Número 7


Vou ensaiar um tipo de editorial diferente. Partindo do texto de Nereu Afonso, vencedor do Prêmio Sesc na categoria contos, com Correio litorâneo, achei um caminho. Nas Contribuições, apresentando Henri Michaux, o contista cita a seguinte pérola deste poeta belga: “Mais vale permanecer no horripilante do que cochilar no satisfatório”. Então, não há mais roteiro. Vocês vão ao menu e clicam onde der na telha. Verão uma coluna nova, a Hexercício Íbrido, da poeta Dheyne de Souza. Dela, o poeta Edmar Guimarães, também nas Contribuições, disse: “Não se sai do poema de Dheyne sem, no mínimo, uns arranhões líricos dessas lâminas decididas”.

“O agente, o capitalista que corre nas veias dos produtores, dos músicos, dos homens de negócios das mídias, enraba as massas, é verdade (como também é verdade que elas gostam de ser enrabadas)” é uma fala de Wilton Cardoso, em Neuropop. Para mim, o cerne da coluna neste número. Estou começando a pensar que é difícil não cochilar no satisfatório, leia-se no costume, quando se trata de um editorial. Agora, surge o momento que, lendo o Wilton falar de música, relembro de Paulo Guicheney apresentar “Ravel na gafieira”, em C-dur. Resta saber se Maurice Ravel veio mesmo a Goiânia e depois ouvir a reconstrução do clássico pelos dedos do Paulo.

Daí música lembra de cinema. Sou assim todo lembrado. Não sei até que ponto o lembrar-se lógico casa com o horripilante. Mas Almodóvar também não fala mais comigo, como diz o André de Leones em Mieloma de Ocasião. Talvez o problema seja a vendagem, a maquiagem que perdeu o clima de tabu rompido, ou o tabu que não há mais para romper. É como acontece, também, em Êxtimo, com Cristiano Pimenta, falando de cinema para falar de arte. Também porque, ao analisar o quarto do filho, de Nanni Moreti, ele põe em leitura a cena bem feita em relação à cena medíocre. A partir daí, traz à tona o problema de forma e conteúdo na arte.

Então, lá estou eu lendo a coluna para vocês de novo… como se vocês não soubessem ler! Mas não é verdade. Ruído branco sabe tanto disso que traz mais para este número: a inteligente conversão de produto acadêmico em texto de linguagem jornalística, do ensaísta Carlos Augusto. Ele aparece nas Contribuições com o ensaio “Metáfora, Essências e Verdade na Narrativa de Marcel Proust: Deleuze e Ricoeur – Uma conciliação”. E com a mesma verve genial, Frederico Martins, da Cova do Corvo, apresenta duas colagens em desdobramento sob o intrigante título de “Corvo Amarelo Jázz (Muted Grooves & Jazzigo)”.

Então vem a literatura. E não vão fazer meu percurso. jamesson buarque ataca de teoria literária, falando sobre quando um poeta faz prosa (como se ele soubesse disso!), passando até pela queda do airbus A-320 da TAM, por Kafka e por Rosa. Wesley Peres ataca de Descartes, subvertendo lógica em intuição das mais finas de sua prosa e poesia.

Bem, agora eu deveria falar de Patchwork, mas a coluna está em recesso, porque nossa querida coordenadora, Patrícia Martins, está em férias. Vai ver, isso destrambelhou este editorial. De todo modo, ela voltará.

Agora, nesta altura, quer dizer, aqui embaixo, tenho a sensação, para não dizer a certeza, de que terminei fazendo um roteiro mesmo. Acho que foi fadiga.



jamesson buarque



página p.


meditação ou ironia de um poeta em prosa


in memoriam das vítimas e parentes do desastre com airbus a-320 da tam, e em voz do que nos resta de humano.

para carlos (o drummond), gerardo mello mourão, wesley peres e nilson pereira — poetas em prosa que deram certo.


Coisa difícil um poeta em prosa. No último dia 17, um airbus A-320 da TAM caiu, aliás, bateu, depois de uma aterrissagem pelo menos estranha. Disseram os prosadores-repórter Pedro Marques, Evandro César Lopes, Paulo Mário Martins e Grace Stelmach: “A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo atualizou para 168 o número de mortos confirmados até agora — 165 corpos retirados do local do acidente e outros três que morreram em hospitais. O Instituto Médico Legal (IML) montou uma operação para o trabalho de identificação dos corpos das vítimas do acidente com o avião da TAM que chocou-se contra um depósito da empresa na noite desta terça. Nove pessoas já foram identificadas”. Diria Rosa: “Na pista, foi feio, uma brutalidade só. Das rijas. O avião batendo contra o paredão daquele depósito. Brutalidade cinzenta. Deu de ver tanta gente a fogo. Pensaram uns cem. Eram cento e sessenta e oito. Tudo gente pra baixo do chão. Três famílias de inteiro. A morte se prolongou para uns até o hospital. Teve gente que na hora. Quase tudo. E as pessoas no depósito foram junto. E nem se sabe quem é. Sabem de nove. É o mesmo que não saber de ninguém”. Diria Kafka: “Naturalmente, as pessoas morreram por defeito no aparelho. O avião aterrissou mal, não conseguiu arremeter, e caiu. De fato, bateu. De todo modo, era preciso contar com todos os passageiros e tripulantes mortos. Mas contaram apenas com aproximadamente cem. A empresa se explicou melhor depois que a culpa se tornou cada vez menos indubitável. Foram cento e sessenta e oito mortos. O avião, ao tentar aterrissar, perdeu o controle, os pilotos não o comandavam mais, e talvez nunca o tenham comandado. Desenfreou-se e o corpo de metal do aparelho saiu riscando fogo na pista de vôo até o depósito da própria empresa aérea. A batida enredou fogo, escombros, fumaça e sangue. E ninguém pôde suprir esperança de sobrevivência”.

A prosa de reportagem, sobretudo em tempos em que as imagens visuais, e não as mentais, querem, por força de mídia, falar mais do que as palavras, como se houvesse concorrência necessária entre as linguagens, enfatiza o fato como acontecimento. O prosador-repórter, assim como o prosador de ficção, busca fatos. Vive de fatos. Eu diria que a vida é mesmo fatídica. Mas, em literatura, vivemos a vida para além da vida, porque o autor doma o condão de anulação do tempo, para, por exemplo, desenhar a dor naquilo que é humana e não somente casual. Estetizar não é, por isso, melhor dizer um desastre; estetizar é sofrer mais de dentro da humanidade. Por isso o prosador de ficção, ainda que procure o fato, escava a vida vivida e não engessa nem aquele nem esta no formato efêmero da informação.

Como poeta, eu diria: “É fácil desconfiar do mínimo quando a culpa ladra/ Ladra em silêncio apontando o dedo/ E quando em riste:/ O novelo se desenrola até o limite do desvelo// Muita gente morta ali/ Seria dizer 100/ Que centena é número de não se definir/ E sinaliza a culpa para o amarelo/ Este intervalo entre o vermelho e o verde// E como foram bem mais de cem/ A batida do avião se tornou para mais dentro da dor/ De onde somente em carvão o corpo resta/ E vem a fumaça e seqüestra a vida/ Que soluçando insiste/ Até que se esquia/ Num sopro/ Para o infinito”. Se eu fosse prosador diria: “José Gomes estava guardando suas ferramentas para encerrar seu turno: vassoura, pá, balde, panos-de-chão, desinfetantes e rodo. José Paulo acabara de receber da torre de controle a liberação de aterrissagem. José Maria, convidado para uma conferência, provavelmente a última, porque contava com noventa anos, e, também, provavelmente, porque aquele seria seu último vôo. O avião aterrissou mal. José Paulo tentou arremetê-lo, mas não deu. Descontrolado, que seria dizer fora do alcance de comando de José Paulo, rasgou o asfalto, incendiando a pista de vôo. José Gomes se abaixou para apanhar a pá. Nunca mais se levantou. O avião se chocou em cheio no paredão lateral do depósito da própria empresa aérea. E era por trás dali que José Gomes estava. A empresa anunciou que cerca de cem morreram. Foram cento e sessenta e oito. Teve de corrigir-se. Não sobrou um josé sequer. Sobrou carvão”. Mas eu não sou prosador.

Da prosa de reportagem à prosa de ficção, muito de informacional se perde, e muito de imagem se ganha. Assistimos a ações humanas como se estivessem aqui e agora, ocorrendo diante de nossos olhos. A prosa de ficção existe para os olhos. A prosa de reportagem produz para os olhos também. Mas captura deles sua capacidade de absorver informação. Se se trata de um acidente de avião, como aquele citado, nossa condição humana nos move para a comoção. O poeta começa por essa comoção. Quase que se concentra na comoção. Enterra a informação sob a grossa massa intuitiva da emoção. Mostra como a prosa de ficção mostra. Mas mostra nossa condição humana. A prosa de ficção mostra ações humanas. Quando o poema narra, a narração é, antes de tudo, amostra da condição humana, paradigma de comportamentos, de gestos, de vida etc. Só depois importa as ações. A poesia acumula a ação na segunda camada de sua cadeia de significação. A prosa de ficção eleva a ação, põe-na no acme. Mas, como a poesia, enterra a informação.

A prosa de reportagem nos toma de imediato. Comove-nos com mais força: eram 188 pessoas dentro do airbus A-320, mais umas tantas pessoas dentro do depósito, mais as demais pessoas no aeroporto, e, mais as vítimas indiretas: as famílias, de longe e de pertinho. Dói. Depois de três semanas, um mês, seis meses, um ano, somente a família sofre. A TAM continuará chocando aviões em paredões, ou os mal-aterrissando ou os derrubando, para espetáculo mais expressionista e cruel. Nós, aqui de longe, recebendo notícias das mídias e vivendo nossa vida sobretudo de milhas para novas viagens áreas, confiando que os assentos são flutuantes, vamos nos esquecer, ou nos lembrar de soslaio. Claro, o acidente do último dia 17 será uma laiva no currículo da TAM, mas nada que a impeça de voar, bater e derrubar mais aviões.

A prosa de ficção fica. A poesia fica. Rasgam o peito, enfiam a mão esquerda lá dentro dele, agarram o coração pela aorta, convidando-nos a revisitar o espaço da dor. O poeta quer que não deixemos de lado nossa condição humana. O prosador ficcionista quer que não deixemos de parar de olhar para nossas ações humanas. O outro somos nós. Ambos querem que não nos esqueçamos de sermos humanos. Diria Pessoa: “A literatura existe para provar que a vida só não basta”. Uma exímia linha de prosa, para um poeta. Para qualquer um, aliás. Axiomática. Eis a saída para um poeta em prosa: tecer axiomas para mostrar ações da condição humana.




Jamesson Buarque

jamesson buarque é poeta, professor, crítico literário e doutor em estudos literários na ufg. publicou os delírios e novíssimo testamento. sente-se muito mais antigo do que sua idade tri-trina cristã. além de poesia e magistério, gosta de vinho, cachaça mineira, desenho animado, cinema, política, bíblia e fenomenologia, tudo colado. importante: é sobre essa colagem sua coluna.
E-mail: jamessonbuarque@yahoo.com.br





Êxtimo



A CRÍTICA DA CRÍTICA


Que a arte, e o cinema mais especificamente, seja uma forma de transmissão de mensagens, é algo com o que podemos concordar. Mas que ela se reduza a essa função, é impossível de admitirmos. Aqui nos defrontamos com a mesma problemática que encontramos quando abordamos a música pura: ela não veicula uma significação, embora possa fazer sentido aos ouvidos. Há músicas, e também outros objetos estéticos, que soam a certos ouvidos como sem sentido algum, como coisas estranhas. Ainda assim, o fato, mesmo se soar estranho, já é um sentido que se esboça. Por outro lado, quando estamos diante de um filme que narra uma história, a dimensão da significação se impõe. Podemos entender que o cineasta-autor tem, de antemão, sua história que será contada no filme. Contudo, a dimensão formal lhe é anterior. Antes de qualquer coisa, a linguagem cinematográfica, sua própria materialidade, impõe um certo modo de se contar a história, impõe limites e restrições por um lado, e abre possibilidades por outro.

Gostaria de tomar uma cena do filme o quarto do filho (La stanza del figlio), do diretor Nanni Moreti, para exemplificar o que estou querendo dizer. Mas antes lhes apresento o contexto em que ela ocorre. Trata-se da história de uma família nuclear (um casal e dois filhos) relativamente tranqüila e feliz, que sofre uma perda trágica: o filho morre afogado praticando mergulho. A desgraça e tragicidade do acontecimento são acentuadas pelo fato de estarmos diante de personagens sensíveis. O pai (Giovanni, interpretado pelo próprio Moretti), personagem central, é um psicanalista que convive com os dramas de seus pacientes e tem, agora, de enfrentar o seu próprio e suas conseqüências, já que a até mesmo a união familiar foi abalada com essa perda.

Pois bem, a ocorrência da morte do filho cria uma situação: a filha, uma jovem adolescente, tem de ser informada. Eis um problema formal-criativo que se coloca para o cineasta-autor no ato mesmo da construção de seu filme: como ela será se comunicada? Alguém (quem?) vai contar a ela. Vai dizer o quê? Algo como: “olha, aconteceu uma coisa terrível, o seu irmão...”. Onde? Como ela reagirá? Vai gritar, chorar, desmaiar. É claro que todas essas questões dependem da personalidade que vem sendo atribuída a esses personagens. Mas ainda assim, um leque de possibilidades se abre e cabe ao autor ser criativo.

A solução, no caso de o quarto do filho, é magnífica, digna de um grande artista, e faz do tempo dedicado ao filme pelo expectador valer a pena. A cena é a seguinte: a filha está participando de um torneio de basquete, ela é a armadora do time. Seu pai chega ao ginásio no momento em que ela está com a bola começando a armar uma jogada. Close nela. Ela olha para o pai ao vê-lo chegar, e sorri, pois entende que ele está ali para vê-la jogar, para torcer por ela. Close no pai. Ele, mesmo de uma certa distância, a olha profundamente com os olhos lacrimejando, e expressando uma tristeza profunda. Ela é capturada e paralisada por esse olhar. A bola lhe é roubada sem que ela tentasse evitar. O jogo prossegue e dois pontos são perdidos. Ela permanece paralisada. Começa a chorar como quem entendeu que algo absolutamente horrível aconteceu. Eis que tudo foi dito, que uma mensagem foi transmitida de um emissor para um receptor sem nenhuma palavra, apenas com os significantes imagéticos. Eis que, também nós, recebemos essa mensagem da comunicação do ocorrido à filha.

Eis também um exemplo de construção formal que dá ao objeto todo seu valor. Um filme é medíocre, sobretudo, quando suas soluções para seus próprios problemas e questões são medíocres, quando seus problemas são construídos de forma medíocre. E o exemplo clássico da mediocridade são os chamados “chavões”, “clichês”, que são moldes pré-dispostos de que o autor se vale de uma maneira não-criativa. Mas o que eu gostaria de sublinhar aqui é que, na construção artística, trata-se de uma anterioridade e mesmo de uma primazia da dimensão formal no que se refere à construção da significação. Poderia-se contra-argumentar que já tínhamos, de antemão, a significação fundamental, que é a mensagem a ser transmitida da morte do filho. Mas é preciso notar que a construção formal da obra lhe concebe de uma maneira que lhe modifica, lhe acrescenta nuances novas de significação. Neste exemplo do filme de Moretti, podemos notar que não há diretamente a comunicação da morte do filho. A cena só permite concluir que filha entende que algo horrível aconteceu, certamente uma morte, mas não lhe é possível concluir quem morreu. Ou seja, a mensagem exata (“seu irmão morreu”) nem chegou a ser transmitida. Por outro lado, a paralisia que ela fica, os pontos perdidos no jogo, traz-nos novas significações, essas sim, essenciais: a vida (o jogo) continua quando paramos, somos suplantados pelos acontecimentos, mas, sobretudo, uma morte também nos mata, matou a irmã, que naquele momento morreu como jogadora. Eis um pouco dos efeitos de significação que um arranjo formal pode produzir.

Outro aspecto a ser mencionado, no que diz respeito ao campo da significação em um bom filme, é que ele jamais é unidimensional. Certamente esse pode ser considerado um outro critério que define um bom filme: que ele jamais possa ser reduzido a uma única significação. Não se trata aí de uma condição suficiente, pois a pluralidade significativa pode também ser encontrada em filmes ruins. Ora, essa dimensão é, na verdade, aquela em que o movimento das significações desemboca num movimento que não é outro senão o movimento dialético. Isso fica evidente quando discernimos o que um filme quer dizer e diz (pode ser aquilo que seu autor quis que ele dissesse), mas também aquilo que ele diz para além do que ele quis dizer. Quando o que ele diz para além do que quis dizer é contraditório ao que ele quis dizer e disse, temos uma negação tipicamente dialética. É muito interessante quando a crítica, ou melhor, o crítico, toma a obra dessa perspectiva, quando ele descobre o ponto em que algo presente na própria obra nega aquilo mesmo que ela construiu com tanto esmero. Por outro lado, é sempre empobrecedor quando ele segue a via da unidimensionalidade.

Como abundam as críticas em que vemos os filmes serem tomados por essa via unidimensional! Eu mesmo lia uma do filme de Todd Field, Pecados íntimos (Little children), feita pelo crítico do site Contracampo, e me deparei com uma redução a zero, a nada, desse belo filme. As últimas palavras desse especialista reduzem o filme ao seguinte: Pecados íntimos é o cinema sem vergonha, sem segredos, sem fundo, sem vida, sem nada”. Mais ainda, ele é levado por sua argumentação a concluir que “não há definição melhor para a política da homeland security, do governo americano, que este filme de Todd Field, uma quase-propaganda do regime.”. É impressionante ver todo um arranjo delicado com que esse filme foi construído, arranjo que permite que se abra todo um conjunto de possibilidades interpretativas, significativas, ser reduzido a isso. Notem que não se trata simplesmente de se opor a uma certa interpretação. Não estou negando que pecados íntimos possa ter alguma ressonância com o homeland security, mas há lá muito mais coisas que não foram valorizadas, não foram vistas.

Aqui entramos num tema dos mais importantes: a relação afetiva do crítico com seu objeto. Assunto para uma outra ocasião.




Cristiano Alves Pimenta

Nascido em Goiânia, vivido na velha, ou não tão velha, Vila União, logo começou a ler coisas por conta própria e se deparou com uma epígrafe de autoria de Antonio Gramisci: “Todos somos filósofos”. Pronto! Primeiro raciocínio propriamente filosófico: “Se todos os homens são filósofos” (premissa maior), e “Cristiano é homem” (premissa menor), logo: “Cristiano é filósofo”. Tornou-se, então, um jovem filósofo, amante da verdade, leitor de K. Marx, Sartre, Hegel, entre outros. Foi salvo da megalomania apenas pela humildade, que o obrigava por à prova os produtos dessa ratio pessoal. Tortuosos caminhos o levaram, contudo, da faculdade de filosofia (USP) para a psicanálise Freudo-Lacano-Milleriana. Outro pronto! O amor à verdade caiu. Hoje, mais lhe vale uma “ilusão útil” (Baudelaire) do que mil verdades inúteis.
E-mail: cris.alvespimenta@yahoo.com.br








Cova do Corvo



Corvo Amarelo Jazz (Muted Grooves & Jazzigo)


"Todo conhecimento é, hoje, necessariamente, um conhecimento comparado."
Paul Valéry

Frederico Martins, apresenta, nesta edição da coluna Cova do Corvo, o resultado de suas experiências no campo semiótico. Os dois conjuntos de 3 imagens, Jazzigo 1 e Jazzigo 2, foram compostas para se ver/ouvindo. O primeiro grupo de imagens, construídas ao som do Jazz, arranha uma pré-percepção do momento em que o baixo passou a ocupar, graças a Charles Mingus, o primeiro plano nesse gênero musical. O segundo grupo, numa operação sinestésica, transforma o som do Jazz numa gradação de quase-formas que se saturam com a intensidade do ruído amarelo. Clique na imagem para ampliar.

Patrícia Ferreira Martins


Jazzigo 1



Jazzigo 2







Frederico Assunção Martins

Frederico é responsável pela identidade visual da Revista Ruído Branco desde de a sua criação. Fred é contra-baixista e também explora as mais diversas linguagens de criação artística.
E-mail: selfgrind@yahoo.com.br





C-dur



Ravel na gafieira


Maurice Ravel, o grande compositor francês, visitou Goiânia. Este é um fato pouco conhecido, mas que segundo algumas testemunhas, foi fundamental em sua carreira. Meu pai, na época ainda criança, se lembra do frisson que acometeu as socialites e os políticos da jovem. O pianista Godofredo Tavares participou de master-classes com o mestre e nos fala da profunda impressão que este causou na eminente sociedade musical goianiense: “Ele tocou trechos de Miroir e de Gaspard de la Nuit. As pessoas ficaram embasbacadas”. Entretanto, não foram apenas os goianos que ficaram impressionados com esta visita. De acordo com Adalberto Faria, dono, naqueles tempos, de uma gafieira na Rua 2 do Centro, foi em Goiânia que Ravel esboçou os primeiros compassos de sua magnífica obra Bolero de Ravel. O compositor francês freqüentou o estabelecimento de Faria e ao assistir a um show do Trio Irakitan, se comoveu de tal maneira com o que viu e ouviu que teve a idéia para sua grande peça. O violonista Deoclécio Carlos também se recorda do fato e afirma, ainda, que Ravel teria até mesmo arriscado uns passinhos na gafieira da Rua 2: “Ele dançava mal pra burro”.

Tempos áureos da cultura goiana…




Get this widget | Share | Track details






Paulo Guicheney

Paulo Guicheney é compositor. Quando criança teve de optar entre ABBA e Trio Parada Dura. Optou por ABBA, mas depois descobriu que a coisa pegava mesmo era com Beethoven. Estudou piano e composição na UFG, onde também fez mestrado em música eletroacústica. Atualmente leciona composição na UNB.
E-mail: pauloguicheney@hotmail.com




Neuropop



BRock



quando a tristeza é sempre o ponto de partida (rr)

não vai haver amor neste mundo nunca mais (mn)

pra que votar? (lb)

há muita grana atrás de uma canção (hg)



O Rock Brasil (BRock), do ponto de vista da energia liberada, é algo sem precedentes na história da cultura pop no Brasil. Apenas a Jovem Guarda se aproxima do poderio magnético do BRock, mas Roberto Carlos & Cia são criancinhas diante de sua eficácia (comercial e afetiva) pop.

***

O BRock é uma estética do rancor. Os roqueiros são moralistas imorais. Eles não querem o Brasil dividido entre a maioria pobre e uma minoria, rica ou classe média. Mas também não querem o desenvolvimento, se este significar que quase toda a população se torne classe média, democrática, cidadã, trabalhadora. Eles odeiam a sua vida classe média.

***

A sombria transição de Jango para a ditadura foi marcada, esteticamente, por uma efusiva atividade da cultura pop brasileira: Cinema Novo, Tropicalismo, Teatro Oficina, Bossa Nova, Festivais de MPB, CPC (e, mais tarde, em 70, a poesia e o cinema marginais). Em todas elas, a marca da utopia, o diálogo com a contracultura (hippies, oriente, minorias, drogas), a liberação das energias anarquistas do desejo, a possibilidade de um mundo livre de poderes centrais, por fora e contra os mercados: sonhos e delírios, fluxos de desejo contra fluxos de capital, contra o cerceamento dos fluxos pelo Estado, pelo mercado e até mesmo pela psique, pela alma. Em quase todas estas estéticas pairava a sombra dos ditadores e do impasse político (como em Terra em Transe), mas não havia paralisia, havia esperança, utopia. Os impasses eram colocados como muros a serem ultrapassados, pois havia alternativas fora dos termos em que eles eram postos. Por mais desencanto que houvesse em Glauber e em Chico, havia um encanto revolucionário que corria ao lado, pronto a ser liberado.

***

A transição da ditadura para a democracia na década de 80 deveria ser um momento luminoso na vida brasileira. E, efetivamente, o movimento das “diretas já” parecia indicar a retomada da esperança perdida durante os mais de vinte anos de repressão militar. A guerra fria esmaecia com o lento colapso do império soviético (o engodo revolucionário soviético), o mundo parecia caminhar para a libertação do terror atômico e o Brasil do terror político. No entanto, não havia nenhuma utopia, nenhuma alternativa, ou melhor, para os países pobres sobravam duas alternativas: a disciplina social cidadã e mercadológica que levaria ao desenvolvimento nos moldes do Primeiro Mundo (o primado da classe média) ou a continuação do obscurantismo subdesenvolvido, da miséria material, invejando e desejando o conforto da vida classe média. Os roqueiros não gostavam de nenhuma das duas alternativas: era um impasse. E eles não vislumbravam nenhuma saída para ele. Estavam presos nos próprios termos do impasse, nenhuma fuga construtiva parecia possível, restava-lhes um niilismo resignado. Tornaram-se rancorosos, melancólicos, moralistas sem moral, auto-destrutivos, aidéticos drogados, sombrios. Ou então foram tomados por uma alegria frívola e burguesa, como Kid Abelha e Léo Jaime, como boa parte da música dos Paralamas e Titãs em sua fase inicial e mais recente.

***

A face alegre do BRock não tinha muito a ver com a alegria tropicalista, solta e debochada, a alegria não burguesa de liberação dos sentidos, o riso contracultural do artista sem lenço e sem documento contra a sisudez da tradição, família e propriedade, o riso antipuritano e carnavalesco do malandro. A alegria dos roqueiros de 80 foi o prolongamento do riso classe média da Jovem Guarda, mas uma continuidade mais profissional, mais bem medida, inserida num aparelho de mercado infinitamente mais eficaz. Era o prenúncio da alegria do axé, da música sertaneja urbana, do pagode, aquele riso e aquela sensualidade que os agentes do mercado descobrem nas margens bárbaras da sociedade (sons afro de Salvador, música caipira, samba do morro), testa nacionalmente e, se “pegar”, transforma em produção industrial, em onda de música-mercado.

Mas quem são estes agentes de mercado que descobrem o som bruto das periferias, adestram-no para uma alegria estéril de propaganda de cerveja e o trazem para o centro, ecoando-o depois por toda a sociedade? A imagem que vem imediatamente à cabeça é a do produtor cínico da gravadora, o homem do mercado que corrompe aos artistas da periferia. Mas o próprio artista da periferia já está corrompido e em suas veias estéticas já corre o sangue do capital, o desejo de sucesso, a vontade de transmutar o som bruto de seu grupo, de sua região, de sua periferia, em hit, em sonoridade capaz de aglutinar e magnetizar as massas em torno dele. O artista já é um agente de mercado. Mas não só o artista. Não são os artistas mal intencionados em comunhão com o produtor cínico que constituem os agentes de mercado que, por sua vez, manipulam as massas ingênuas, impondo-lhes os clichês musicais. Do lado das massas há um desejo pelos clichês, um vontade de serem magnetizadas pelos ídolos, enrabadas pelos agentes, as massas querem o alegria estéril da canção comercial, querem cultuar o perfeição do hit, a capacidade do artista de produzi-los ano a ano: elas querem ser demarcadas pelos agentes, elas são os demarcados: as massas magnetizadas também são cínicas.

A tarefa dos agentes, então, não é a de enganar as massas, de impor a elas as canções-clichês, mas de verificar quais canções-clichês se ligam melhor ao desejo das massas, como elas querem ser enrabadas (pelo axé, pelo sertanejo, pelo rock oba oba, pelo pagode?).

***

A face sombria do BRock percebeu isto também, esta face frívola e mercadológica do próprio rock, e se tornou mais sombria ainda, mais triste e niilista, mais auto-destrutiva. Pois esta alegria frívola era a ponte para a absorção da revolta na máquina de mercado, para a transformação da ingenuidade adolescente e dos devires negro e mulher do rock na seriedade profissional do macho adulto branco, tudo o que os roqueiros esconjuravam. Toda a eficácia técnica e comercial que eles odiavam e da qual fugiam desesperadamente com o seu som tosco e ingênuo era reposta pelo mercado da música, pela música como mercado, que absorvia o rock pelo seu lado alegre e frívolo. E mais, que tornava o modelo comercial do BRock um protótipo para futuras ondas sonoras que viriam: sertanejo, pagode, axé, funk carioca etc.

E a face sombria do rock se sentia cada vez mais impotente, cada vez mais sombria e rancorosa. Restava-lhe a morte, seja consubstanciada na morte física dos roqueiros que a levaram ao extremo patético (a morte de Renato Russo e de Cazuza), seja a morte da rebeldia em bandas como o Paralamas, Titãs e RPM/Paulo Ricardo, que aderiram de vez à alegria frívola, seja o caminho para a clandestinidade musical, longe da mídia, caminho de Lobão e de Humberto Gessinger (o abandono das massas por meio de uma morte midiática, que se torna a passagem para uma vida criativa clandestina).

***

O agente, o capitalista que corre nas veias dos produtores, dos músicos, dos homens de negócios das mídias, enraba as massas, é verdade (como também é verdade que elas gostam de ser enrabadas). Eles executam um admirável trabalho no campo da canção, uma coisa perfeccionista de uma eficácia crescente: na execução de shows cada vez mais pirotécnicos, na composição de hits estrondosos, na distribuição, na gravação. A indústria cultural elevada a estado de arte gerencial. Por que fazem isto? Pela fama, pela vida confortável que o dinheiro pode lhes dar, pelo prazer de se sentir no centro do vórtice musical das massas, pelo interesse, enfim? Sim, fazem pelo interesse, porque querem estar por cima, porque querem dominar, enriquecer. Mas há algo mais, algo mais decisivo. Há também um prazer em fazer bem feito, o amor desinteressado, não pela canção em si, mas por este mecanismo músico-mercantil, pela máquina da indústria cultural, um prazer em atingir a perfeição dentro dos padrões desta máquina ou, como diz Deleuze no Antiédipo “um amor desinteressado pela máquina social pela forma de poder e pelo grau desenvolvimento por si mesmos (...) Uma espécie de arte pela arte na libido, um certo gosto pelo trabalho bem feito, cada um no seu devido lugar, o banqueiro, o chui, o soldado, o tecnocrata, o burocrata, e porque não o operário, o sindicalista...” e também o roqueiro, o pagodeiro, o público, o produtor, o capitalista da mídia. É aí que Deleuze diz, com razão, que o próprio capitalista, o próprio agente não trabalha apenas para o seu interesse, mas principalmente para perpetuar a máquina capitalista, trabalha para o desejo da máquina, sente prazer em ser uma peça dela, em ser enrabado por ela tanto quanto as massas o sentem. Agentes e demarcados, artistas, produtores, capitalistas, massas, são peças trabalhando, com alegria, volúpia e eficácia para a máquina da indústria cultural, para o mercado pop.

***

E a face sombria do rock fica cada vez mais degradada, mais vazia, ela não deseja mais nada que não seja o vazio. A energia adolescente, negra, feminina do rock se debate melancólica e niilista ou se transmuta em alegria frívola conectada na máquina de mercado. A face sombria do rock converte toda a sua juventude, negritude e feminilidade em desejo de morte e se torna máquina de auto-aniquilação. Sua única alternativa é a clandestinidade: passar despercebida das massas, descobrir uma nova energia nas sombras, nas sobras, nos escombros de uma sociedade sem utopias.

***

A alegria frívola do rock é uma ponte para o mercado, para o iê iê iê classe média das propagandas de televisão e o prenúncio das ondas do sertanejo, axé e pagode. Mas sua revolta rancorosa e melancólica também é um excelente negócio, pois ela constitui o nicho próprio do rock, uma tristeza européia que permeia os adolescentes de classe média brasileiros. Não é à toa que a banda das bandas do BRock é a Legião Urbana de Renato Russo com sua atmosfera cinzenta, sua vontade de morrer, sua rebeldia que se debate no vazio.

(continua)





Michaux


Apresentação e tradução: Nereu Afonso da Silva


Poteaux d´angle, de Henri Michaux, cuja edição completa é de 1981, é composto de uma série de preceitos, aforismos e outros ‘conselhos meditativos’ destinados a um suposto ‘você’.

Livro tardio, de quando o poeta belga beirava e ultrapassava seus oitenta anos, tem o perfume moralista daquelas máximas que, de Epicuro a Nietzsche [para evocar apenas um pedaço do cenário ocidental], aparecem de tempos em tempos em nossa literatura para complementar, contrariar, fragmentar — e por vezes dinamitar — o que de fixo, austero e uno se pretende impor. Poteaux d’angle ensina [se é que ensina] contra o ensinamento; traz bagunça a certos lugares, sobretudo aos comuns; corre naqueles sulcos de anti-sabedoria que deságuam, vejam vocês, em outra-sabedoria; martela mestres e dispensa discípulos; é escrito com sintaxe iluminada por escritor nunca realizado, nunca estabelecido e nunca claro, porém claro!

Os doze fragmentos abaixo traduzidos foram pinçados no volume de bolso de Poteaux d’angle, [Poésie/Gallimard, Paris, 1981].

***

O pensamento, antes de ser obra, é trajeto.

***

Se você é um homem designado ao fracasso, não fracasse, contudo, de qualquer jeito.

***

Não, não, não adquirir. Viajar para se empobrecer. É disso que você precisa.

***

Lembre-se: aquele que adquire, a cada vez que adquire, perde.

***

Aconteça o que acontecer não embarque nessa — erro supremo —, não se ache mestre, nem mesmo um mestre de más reflexões. Há ainda muita coisa a ser feita, muita, quase tudo. Sua morte colherá um fruto ainda verde.

***

Sendo múltiplo, complicado, complexo e, aliás, fugitivo — se você se mostra simples, estará trapaceando, mentindo.

Você é assim.

***

Faça, ao menos, algum esforço de sinceridade em vez de dissimular-se na moda da época ou em um desses grupos onde, por amizade, ingenuidade ou esperança, a gente se une.

***

O estilo, essa comodidade em instalar-se e em instalar o mundo, seria isso o homem?, seria essa aquisição suspeita que elogiamos no escritor que com ela se satisfaz? Seu pretenso dom vai grudar-lhe, esclerosá-lo surdamente. Estilo: (mau) sinal da distância imutável (mas que poderia ter sido, ou deveria ter sido); distância onde equivocadamente ele permanece e mantém-se em face de seu ser, de coisas e de pessoas. Bloqueado! Ele precipitou-se em seu estilo (ou o procurou com afinco). Em troca de uma vida de empréstimo ele abandonou a totalidade, sua possibilidade de mudança, de mutação. Não há do que se orgulhar. Estilo que se tornará falta de coragem, falta de abertura, de reabertura: em resumo, uma enfermidade.

Trate de escapar. Mergulhe suficientemente profundo em você para que seu estilo não possa mais continuar.

***

Em um pasto estreito pastavam uma vaca e um cavalo. A comida é a mesma, o lugar é o mesmo, o dono deles é o mesmo, o rapaz que os trará para dentro é o mesmo. Entretanto, a vaca e o cavalo não estão “juntos”. Um come o pasto de um lado, o outro do outro, sem se olhar, movendo-se lentamente, nunca muito próximos e, se isso acontece, eles parecem não perceber.

Nenhum comércio eles não se interessam um pelo outro mas também não agressão, querela, nem mau humor.

***

Mais vale permanecer no horripilante do que cochilar no satisfatório.

***

Ele se atrapalha ao dobrar os joelhos, seus passos não são lá tão grandes, mas é ele quem melhor recebe os raios de sol, ele que nunca foi discípulo.

***

Não se entregue feito um embrulho amarradinho. Ria com seus gritos; grite com seus risos.

***

Aprenda com parcimônia. Uma vida inteira não basta para desaprender...

***

Nereu Afonso da Silva nasceu em São Paulo, em 1970. É o autor de Correio Litorâneo, Editora Record, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, na categoria contos. Formado em filosofia pela USP, enveredou para o teatro. Foi um dos Doutores da Alegria (palhaços em hospitais). Hoje vive na França, onde escreve, atua, leciona e dirige para o teatro.

______________________________


Metáfora, Essências e Verdade na Narrativa de Marcel Proust: Deleuze e Ricoeur – Uma conciliação

Carlos Augusto Silva

Se fôssemos procurar uma imagem para ser símbolo do romance Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, talvez a mais apropriada seja a do narrador ainda menino tomando sua xícara de chá de tília, mergulhando nele o bolo Madeleine, descobrindo, através do que aquele sabor lhe revela, o sentido de toda uma vida, que será, por conseqüência, um dos sentidos de toda a sua obra. Para Proust, mais que uma coisa separada do mundo, ou um componente dele, o Tempo é, em si mesmo, como o é para Santo Agostinho, uma realidade que nos contém, e sem descobrir seu sentido torna-se impossível descobrir qualquer outro, no recorte pragmático, ou num mundo de imaginação e símbolo. Em Busca do Tempo Perdido, a mais tensa fábula sobre o tempo já criada, encontra, em suas milhares de páginas diversas vertentes de interpretação. Uma imensa lista bibliográfica estende-se, na qual se enfileiram os maiores críticos literários, os maiores filósofos contemporâneos, os maiores autores, ora discutindo a sátira social, ora as questões metafísicas, gnosiológicas e ontológicas do tempo em suas personagens. Dentre os autores célebres que versaram sobre o romance de Proust estão os filósofos compatriotas do autor, Paul Ricoeur e Gilles Deleuze. Se a obra analisada os une, as respectivas interpretações da mesma, em parte, os afastam.

Deleuze concebeu uma obra toda para discorrer sobre a série de Proust. A ela deu o título de Proust e os Signos. Ricoeur concebeu um tópico, intitulado “Em busca do tempo perdido: o tempo travessado”, pertencente à sua obra Tempo e Narrativa, no tomo II, dedicado à análise do tempo e da configuração narrativa de ficção. Deleuze, para sua análise, dispõe de cento e oitenta páginas. Ricoeur de apenas trinta, mas com elas vai além da interpretação de um só aspecto, como faz Deleuze centrando no debate sobre os signos: Ricoeur utiliza as disposições do autor de Proust e os Signos ao mesmo tempo em que discorda parcialmente delas, e propõe uma análise temporal que ganha sentido numa relevância da narrativa enquanto configuradora de sentido, numa divisão de perspectivas óticas a respeito do que viria a ser tempo perdido e tempo redescoberto, da tomada do aspecto estilístico, para ele unido a uma questão de ângulo pelo qual se enxerga, e modos de impressões e sensações a comporem a unidade ficcional da obra.

Para Deleuze, Em Busca do Tempo Perdido não versa sobre o Tempo, mas sim sobre a verdade. Diz ele no primeiro parágrafo de sua obra: a Recherche, a busca, não é simplesmente um esforço de recordação, uma exploração da memória: a palavra deve ser tomada em sentido preciso, como na expressão ‘busca da verdade’. Depois diz mais: a obra de Proust se baseia não na memória, mas no aprendizado dos signos. A afirmação parece o tanto quanto extremada para qualquer leitor de Proust, principalmente para aqueles que percorreram os sete romances em sua composição circular, que exige uma segunda leitura para se revelar a sua inteligência estrutural.

Ricoeur rebate tal afirmação sem desfazer da importância basilar dos signos e de seu aprendizado para a composição do livro: ao contrário, tenta mediar, ponderar sobre a afirmação de Deleuze e provar que a experiência do aprendizado não desqualifica o romance como obra cujo tema central é a experiência temporal. A tese de Deleuze, para Ricoeur, só ataca a confusão que se faz com as revelações da última cena do sétimo volume, O Tempo Redescoberto, com as ações da memória involuntária, já que as revelações tidas ali se referem a um aprendizado longo, que engloba toda uma visada no enredo e lhe confere sentido singular, enquanto que as revelações da memória involuntária são breves, fugidias, e centradas numa única relação metafórica.

A grande questão portanto é a do aprendizado longo e a do aprendizado involuntário serem tempo perdido na medida em que a obra de arte, revelada na última cena, torna os dois caminhos do aprendizado parte de uma coisa só, enquanto que o singular passa a ser a revelação da extratemporalidade artística, reservada somente à literatura. Mudam assim as significações temporais dos signos. Diz Ricoeur: “É o caráter excentrado dos signos da arte com relação a todos os outros que gera essa historicidade singular”.

A descoberta da dimensão eterna da obra de arte, que para Proust salva a vida da força do tempo por eternizar os sentidos, estabelece uma relação tensa com o aprendizado dos signos, que é uma experiência temporal. Portanto podemos concluir que se Em Busca do Tempo Perdido é sobre o tempo, o é na medida em que não se filia ao aprendizado breve da memória involuntária e nem ao aprendizado longo dos signos, mas coloca a relação entre esses tempos com o tempo da eternidade, o tempo da obra de arte, que salva ambos os tempos de si mesmos através de sua escritura. Roland Barthes já se atentava para esse aspecto escritural, nos Novos Ensaios Críticos diz: “La Recherche du Temps Perdu é a história de uma escritura.” E um dos aspectos dessa história da escritura que Barthes aponta é o tempo, por exemplo, o tempo que o narrador não sabe se terá para escrever sua obra, haja vista que os signos da morte se espalham nas faces envelhecidas das personagens que rodearam sua vida, avisando-o de que a sua morte também se aproxima, e essa decisão da escritura é também um rito de iniciação, na medida em que nasce um desejo, uma perspectiva de fracasso, que seria não ter tempo para realizar a obra, e a assunção, de quem acaba de apresentar, em parte sim, e em parte não, no seu final o seu começo, ou seja, a obra que escreverá acabamos nós, de ler.

Ricoeur avança, tenta demonstrar sua tese agora arraigada na afirmação de que Proust estaria aprofundado nos ideais do romantismo alemão, por Schelling, naquilo que ele chamava de “a identidade, isto é, a supressão da divisão entre o espírito e o mundo material, sua reconciliação na arte e na necessidade de fixar a evidência metafísica com o intuito de lhe dar forma durável e concreta na obra de arte.”

Para Ricoeur, a questão não é saber como a filosofia da unidade perdida pôde ser diluída no romance, mas sim como a busca do tempo perdido pôde recuperar, por meio da narrativa de ficção, a questão da unidade, cara ao romantismo alemão. A resposta está no conceito de pensamento, que vem da Poética de Aristóteles, sempre presente em qualquer discussão séria a respeito de obras literárias. Por meio da análise temporal do conceito de pensamento num plano aristotélico, logo introduzida dentro de um enredo, cuja transitoriedade de uma cena para outra se dá no tempo, poderemos verificar como o ideal romântico é recuperado por meio da narrativa.

Essa questão do pensamento é para Ricoeur ponte para falar de um ponto substancial da verificação de Em Busca do Tempo Perdido como fábula sobre o tempo: a questão do narrador. Ele o divide em dois: narrador e herói, que são figuras distintas nessa perspectiva de análise. Para Ricoeur, o herói é quem vivencia, no plano externo e interno, as ações do enredo à medida que elas acontecem, mesmo quando volta ao passado, já que até mesmo a volta ao passado inclui uma compreensão presente que visa a uma explicação futura. O narrador por sua vez não avança, pois já sabe tudo, tem caráter onisciente, tem liberdade de trânsito dentro da obra, como diz Ricoeur, “ele a sobrevoa”. É portanto a voz responsável pelos avanços e retornos na narrativa que a costuram internamente. Essa divisão, para Ricoeur, unida à questão do pensamento aristotélico tal como está definido em sua Poética, pode responder de forma definitiva à questão de como a narrativa pôde recuperar essa unidade perdida à qual o romantismo alemão se refere. Para isso recorre à cena final, na qual a revelação do extratemporal se descortina.

Antes de chegar à última cena, que é uma visita ao palácio dos Guermantes, a voz do narrador é quase imperceptível. Na recepção final é tão mais alta que a do herói que se confunde com a voz do autor, rompendo a barreira entre Marcel personagem e Marcel Proust autor. Na verdade Marcel Proust incorpora suas concepções às do narrador, fazendo ali quase que sua poética, suas regras da composição artística. Juntos, autor e narrador acompanham a experiência do herói, que eles esclarecem juntos. Nessa junção se dá a unidade perdida, a identidade salva pela arte, almejada pelo romantismo.

Em Busca do Tempo Perdido se caracteriza no imaginário coletivo como uma obra de grande dificuldade de leitura. Primeiro por seu tamanho, constituindo mais de duas mil e quinhentas páginas, depois por seu número de personagens, que ultrapassa o número de duas centenas, pela sua variedade temática, suas referências enciclopédicas a obras de arte da pintura, literatura e música, pela linguagem, mas principalmente pela sua organização temporal, que sem pudor algum faz uso dos avanços e retrocessos em toda a sua extensão. Ricoeur deitou vistas sobre esse aspecto singular de organização temporal proustiana, e determinou em qual ponto da obra Proust credencia seu livro a poder estabelecer-se singularmente nesse aspecto.

No primeiro volume, O caminho de Swann, Proust abre espaço para uma narrativa intitulada Um amor de Swann. Nessa narrativa, um narrador de terceira pessoa aparece, pois agora os fatos narrados se deram antes de seu nascimento. Para Ricoeur ela basta para que o romance possa romper com a unidade cronológica de tempo. Essa narrativa é também um dos pontos que reforçam a obra de Proust como fábula sobre o tempo. O vínculo entre esta narrativa e a da Recherche, que é a história de uma vocação que desemboca numa escritura, se dá por via das lembranças associadas, como a frase musical do compositor Vinteuil, que é, para Swann, similar à experiência de memória involuntária do chá, e similar à experiência da última recepção. Ela liga de forma simétrica e harmônica Um Amor de Swann à narrativa como um todo. Ali Proust demonstra toda a tônica estrutural de sua obra, que ele chamava de grande catedral.

A grande arma para combater a proposta de Deleuze de que Em Busca do Tempo Perdido não é uma fábula sobre o tempo está, em Ricoeur, em duas frentes. Uma, o conceito de tempo redescoberto e tempo perdido, outra, a idéia de metáfora, que transcenderia ambos os conceitos, para ser o ideal supratemporal. Franklin Leopoldo e Silva, em “Proust e Bérgson: tensões do tempo”, sem dar-lhe nome fala desse supratemporal:

Deleuze mostrou que toda a Recherche pode ser lida como um longo exercício de decifração de signos que a frivolidade e as intermitências oferecem ao narrador. Isto é correto, desde que acrescentemos que a decifração depende de uma chave hermenêutica que só aparecerá no final do romance, quando a revelação afinal permitir avaliar a distância que separa e aproxima o tempo perdido do tempo redescoberto.

Essa distância que aproxima e separa é o supratemporal, do qual trataremos à frente.

Uma cena que Ricoeur escolhe para demonstrar o conceito de tempo perdido / tempo redescoberto é aquela na qual a figura de Charlus, personagem emblemática de Em Busca do Tempo Perdido, que, oscilando entre a imponência e a indecência, entre o nobre e o satírico, entre o dramático e o cômico, chega ao final de forma decadente. Apopléctico, a sua imagem dá a senda da morte a Marcel, causada pelo tempo. Como um aviso, uma série de experiências sensíveis o acomete. Uma delas é a frase musical de Vinteuil, que a arte sintetizou, o único signo que prometia algo no futuro. Tudo está envolto num emblema de felicidade. Sem saber de onde vinha essa felicidade no início da obra, quando bebe o chá, agora ele sabe: vem da união casual de duas impressões parecidas entre si, mesmo diante da distância temporal que havia entre elas. O enigma que ficou do chá não é a memória involuntária, esta de princípio revelada, e nem o seu acaso salvador: é que a alegria da impressão do passado seja semelhante a uma certeza que o faria capaz de tornar-se indiferente à idéia de morte, pois agora, revelado isso, a morte lhe é indiferente por poder vencê-la transpondo essa sensação de contentamento numa obra de arte, que a tudo eterniza, com sua vocação agora redescoberta junto com o tempo e com o nascimento da escritura. Esse sentido se une definitivamente com a concepção de Roland Barthes, e é nessa definição que a Recherche é a história de uma escritura. Essa é a medida do extratemporal, que não é, num primeiro momento, que seria o da revelação, a obra de arte em si, mas a arte enquanto algo abstrato, que preexiste a nós, mas está em nós e necessita de ser descoberta. Num segundo momento, o da realização, o extratemporal passa a ser o momento da feitura. Mas como uma narrativa temporal de ficção não versa sobre o que não aconteceu no plano da sua história, e como não é papel da Literatura e nem de nenhuma narrativa séria, exceto a de algumas ciências que fazem prognósticos sócio-econômicos-conjunturais, fazer conjecturas para o futuro, é no momento do escrever o que ainda não existe que o narrador-herói despede-se do leitor.

Nasce aí o problema maior: a dificuldade de fazer realizar-se o extratemporal na obra, e de estabelecer o que é o tempo perdido. Dessa solução é que nascerá o supratemporal, e a solução a este problema tem sua resposta na metáfora. Gerard Genette, grande nome da narratologia, em seu Figuras, fala, em “Proust Palimpsesto”, da metáfora como algo que permite falar de coisas separadas no tempo trazendo à baila suas respectivas essências.

Estamos diante de dois objetos: a realidade única, que é a matriz do fato a ser recordado, e a lembrança. Por via da metáfora dois objetos diferentes são levados ao plano de suas essências, que, tendo suas identidades íntimas preservadas pelo tempo, são posteriormente reduzidas às contingências, que conduzirão a partir dali, a vida, os dias, unindo-se também ao caráter contingencial da memória involuntária, sempre dependente do acaso.

Outro aspecto que irá compor a idéia de tempo redescoberto e de extratemporalidade cuja finalidade há de desaguar numa supratemporalidade, é a do reconhecimento, conceito também herdado da Poética de Aristóteles. Para o filósofo grego o reconhecimento é componente indispensável para o efeito desejado dentro da tragédia. Seria por demais forçado trazer esse conceito do texto aristotélico tal como é concebido na análise de peças gregas. Aqui ele funciona no sentido literal: o reconhecimento propriamente dito, como um símbolo, um signo da temporalidade central que Deleuze tenta negar a fim de sugerir uma sobreposição do signo a ela. Reconhecer é admitir que a pessoa que conhecemos já não é mais a mesma, por isso une-se a idéia que tínhamos dela do passado e a visão do presente, fazendo assim a junção de uma perspectiva de essência, que atravessa toda a obra de Proust. Diz Ricoeur: “a metáfora é para a ordem do estilo o que o reconhecimento é para a ordem da visão estereoscópica.” Na medida em que se resolve o problema do supratemporal, estamos diante do problema da condução dessa idéia, que só pode emergir pelo estilo. Em Proust, estilo é visão. Diz ele nas últimas páginas de seu romance: “pois o estilo para o escritor como para o pintor, é um problema, não de técnica, mas de visão.”

Assim, estilo para Proust é um instrumento de leitura dos signos que exigem aprendizado, que é a experiência do tempo redescoberto, coroada por um reconhecimento: a marca do extratemporal sobre o tempo perdido. Mas essa visão se aplica ao aprendizado total, que apresenta erros, que adquirem sentido de um desconhecimento. Por isso o jantar que se segue à meditação reveladora não é marcado só pela morte, mas também pelo desconhecimento, quando o narrador, por exemplo, não reconhece Gilberte, filha de Swann pela qual se apaixonou na infância. Porém, depois disso, o seu último reconhecimento é a filha de Gilberte (uma burguesa) com Saint-Loup (um aristocrata), que fecha um signo de mundanidade que percorre toda a obra, unindo os caminhos inconciliáveis de Guermantes e de Swann, que são o da burguesia e o da aristocracia francesa.

Ricoeur finaliza sua análise refletindo a grande representação temporal que nos rodeia e que corrobora também com Santo Agostinho: “o tempo perdido está contido no tempo redescoberto, mas também que é finalmente o Tempo que nos contém.”

A grande contribuição que podemos tirar de todo o trabalho de Ricoeur, que em suas trinta páginas de Tempo e Narrativa esmiúça a obra de Proust, e o faz de modo mais vertical do que Deleuze em suas cento e oitenta páginas de Proust e os Signos, é a de que não há tema isolado em Proust, que tal como os arcos de uma catedral gótica, na qual Proust se inspirava para falar de seu livro, tudo se une, se completa, compondo um todo inseparável, na qual só a paciência de várias leituras cuidadosas, e de uma disposição inspirada na que Proust teve para compor seu grande livro, podem revelar os segredos guardados na sua narrativa plena de sentido, carregada de densidade, pronta para vencer o tempo, e para, mais que explicar a vida, ser maior que a própria vida.


Carlos Augusto Silva colabora costumeiramente com o Jornal Opção e é bacharelando em Literatura pela Universidade Federal de Goiás, onde desenvolve pesquisa pelo programa do PIBIC/CNPq sobre Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.



______________________________




NOTAÇÕES

Tenho ouvido que o título às vezes estraga o poema, principalmente quando se fala de produção poética contemporânea, em que ocorre de o elemento poético se instaurar de forma súbita, perfurante, por isso, direto ao nervo da percepção. Os textos de Dheyne de Souza, os quais venho acompanhando na internet, parecem-me confirmar isso com muita substância. O seu poema, sem título, se inicia dando a idéia de conteúdo preexistente: um antes que é interior, e a estocada desse invisível em palavras, é quando o interior se torna palpável, imagem, não carecendo ser nomeado. Por isso: “em que deleite me pões flor pendida” fascina, porque é o silêncio tomando forma para os outros sentidos.

Assim, o poema se desenvolve, jamais ancila de um nome, mas participante de todo um vocabulário invisível que o preexiste, e de onde fora capturado — isso a que chamamos realidade. Mas o real se nos apresenta fragmentado, de difícil captação, daí a feliz escolha da poeta de transformá-lo em colagem, usando-se, dessa forma, da técnica de composição plástica moderna. O vocabulário, que antes formava o conteúdo de um determinado espaço, ainda não codificado, se transforma em verso, e mais, com o condão de juntar contigüidades.

A preferência por versos que lembram longas lâminas afiadas expõe, ao leitor, uma beleza cortante e de diferentes profundidades, das quais se toma conhecimento da agudeza no ato da leitura. Toma-se conhecimento sem ser necessário entendê-las de forma linear. Não fosse assim não se faria arte, mas simples frases conotativas.

Para um leitor desatento, impermeável à linguagem da poesia, o poema em questão sugeriria um caos, algo sem lógica. Contudo, é nessa aparente confusão que está uma de suas forças. O fato é que os versos estão profundamente relacionados ao mundo presente, seja pela instabilidade do ser “tão chão fumaça”, ou pela busca e tentativa de aproximação do “outro”, quando: “não vês que já te escapas meu lasso” (lasso, também ambivalência fonológica, laço), e, ainda, a possibilidade de se ferir nesse contato que é, a um só tempo, aproximação com um ser ingênuo (“criança”) e dúbio, disfarçado: “temo-te espinho pétala”.

Não se sai do poema de Dheyne sem, no mínimo, uns arranhões líricos dessas lâminas decididas. Contudo, não se sabe que imagem nos feriu mais de beleza, porque profusas e rápidas. Fica, depois, a sombra do poema repercutindo na memória. O rastro de um corpo pelo vácuo: “já passas da hora tem/pó”.


Edmar Guimarães

(autor dos livros de poemas: Caderno – 2000 – e Desenhos de Sol – 2002 –)

edmar.gl@celg.com.br