pensamento aristotélico tal como está definido em sua Poética, pode responder de forma definitiva à questão de como a narrativa pôde recuperar essa unidade perdida à qual o romantismo alemão se refere. Para isso recorre à cena final, na qual a revelação do extratemporal se descortina.
Antes de chegar à última cena, que é uma visita ao palácio dos Guermantes, a voz do narrador é quase imperceptível. Na recepção final é tão mais alta que a do herói que se confunde com a voz do autor, rompendo a barreira entre Marcel personagem e Marcel Proust autor. Na verdade Marcel Proust incorpora suas concepções às do narrador, fazendo ali quase que sua poética, suas regras da composição artística. Juntos, autor e narrador acompanham a experiência do herói, que eles esclarecem juntos. Nessa junção se dá a unidade perdida, a identidade salva pela arte, almejada pelo romantismo.
Em Busca do Tempo Perdido se caracteriza no imaginário coletivo como uma obra de grande dificuldade de leitura. Primeiro por seu tamanho, constituindo mais de duas mil e quinhentas páginas, depois por seu número de personagens, que ultrapassa o número de duas centenas, pela sua variedade temática, suas referências enciclopédicas a obras de arte da pintura, literatura e música, pela linguagem, mas principalmente pela sua organização temporal, que sem pudor algum faz uso dos avanços e retrocessos em toda a sua extensão. Ricoeur deitou vistas sobre esse aspecto singular de organização temporal proustiana, e determinou em qual ponto da obra Proust credencia seu livro a poder estabelecer-se singularmente nesse aspecto.
No primeiro volume, O caminho de Swann, Proust abre espaço para uma narrativa intitulada Um amor de Swann. Nessa narrativa, um narrador de terceira pessoa aparece, pois agora os fatos narrados se deram antes de seu nascimento. Para Ricoeur ela basta para que o romance possa romper com a unidade cronológica de tempo. Essa narrativa é também um dos pontos que reforçam a obra de Proust como fábula sobre o tempo. O vínculo entre esta narrativa e a da Recherche, que é a história de uma vocação que desemboca numa escritura, se dá por via das lembranças associadas, como a frase musical do compositor Vinteuil, que é, para Swann, similar à experiência de memória involuntária do chá, e similar à experiência da última recepção. Ela liga de forma simétrica e harmônica Um Amor de Swann à narrativa como um todo. Ali Proust demonstra toda a tônica estrutural de sua obra, que ele chamava de grande catedral.
A grande arma para combater a proposta de Deleuze de que Em Busca do Tempo Perdido não é uma fábula sobre o tempo está, em Ricoeur, em duas frentes. Uma, o conceito de tempo redescoberto e tempo perdido, outra, a idéia de metáfora, que transcenderia ambos os conceitos, para ser o ideal supratemporal. Franklin Leopoldo e Silva, em “Proust e Bérgson: tensões do tempo”, sem dar-lhe nome fala desse supratemporal:
Deleuze mostrou que toda a Recherche pode ser lida como um longo exercício de decifração de signos que a frivolidade e as intermitências oferecem ao narrador. Isto é correto, desde que acrescentemos que a decifração depende de uma chave hermenêutica que só aparecerá no final do romance, quando a revelação afinal permitir avaliar a distância que separa e aproxima o tempo perdido do tempo redescoberto.
Essa distância que aproxima e separa é o supratemporal, do qual trataremos à frente.
Uma cena que Ricoeur escolhe para demonstrar o conceito de tempo perdido / tempo redescoberto é aquela na qual a figura de Charlus, personagem emblemática de Em Busca do Tempo Perdido, que, oscilando entre a imponência e a indecência, entre o nobre e o satírico, entre o dramático e o cômico, chega ao final de forma decadente. Apopléctico, a sua imagem dá a senda da morte a Marcel, causada pelo tempo. Como um aviso, uma série de experiências sensíveis o acomete. Uma delas é a frase musical de Vinteuil, que a arte sintetizou, o único signo que prometia algo no futuro. Tudo está envolto num emblema de felicidade. Sem saber de onde vinha essa felicidade no início da obra, quando bebe o chá, agora ele sabe: vem da união casual de duas impressões parecidas entre si, mesmo diante da distância temporal que havia entre elas. O enigma que ficou do chá não é a memória involuntária, esta de princípio revelada, e nem o seu acaso salvador: é que a alegria da impressão do passado seja semelhante a uma certeza que o faria capaz de tornar-se indiferente à idéia de morte, pois agora, revelado isso, a morte lhe é indiferente por poder vencê-la transpondo essa sensação de contentamento numa obra de arte, que a tudo eterniza, com sua vocação agora redescoberta junto com o tempo e com o nascimento da escritura. Esse sentido se une definitivamente com a concepção de Roland Barthes, e é nessa definição que a Recherche é a história de uma escritura. Essa é a medida do extratemporal, que não é, num primeiro momento, que seria o da revelação, a obra de arte em si, mas a arte enquanto algo abstrato, que preexiste a nós, mas está em nós e necessita de ser descoberta. Num segundo momento, o da realização, o extratemporal passa a ser o momento da feitura. Mas como uma narrativa temporal de ficção não versa sobre o que não aconteceu no plano da sua história, e como não é papel da Literatura e nem de nenhuma narrativa séria, exceto a de algumas ciências que fazem prognósticos sócio-econômicos-conjunturais, fazer conjecturas para o futuro, é no momento do escrever o que ainda não existe que o narrador-herói despede-se do leitor.
Nasce aí o problema maior: a dificuldade de fazer realizar-se o extratemporal na obra, e de estabelecer o que é o tempo perdido. Dessa solução é que nascerá o supratemporal, e a solução a este problema tem sua resposta na metáfora. Gerard Genette, grande nome da narratologia, em seu Figuras, fala, em “Proust Palimpsesto”, da metáfora como algo que permite falar de coisas separadas no tempo trazendo à baila suas respectivas essências.
Estamos diante de dois objetos: a realidade única, que é a matriz do fato a ser recordado, e a lembrança. Por via da metáfora dois objetos diferentes são levados ao plano de suas essências, que, tendo suas identidades íntimas preservadas pelo tempo, são posteriormente reduzidas às contingências, que conduzirão a partir dali, a vida, os dias, unindo-se também ao caráter contingencial da memória involuntária, sempre dependente do acaso.
Outro aspecto que irá compor a idéia de tempo redescoberto e de extratemporalidade cuja finalidade há de desaguar numa supratemporalidade, é a do reconhecimento, conceito também herdado da Poética de Aristóteles. Para o filósofo grego o reconhecimento é componente indispensável para o efeito desejado dentro da tragédia. Seria por demais forçado trazer esse conceito do texto aristotélico tal como é concebido na análise de peças gregas. Aqui ele funciona no sentido literal: o reconhecimento propriamente dito, como um símbolo, um signo da temporalidade central que Deleuze tenta negar a fim de sugerir uma sobreposição do signo a ela. Reconhecer é admitir que a pessoa que conhecemos já não é mais a mesma, por isso une-se a idéia que tínhamos dela do passado e a visão do presente, fazendo assim a junção de uma perspectiva de essência, que atravessa toda a obra de Proust. Diz Ricoeur: “a metáfora é para a ordem do estilo o que o reconhecimento é para a ordem da visão estereoscópica.” Na medida em que se resolve o problema do supratemporal, estamos diante do problema da condução dessa idéia, que só pode emergir pelo estilo. Em Proust, estilo é visão. Diz ele nas últimas páginas de seu romance: “pois o estilo para o escritor como para o pintor, é um problema, não de técnica, mas de visão.”
Assim, estilo para Proust é um instrumento de leitura dos signos que exigem aprendizado, que é a experiência do tempo redescoberto, coroada por um reconhecimento: a marca do extratemporal sobre o tempo perdido. Mas essa visão se aplica ao aprendizado total, que apresenta erros, que adquirem sentido de um desconhecimento. Por isso o jantar que se segue à meditação reveladora não é marcado só pela morte, mas também pelo desconhecimento, quando o narrador, por exemplo, não reconhece Gilberte, filha de Swann pela qual se apaixonou na infância. Porém, depois disso, o seu último reconhecimento é a filha de Gilberte (uma burguesa) com Saint-Loup (um aristocrata), que fecha um signo de mundanidade que percorre toda a obra, unindo os caminhos inconciliáveis de Guermantes e de Swann, que são o da burguesia e o da aristocracia francesa.
Ricoeur finaliza sua análise refletindo a grande representação temporal que nos rodeia e que corrobora também com Santo Agostinho: “o tempo perdido está contido no tempo redescoberto, mas também que é finalmente o Tempo que nos contém.”
A grande contribuição que podemos tirar de todo o trabalho de Ricoeur, que em suas trinta páginas de Tempo e Narrativa esmiúça a obra de Proust, e o faz de modo mais vertical do que Deleuze em suas cento e oitenta páginas de Proust e os Signos, é a de que não há tema isolado em Proust, que tal como os arcos de uma catedral gótica, na qual Proust se inspirava para falar de seu livro, tudo se une, se completa, compondo um todo inseparável, na qual só a paciência de várias leituras cuidadosas, e de uma disposição inspirada na que Proust teve para compor seu grande livro, podem revelar os segredos guardados na sua narrativa plena de sentido, carregada de densidade, pronta para vencer o tempo, e para, mais que explicar a vida, ser maior que a própria vida.
Carlos Augusto Silva colabora costumeiramente com o Jornal Opção e é bacharelando em Literatura pela Universidade Federal de Goiás, onde desenvolve pesquisa pelo programa do PIBIC/CNPq sobre Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.
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NOTAÇÕES
Tenho ouvido que o título às vezes estraga o poema, principalmente quando se fala de produção poética contemporânea, em que ocorre de o elemento poético se instaurar de forma súbita, perfurante, por isso, direto ao nervo da percepção. Os textos de Dheyne de Souza, os quais venho acompanhando na internet, parecem-me confirmar isso com muita substância. O seu poema, sem título, se inicia dando a idéia de conteúdo preexistente: um antes que é interior, e a estocada desse invisível em palavras, é quando o interior se torna palpável, imagem, não carecendo ser nomeado. Por isso: “em que deleite me pões flor pendida” fascina, porque é o silêncio tomando forma para os outros sentidos.
Assim, o poema se desenvolve, jamais ancila de um nome, mas participante de todo um vocabulário invisível que o preexiste, e de onde fora capturado — isso a que chamamos realidade. Mas o real se nos apresenta fragmentado, de difícil captação, daí a feliz escolha da poeta de transformá-lo em colagem, usando-se, dessa forma, da técnica de composição plástica moderna. O vocabulário, que antes formava o conteúdo de um determinado espaço, ainda não codificado, se transforma em verso, e mais, com o condão de juntar contigüidades.
A preferência por versos que lembram longas lâminas afiadas expõe, ao leitor, uma beleza cortante e de diferentes profundidades, das quais se toma conhecimento da agudeza no ato da leitura. Toma-se conhecimento sem ser necessário entendê-las de forma linear. Não fosse assim não se faria arte, mas simples frases conotativas.
Para um leitor desatento, impermeável à linguagem da poesia, o poema em questão sugeriria um caos, algo sem lógica. Contudo, é nessa aparente confusão que está uma de suas forças. O fato é que os versos estão profundamente relacionados ao mundo presente, seja pela instabilidade do ser “tão chão fumaça”, ou pela busca e tentativa de aproximação do “outro”, quando: “não vês que já te escapas meu lasso” (lasso, também ambivalência fonológica, laço), e, ainda, a possibilidade de se ferir nesse contato que é, a um só tempo, aproximação com um ser ingênuo (“criança”) e dúbio, disfarçado: “temo-te espinho pétala”.
Não se sai do poema de Dheyne sem, no mínimo, uns arranhões líricos dessas lâminas decididas. Contudo, não se sabe que imagem nos feriu mais de beleza, porque profusas e rápidas. Fica, depois, a sombra do poema repercutindo na memória. O rastro de um corpo pelo vácuo: “já passas da hora tem/pó”.
Edmar Guimarães
(autor dos livros de poemas: Caderno – 2000 – e Desenhos de Sol – 2002 –)
edmar.gl@celg.com.br