Número 8


movimento primeiro: os motes

Ruído branco nunca foi uma revista temática e nunca primou por uma edição dessa natureza. Nossa quarta edição teve um quê de tema, mas foi por mero acaso. Talvez por isso seja a melhor de todas, até então. Esta, de agora, no entanto, é a melhor edição de ruído branco. Ela é temática. Chama-se: ruído branco azul da Prússia. Comemora os vinte anos da tragédia do Césio 137, em Goiânia. Comemora porque, no Brasil, reverenciamos a morte com festa — quiçá para superá-la. Seu primeiro mote vem de “Fe4[Fe(CN)6]3”, texto de Patrícia Ferreira Martins, em Patchwork, que acompanha o quadro pintado por ela durante a tragédia de 1987. A descrição crua do texto certamente é remédio para a dor desta actante presente no cenário da morte. E como se fosse pouco doer sozinha, ela se acompanha, lá nas Contribuições, de João Colagem, com suas duas peças de hálito azul prescrito pelo silêncio de desaparecer. O mote seguinte vem do “Capítulo I” do romance em andamento A nervura da morte e Outros amores, de Wesley Peres, em Vaca de Nariz Sutil. Neste, Leide das Neves é instalada para a urdidura mais dolente de nossa memória em seu caixão de chumbo e tamanho sem fim. Nem por isso nem pelos aquilos, esta é nossa melhor edição. Ela o é porque adoecemos de tão punhal que é o azul da Prússia pintado na ausência dos lábios.

movimento segundo: os percursos

“Azul feito o céu de um dia de inverno”, de André de Leones, em Mieloma de Ocasião, tem o poder de voz de uma criança perturbada pelo celeste frio da morte. Essa criança, ele mesmo, constrói um mundo teratológico a partir das lacunas adultas dos pais. Noutro fio, reconstruindo o título de “Para Lennon e McCartney” (Lô Borges – Fernando Brant – Márcio Borges), e retomando Lô e aquele que consagrou a canção, Milton Nascimento, Nilson Pereira estréia em ruído branco com o conto-crônica “Para Borges e Milton”, em VIVER DÓI!. Nisso, ele nos convoca ao espanto do enterro de Leide das Neves, cujo fim foi proteger as pessoas, mas não havia proteção ali, porque “a morte está no ar”. jamesson Buarque, na coluna página p., segue essa mesma poesia de morte, azul, crônica e reminiscência em “Morrer é ficar azul Ou o pó é o formato da morte”. A reminiscência em formato de crônica é vital, ainda, em Êxtimo, pela voz em que Cristiano Pimenta se enreda, movido como presença pertencida no cenário azul da Prússia, de Goiânia.

“Crônica de ferro e raio” é também de uma estréia, a de Nereu Afonso da Silva, em Gargântua. O autor alinhava, como formulasse um ideograma, a espantosa descoberta da cinematografia pelos ribeirinhos do Níger com a tragédia do Césio 137. O texto nos pesa em azul, reminiscência e morte. O mesmo pesar é o do peso do poema-crônica de Wilton Cardoso, em Neuropop. O colunista canta desencantado diante do programa político de morte pelos aparelhos de controle do sistema brasileiro e ocidental de medir a vida na medida de baixas aceitáveis. Daí salta aos ouvidos o labor poético e musical de Paulo Guicheney, em C-dur, com “Cidade com menino e ferragista amarela, op. 1987”. E se somos surdos para não conseguir ouvir a crônica e reminiscência do músico, podemos fatalmente sofrer o peso da morte entre os intervalos dos acordes, no jogo que o próprio músico me ensinou: CÉSio: C significa dó, E, mi e S, mi bemol. Posso, afinal, dizer que tantas vozes distintas em uníssono são, as fagulhadas breves e longas, imaginadas pelos dedos de Dheyne de Souza, em Hexercício Íbrido, com “Poema-ruído”, com aquele sabor de gilete cravada para onde o pêlo não finca a pele. E não pensem que exagero, quando acrescento, agora, que, na Cova do Corvo, Frederico Assunção ficou tão doente de ferrugem e pavio fremindo nas veias, que sua peça me carcomeu na escuridão, como se não fosse possível mais flores nos quintais. Tomara que todos vocês adoeçam também.

movimento terceiro: os escapes

As Contribuições nos salvam. Contribuam, leitores-nautas! Ou toquem um tango argentino, para morrerem depois dos oitenta e dois. Além do já citado João Colagem, Henrique Rodrigues, poeta e outras coisas menos desnecessárias, aparece com “Chão de Ícaro” e “Fotografia”, desenhando, embora não no tema, o mesmo gosto de sangue da reminiscência da morte em nome da ausência que parece de tato. O outro caso, é uma peça de Estércio Cunha, sobre quem devo convocar a voz de Paulo Guicheney: “Sobre o Estércio, posso dizer que é um dos maiores compositores brasileiros. E se não é conhecido de todos, é porque o Brasil é um país de surdos. ‘Música para soprano, flauta e violão n° 2’ é uma pequena obra-prima. É raro escutar tamanha simbiose entre texto — e o texto é do próprio Estércio — e música”.

p. s.: acabo de descobrir um condão: isto não é um editorial, é um prefácio. detalhe: observem a malfeitura do estilo pela iteração doentia da palavra “morte”. definitivamente — me diz o condão —, eu nunca fiz um editorial para ruído branco, só fiz prefácios.



jamesson buarque



Gargântua



Crônica de ferro e raio


I.

Jean Rouch, documentarista e etnógrafo francês, contou que diante de um suspeito pedação de ferro, as pessoas foram se amontoando e eram mais de três; chegaram intrigados, coçando o queixo, homens e mulheres com uma espécie de intuição lhes assegurando que a partir daquela máquina de metal atingiriam os mortos. E, em certo sentido, era isso mesmo... Faltava-lhes somente o especialista, aquele que abriria o ferro, que extrairia da estranha máquina o mistério. Então foi assim: durante toda a preparação não deram sequer um ai, estatelaram-se ali, olhos voltados para o centro do metal, ignorando gentilmente a surpresa pairando perto. O especialista chegou. E realmente houve uma surpresa: de repente o feixe, e em seguida todo aquele “ô”, em coro. Nunca tinham visto nada que se assemelhasse a tal coisa. Do nada, a máquina escancarada e do seu avesso, mais precisamente do osso do avesso, expandia-se um raio azul de dentro para fora do metal. De início, bem no início da emanação, aqueles homens e mulheres não sabiam para onde olhar, mas muito rápido, menos de vinte segundos depois, estavam todos voltados para o lugar certo, para aquele ponto fixo e delirante que lhes invadia as retinas: a tribo toda seguindo o brilho azul que saía do ferro e terminava impactante na mansa lona sustentada por dois galhos da maior árvore da aldeia. Aprenderam que tal tecido se chamava tela e que o pedação de ferro se chamava projetor e que entre os dois equilibrava-se e repousava a imagem do filme, o documentário que o próprio Jean Rouch filmara anos antes e que agora trazia de volta revelado, revelando seus protagonistas, azul do rio, hipopótamos, homens e mulheres dançando, cantando e caçando, muitos deles desaparecidos para sempre. Os espectadores choraram seus mortos e, ao mesmo tempo, segundo Rouch, compreenderam de imediato as sutilezas dos cortes, planos, zooms, degustando pela primeira vez, lágrimas nos olhos e também sorrisos, o prazer da experiência cinematográfica. E isso aconteceu à margem do rio Níger... Muito, muito longe de Goiânia.

II.

Mas um dia inventaram outra história, da qual tenho apenas uma parca e rara imagem vinda de televisor, a antena em “v”, uns chuviscos intermitentes, sempre os mesmos e mais quase nada, numa tela de Jornal Nacional com aquela voz — e isso eu invento ou lembro? — do Cid Moreira, bem melosa, oito horas, boa noite, terno e gravata, hoje, Goiânia, ao vivo, com locuções, palavras e mais palavras misturando melodrama, ignorância, fim de vida em pele azul, publicidade, e no final, depois da cotação da bolsa e dos gols da rodada, uma derradeira palavra: um outro boa noite, assim, vejam vocês, quase inofensivo, preparando a telenovela e deixando no ar [salve-se quem puder!] aquilo de que ninguém nunca tinha ouvido falar: ç-cé-césio, o quê?

Pelo que contaram, ali também aparecia, no proscênio do tumulto, um pedação de ferro, de novo. Mas dessa vez, gente, longe, bem longe do azul do Níger. E o que poderia ser mais atraente naquele metal de ferro velho do que sua aparente ausência de atração? Resposta: — De novo, o seu avesso, o osso de seu avesso, mas dessa vez, gente, dessa vez...



Nereu Afonso da Silva

Nereu Afonso da Silva nasceu em São Paulo, em 1970. É autor de Correio Litorâneo, Editora Record, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, na categoria contos. Formado em filosofia pela USP, enveredou para o teatro. Foi um dos Doutores da Alegria (palhaços em hospitais). Hoje vive na França, onde escreve, atua, leciona e dirige para o teatro. Mantém o blog http://bombyx.wordpress.com.
E-mail: nereu.afonsodasilva@neuf.fr





VIVER DÓI!



Para Borges e Milton

O centro era mais embaixo, mas para a gente chegar lá ainda convinha subir uma pretensa ladeira que permite um atalho íngreme. Não era mesmo uma subida sequer. A gente tem o costume aqui de dizer “sobe por aqui” ou “desce aquela rua lá”. Nem era tão longe assim, as distâncias mais longas davam até mais perto da gente, por causa dos caminhos tortos; se a gente “sobe” por uma das paralelas acaba cruzando aquela de onde se partiu. É como se a cidade tivesse sido construída com base no seu mapa e não o contrário.

Talvez seja complicado, às vezes, andar, querendo chegar onde se planeja, contornando um certo obstáculo, mas não é, não. Quando perguntam desse embaraço, a gente diz que é porque vocês não sabem do lado horizontal; não precisa medo, não; não precisa da timidez; todo dia é dia de viver! A gente ouvia essa canção, desconfiada, meio torta, de olhar de beira, margeando o centro que estava lá embaixo, logo depois de subir aquela rua ali e descendo a outra, a gente estava lá.

Tem hora que o peito da gente dói um pouco, assim sem jeito; é que a gente não sabe o jeito mesmo que o peito deve doer. O ar que a gente respirava já não era mais o que a gente antes respirava mesmo. A gente não sabia que ar que era para gente respirar e então respirava o ar que tinha ali para gente respirar e o ar era aquele. A gente só sabia que não era para saber de muita coisa, ah isso a gente sabia bem, como essa gente.

Essa gente lá no cemitério também não devia saber muito. Mas quando souberam que não devia existir gente para caber em um caixão tão grande assim, cheio de camadas de chumbo e concreto, daí não acharam certo que o caixão ficasse ali, nem debaixo dos devidos sete palmos, mesmo que houvesse mais de sete palmos, sem contar a altura das camadas de chumbo e concreto.

E o que se saberá sobre a morte? Dela se sabe é que se morre mesmo, assim como se sabe que só se vive só. Meu compadre Finado Túlio, esse sabe que viver dói e não sei se é uma dor no peito como a que a gente sente quando respira esse ar que é para gente respirar. Sobre a dor, essa gente sabia que a morta que ali se enterrava ainda mataria mais, mesmo que não soubesse que o que mataria mais era aquele ar, que agora paira, que era agora para gente respirar. Aquela gente tinha subido uma paralela e achava que chegaria em outro lugar senão naquele de onde se partia e para onde a gente também ia, se era descendo ou subindo, meio torto, assim desconfiado, e beirando as camadas de chumbo, margeando o obstáculo de concreto ou contornando a dor do abstrato íngreme, afinal não caberia tanta abstração em caixão tão volumoso!

Mas não era tão íngreme assim, mesmo qualquer morte maligna ou benigna, como a de Ingmar Bergman jogando xadrez, barganhando com aquela estirpe de gente birrenta, pretensa no centro do umbigo da margem de baixo do mundo. A destreza que convinha, a fim driblar a morte concreta, era sugerir-lhe um atalho abstrato íngreme ao xeque-mate.

Seria uma boa saída, não fosse o concreto ali; um caixão grande e redundante mesmo, uma camada de chumbo e concreto a mais redundante mesmo, um peito da gente e mais aquela dor ardente mesmo, ante o ar que a gente tinha que respirar e que não era mais o mesmo.

A gente tenta imaginar como seria tão fria a dor de Túlio de não ter o direito de morrer. Ou a dessa morta das neves que, tendo, não tem onde ficar lady, porque não se pode deixar esse corpo por aí, porque esse corpo é o da gente, é corpo da gente, corpo de gente, em de gente, não é lixo!

A morte espanta a gente, porque deixa na gente o corpo, ainda que seja o corpo mesmo o que morre. Mas se a morte está no ar, então que mal a mais faria a essa gente enterrar esse corpo nesse cemitério, até porque não é o corpo morto só somente o que se quer enterrar. Vai com ele esse envoltório de chumbo e concreto e oxalá fosse também, abstrata, sua alma azul de lady da Prússia em pó espalhado no ar que a gente respira.

Como é longe a Prússia dessas terras da gente aqui! A gente poderia dizer que ela é depois daquela ladeira ali, descendo para o centro. Mas a Prússia é o paraíso íngreme que a gente perdeu, porque lá esse azul da alma da gente não mata ninguém e nem depois de morta a alma prossegue matando azul. Lá nenhuma gente nos nega a parte que cabe desse latifúndio. Ninguém de lá quer saber do que a gente não sabe aqui ou do que a gente deveria saber. Não sabem nem da gente sequer mesmo! Se me perguntassem de lá onde é daqui o centro, a gente não poderia dizer em concreto. A gente não poderia dizer – eu sei, vocês nem vão saberporque vocês não sabem do lixo ocidental; não precisa medo, não; não precisa da timidez; todo dia é dia de viver!

Os coveiros tímidos da Prússia, ou do lado de lá, talvez suspeitassem que houvesse algo de podre no reino da dinamarca, porque enterrar uma lady a certa medida abaixo do chão, assim como o centro era mais embaixo, talvez não fosse certo, talvez fosse complicado, mas não é não. Porque a lady de lá – ou do lado de lá – Lady não é como a da gente aqui. A uma basta decidir a medida dos palmos sendo sete, de cristão ou pagão; vai muito do coveiro ser ou não ser da mão. A das neves daqui da gente não bastariam tantos palmos e as palmas que envolveram a louvação abstrata, nos papéis podres de reino e poderes. Seu sangue azul não real, mas de lá da Prússia, careceria de camadas de chumbo e concreto e câmaras de seu ar expirado a mais de sete-vezes-sete palmos de areia, afora seu nome de Ofélia nos livros que aqui se escreveu de areia da gente ou da terra mesmo.

O livro de areia fechou o paraíso perdido, e lá daqui é distante mesmo assim: roses for Eleanor Rigby. É só jogar uma pá de terra sobre tudo isso torto e não precisa mais temer, porque vocês não verão meu mundo ocidental.

O concreto se faz aqui no que se vê a que se paga. Mas esse azul do ar da Prússia, que a gente não vê além do mapa construído para a gente ver além de lá, que a gente respira, que mata a gente depois que morre, a sete-vezes-sete palmos proibidos nessa parte que não cabe desse latifúndio, mesmo que sob camadas e camadas de areia e chumbo e concreto, mesmo sob as neves de seu nome que esvai no livro dos podres papéis de poderes do reino, e de seus bispos em suas torres, seus cavalos que montam peões, esses lances de azul íngreme em pó a pairar e subir ladeiras e atalhos convenientes, esse azul, mesmo, é que morto vê concreto a gente em pó, como quem sabe, como quem diz e faz: sou do ouro, eu sou vocês; sou do mundo de onde a gente já não era mais nem lixo. A gente era mesmo era essa gente, era do centro mais embaixo.



Nilson Pereira de Carvalho

nilson pereira de carvalho foi inventado à base de amizade com o sol e a lua, desde criança e a fazer histórias com naipes de baralho, como a Alice que não mora mais aqui. Estudar letras ocorreu antes de fazê-lo na UFG, hoje, disserto, busco contrair doutorado em tesão sobre o de Chico Buarque em suas obras. Os documentos rezam goiano, mas, si mesmo, rezo olhano para todas as cidades, do céu ao inferno, que deus as tenham, pois o diabo jaz. São longos os quarenta anos e já vãos tardes quentes a ressecar a pele negra e sangue mofo e frio, qual a vida que faz doer meu compadre, o Finado Túlio, de quem literopsicografo uns poemas aí.
Email: noslinnilson@yahoo.com.br





Êxtimo



Só-depois do Trauma


Falar sobre o acontecimento do Césio-137 não é algo tão simples para os goianienses que o viveram de forma próxima ou distante. É que ele foi para nós, ou para a maioria de nós, um acontecimento traumático. Vale lembrar que o trauma não decorre necessariamente da gravidade de um acontecimento. Pode ser grave e não ser traumático. Para sê-lo é preciso que seja um acontecimento imprevisto. A imprevisibilidade desregula, desorganiza, desorienta a subjetividade. Mas, sobretudo, ela deforma o campo. Ela é acidental, um acidente, como o do césio. Lembro-me de um caso clínico em que o paciente dizia “as coisas estão tudo bem, tudo bem, só há o fato de que não consigo dormir há três dias”. O acontecimento traumático que o havia desbussolado era o simples fato de que ele, sendo casado, teve uma aventura sexual. Isso, banal para muitos, era inaceitável para ele.

O elemento traumatizante também possui a característica de exterioridade íntima, extimidade (para lembrar o título da minha coluna). Aparentemente, ele vem apenas de fora, explodindo todas as couraças protetoras. Mas quando se olha com atenção, vê-se que ele partiu do próprio interior do qual ele não faz parte. Lacan observou, com a lupa que usava sobre os textos freudianos, que o trauma tem uma estrutura temporal que faz com que o efeito propriamente traumático só seja experimentado como tal no só depois, apès coup. Mas ele também formulou a noção de uma temporalidade lógica composta por três momentos: instante de ver, tempo para compreender, momento de concluir.

Se nos lembramos do acontecimento do césio tal como ele foi experimentado inicialmente por aqueles que o viveram diretamente, salta aos olhos o primeiro tempo, o instante de ver: encanto delirante com o azul fosforescente. Não apenas desinformados, mas capturados pela dimensão do imaginário. Por outro lado, os silenciosos e ultra-poderosos raios do elemento-137 se irradiavam por todas as direções, atravessando carne e ossos, mas..., sem alarde, sem dor, sem cor, invisíveis, sem efeito real aparente. Ou seja, sua atuação se dava mais-além do imaginário, se dava no real. Só depois, no dia seguinte, e nos dias seguintes, efeitos no real começaram a aparecer. Eis que começava, pelo menos para alguns, o segundo tempo, o tempo para compreender. Só dezesseis dias depois, chegou, para um só, a esposa do desvairado Devair, a Sra. Maria Gabriela Ferreira, o momento de concluir.

E nenhum especialista estava lá, coube a ela aquilo que David Hume disse que só a crença, e não a razão, pode articular: causa e efeito (como dizia o “Francês” em Matrix). Algo de estranho e mortal começou depois que a cápsula chegou. Eis a conclusão, eis os dois fatos que ela juntou: doenças, mortes, com cápsula. Pronto! Filósofa! A senhora Maria Gabriela Ferreira. Mas os poderes da razão vieram tarde demais. A cavalaria da CNEM já não tinha índio para matar. A vítima mais vulnerável foi talvez a menina Leide das Neves. A mais resistente foi seu pai, Devair Alves Ferreira. O corpo de Devair, é preciso que se diga, é feito de “um estofo à parte”, é de chumbo, eis a explicação de sua enorme sobrevida apesar de sua enorme exposição. Mas seu coração não, é de cristal, azul fosforescente.

Mas o acontecimento com o césio é traumático também porque, a partir dele, uma nova ordem, uma nova vida, tem seu início, e uma vida amarga para aqueles que ficaram. É a vida do pós-trauma. Há um bando de traumatizados pelo acidente do Césio-137 que ainda hoje sofre na sombra do descaso e do esquecimento das autoridades. Césio? Esqueça isso, é melhor deixar quieto. O maior responsável? Sim muitos sabem, mas é melhor não futucar nisso. É melhor deixar o tempo passar. Tempo, tempo, tempo, tempo... ele dá jeito em tudo, diz um certo censo comum. Mas o recalcado, diz Freud, é indestrutível, e ele é também o que insiste em vir à tona, é uma cadeia significante que insiste em ser reconhecida, diz Lacan, nem que seja sob a forma da mentira.

Mas o que mais me surpreende no acontecimento do Césio-137 é a sua temporalidade em mim. Eu estava relativamente próximo do local, estudava no mesmo bairro, na antiga Escola Técnica Federal de Goiás, atual CEFET. Vivi, sim, na época, uma certa apreensão, mas no fundo, eu recalquei o verdadeiro significado do que ocorria, de modo que eu me sentia distante de tudo, das mortes, do fato de que a radiação poderia ter me afetado... O Césio-137 foi para mim equivalente a Chernobyl, uma catástrofe, mas distante como a ex-União Soviética. Foi só depois, quando eu vi na TV o filme Césio 137 – O Pesadelo de Goiânia, é que eu tive, não apenas a verdadeira noção do que se passou, mas a noção de que eu mesmo estava implicado nisso de algum modo. Foi na minha Goiânia, foi próximo, eu até tinha amigos que eram parentes de um dos rapazes que tiraram a cápsula das ruínas da Santa Casa. Tudo isso ganhou uma coloração significativa diferente. E a frase que um colega me dizia na época ressoou de modo diferente: a essa altura todo goianiense deve ter sido afetado pela radiação. Ver o filme foi o mesmo que soltar a cápsula na minha cabeça. Foi acordar não do, mas para o pesadelo. Pouco importa o valor estético desse filme, o que importa é que sou eu que sou, de alguma forma representado nele. O sujeito, diz Lacan, é sempre representado. Que coisa! O que fica evidente é que eu precisei de um distaciamento para poder ver. Na época eu estava perto demais. Precisei, não apenas do distanciamento temporal (não faz tanto tempo que vi o filme), mas do distanciamento da representação fílmica. Daí que o Nelson Xavier, o ator que representou Devair, é o meu desvairado Devair. A cidade onde o filme foi feito nem é Goiânia (acho que seria impossível fazê-lo aqui), mas é ela que fica na minha mente, insistindo em substituir o lugar real. De fato, nunca tive intimidade com o lugar onde tudo se passou, mas há em mim uma evidente recusa em tê-la. Eis os mecanismos de defesa, os meus, necessários para um sujeito poder lidar com o real traumático. Toda representação é uma mentira construida a respeito do representado. Mas essa mentira possui uma função subjetiva eminente. Como diz Lacan com precisão, “algo que não foi apreensível originalmente, só-depois o é, e pelo intermédio dessa transformação mentirosa proton pseudos.” Do núcleo real traumático, o próprio inconsciente não tem outra coisa a fazer senão construir suas defesas por meio da mentira. Mas “essa mentira é sua (do inconsciente) maneira de dizer a verdade acerca disso (do real traumático)”, acrescenta Lacan. E eis que ela, a minha verdade, roubou a cena do meu artigo desta edição.




Cristiano Alves Pimenta

Nascido em Goiânia, vivido na velha, ou não tão velha, Vila União, logo começou a ler coisas por conta própria e se deparou com uma epígrafe de autoria de Antonio Gramisci: “Todos somos filósofos”. Pronto! Primeiro raciocínio propriamente filosófico: “Se todos os homens são filósofos” (premissa maior), e “Cristiano é homem” (premissa menor), logo: “Cristiano é filósofo”. Tornou-se, então, um jovem filósofo, amante da verdade, leitor de K. Marx, Sartre, Hegel, entre outros. Foi salvo da megalomania apenas pela humildade, que o obrigava por à prova os produtos dessa ratio pessoal. Tortuosos caminhos o levaram, contudo, da faculdade de filosofia (USP) para a psicanálise Freudo-Lacano-Milleriana. Outro pronto! O amor à verdade caiu. Hoje, mais lhe vale uma “ilusão útil” (Baudelaire) do que mil verdades inúteis.
E-mail: cris.alvespimenta@yahoo.com.br








Vaca de Nariz Sutil



CAPÍTULO I - A Nervura da Morte e Outro Amores

[CAPÍTULO I]

De modo inesperado, ou nem tanto, as coisas do mundo começam com um não. Uma molécula diz não a outra molécula e a morte principia a destecer a colcha. Às vezes, tudo acontece como se fosse mágico, e a colcha reluz em azul, no quarto escuro, parece até uma cidade — Goiânia ou Bombaim, pouco importa — sobrevoada por olhos de criança que, pela primeira vez, vê uma cidade do alto. Mas nem esse consolo há: num breve tempo, as moléculas começam a dizer não de modo acelerado e a ciência ainda virá para explicar tudo, “não, não é uma cidade azul sobre a colcha”. E, então, a mágica desaparece e resta apenas uma seqüência interminável de nãos.

Outubro, 26. 1987. Meio-dia: o corpo eviscerado fechado em chumbo. Em instantes, deveria-deverá ser enterrado no Cemitério Parque, Setor Urias Magalhães. Em companhia do sol sólido de Goiânia e de aproximadamente duas mil pessoas. Caixão de chumbo. Dentro, menina eviscerada. Então. Gentes.

Então, as gentes. Menina eviscerada, dentro. Caixão de chumbo. Vitupérios, todos os vitupérios, até os que não existem — ou não existiam, ainda. Os corpos, as bocas, as mãos. Palavras separadas das bocas, vindas de quaisquer bocas. Bocas sem palavras. Desgraça Demo Coisa vazia Morrida Fora daqui Corpo dos infernos. Cruz, concreto, tijolo. De cruz, tijolo, concreto, os pedaços estalando sobre o chumbo. O demo em carne delavindo a morte deva ir pelos ventos isso se esparrama pelo vento é um azul que não se vê. O mal é um azul que não se vê. Só porque a gente é pobre, não tem que aceitar não.

A coisa toda é inverossímil. A prova de que o que não acontece, acontece. A pedra. As pedras. Não só, lascas de cruz e tijolo e concreto e tudo quanté pedaço arrancável de túmulo. Que atire a primeira pedra, quem. Muitas pedras atiradas.

Menina uma, e não Maria Madalena. Nenhum Cristo por ali. Mas a mãe. Dela. A menina eviscerada dentro do caixão de chumbo. O corpo da mãe suado, encostado pelo sol, corpo de mãe entre chumbo de caixão que guarda a morta eviscerada e pedra e cruz e concreto voando e o pelo-sinal e tudo e o nada pesando mais, pois que enlaçados a vitupérios velhos e outros inaugurados só pra matar de novo a morta, só pra desterrar a morta já desterrada, eviscerar de novo a morta eviscerada.



Wesley Peres

Wesley tem 31 anos, mas sempre acham que ele tem cara de 30. Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, com o romance Casa entre Vértebras (romance), Editora Record, 2007. É autor de Água Anônima (Prêmio Cora Coralina, 2001) e Rio Revoando (Com-Arte/USP, 2003). Em 2007 lançará Palimpsestos, pela UFG. Acha deplorável pessoas que gostam de Fanta Uva, gosta muito de estourar aquelas bolinhas de plástico e da literatura produzida na Papua-Nova Guiné. Ah, é psicanalista e mestre em estudos literários pela UFG e doutorando em Psicologia Clínica na UnB. Mora na Cataluña. E-mail: wesleyperes@uol.com.br





Patchwork



Fe4[Fe(CN)6]3


Patrícia Ferreira Martins, Azul da Prússia, 1987

Este quadro foi pintado sob o impacto da tragédia com o Césio 137

O Azul da Prússia, Fe4[Fe(CN)6]3 ou Ferrocianeto de Ferro, foi o primeiro pigmento artificialmente manufaturado da história. Ele foi descoberto por Diesbach, em Berlim*, por volta de 1704. O fabricante de pigmentos acidentalmente formou o pigmento azul quando fazia experimentos com a oxidação do ferro. O Azul da Prússia ficou disponível para ser usado pelos artistas em 1724 e foi extremamente popular ao longo de 3 séculos após sua descoberta. No século XIX, foi em grande parte substituído pelo Azul de Cobalto.



As moléculas do pigmento Azul da Prússia têm formato de cubo e são tão pequenas que dificilmente são visíveis ao microscópio. O pigmento não pode ser usado na pintura a fresco, pois, em meio básico, se torna uma cor castanha. É interessante notar que, em nível molecular, as pequenas partículas em forma de cubo, aos nossos olhos, são predominantemente amarelas pontilhadas de vermelho:



O que faz com que a refração da luz sobre este pigmento se reflita da cor azul, é o fato de a molécula ser tão compacta que quase não permite a presença de oxigênio no seu interior. Aos nossos olhos, a tinta Azul da Prússia é de um belíssimo e profundo azul:



___________
*Berlim foi a última capital da Prússia que, como Estado, foi abolida em 1934, pelos nazistas. A partir de então, o uso do termo limita-se aos contextos históricos, geográficos e culturais.

Patrícia Ferreira Martins

Patrícia é artista plástica e, atualmente, doutoranda em letras e lingüística pela UFG. Adora música alternativa na linha punk rock e grindcore. Também adora literatura, assistir televisão, surfar na internet, comer pipoca no cinema e tomar mirinda com os amigos. É casada com o Wellington.
E-mail: patricia@wsmartins.net




Mieloma de Ocasião


Azul feito o céu de um dia de inverno


Muitos anos depois, eu escreveria um poema e nesse poema colocaria um verso e esse verso seria: Módica aceitação da dor. Azul.

Mas mesmo então eu não saberia direito o que era, o que tinha sido — ou o que teria sido.

Eu tinha sete anos e estava morando no sul do Pará e os meus pais assistiam ao telejornal muito preocupados, porque alguma desgraça tinha acontecido em Goiânia e tínhamos parentes lá e todo mundo estava assustado. Eu não entendia direito que diabo era aquilo.

Eu era um garoto muito ocupado.

Eu passava muito tempo sozinho em casa. Meu pai saía, minha mãe saía, meu irmão estava sempre fora. Eu passava muito tempo sozinho em casa e fazia muito calor e eu tinha os meus gibis, uns poucos, e um vinil com histórias da carochinha e um cachorro sem nome e sem raça que todos odiavam, inclusive eu, às vezes.

O meu vinil com histórias da carochinha era azul.

As notícias que chegavam de Goiânia não eram nada boas, não eram nem um pouco animadoras. Eu acompanhava a minha mãe até o posto telefônico e ela ligava para os parentes e às vezes ela chorava e eu me sentia péssimo. Todos estávamos com medo. O fim do mundo se anunciava e esse fim do mundo que se anunciava era azul feito o céu de um dia de inverno.

Eu ouvia coisas horríveis sobre o que estava acontecendo com as pessoas contaminadas.

Eu ouvia coisas horríveis porque minha mãe, como sempre, estava me preparando para o pior, porque minha mãe, como sempre, estava me preparando para o caos.

Eu ouvia coisas horríveis, muitas delas sem o menor sentido, todas elas bem menos piores do que aquilo que estava realmente acontecendo.

Eu ouvia coisas horríveis e tinha pesadelos onde os dedos das minhas mãos, tingidos de um azul lindíssimo, caíam no chão sem que eu sentisse nada, nenhuma dor, e o efeito era bem mais aterrorizante por isso, porque eu não sentia nada, dor alguma.

Eu ouvia coisas horríveis e me demorava no banho imaginando em detalhes cada uma dessas coisas horríveis.

Eu ouvia coisas horríveis e tinha pesadelos e, na escola, alguns colegas me evitavam porque sabiam que eu era de Goiânia e achavam que me evitar era uma boa idéia, achavam que me evitar era o mínimo que podiam fazer diante de toda aquela coisa.

Eu ouvia coisas horríveis e tinha pesadelos onde uma garota morta aparecia na minha frente com a pele toda enrugada e repuxada e o corpo todo mole, como se tivessem lhe arrancado alguns ossos, como se tivessem lhe arrancado uma boa meia dúzia de seus órgãos.

As notícias que chegavam de Goiânia não eram nada boas, não eram nem um pouco animadoras, mas em algum momento meu pai me disse que os nossos parentes estavam bem. Isso não me deixou despreocupado, não me acalmou, não fez com que os pesadelos parassem, não impediu que alguns colegas de escola continuassem me evitando, não ajeitou as coisas na minha cabeça, não resolveu os problemas do mundo, não consertou as coisas lá em Goiânia, não impediu que as pessoas continuassem dizendo coisas horríveis, todos os dias, naqueles malditos programas de televisão.

O azul, aquele azul.

Eles filmavam reconstituições e as exibiam com toda a tragicidade que a trilha incidental e o tom de voz do narrador permitiam. As reconstituições mostravam pessoas expostas àquele maldito pó azul, expondo-se e expondo outras pessoas. Minha vontade era de gritar para elas: Não façam isso!

Mas elas não ouviriam, ninguém ouviria.

Diziam que o brilho era extraordinariamente belo. Eu pensava que algo tão bonito só podia mesmo ser ruim.



André de Leones

André de Leones nasceu em Goiânia no ano da desgraça do nosso senhor eu-sei-que-você-não-existe 1980. É autor do romance "Hoje está um dia morto" (ed. Record), vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2005 e na época ele achou que isso significava alguma coisa. Venceu também, com um livro de contos de título engraçado nunca publicado, o Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, mas esta piada já é velha. Mantém o blog http://canissapiens.blogspot.com, cheio de piadas mais novas.
E-mail: alleones@gmail.com





Hexercício Íbrido



Poema-ruído


Coladas nos lábios purpurinas azuis

Cosidos na carne espermas farpados

Carvões exaltados

Pigarros no culto

Decantadas pupilas em degeneração


nos seios as mãos maculadas

nas pernas genitais dessangradas

nas bocas centelhas do Azul.




Dheyne de Souza

Dheyne de Souza nasceu em Cristalândia- TO, cidade menor que Vianópolis-GO, para onde foi com dois anos e que tem menos habitantes que o campus II da ufg e que fica a 96 km de Goiânia, cidade esta em que está, no momento. Dheyne às vezes fala, quase nunca de forma audível e às vezes ri muito, inclusive de si mesma, inclusive é muito engraçada, embora. Dheyne às vezes é bacharel em literatura, às vezes fez letras, às vezes nada. Sempre escreve e voltou a desenhar. Não gosta de comer e seu nome é como Jane, em inglês, vulgo mulher do Tarzan. Dheyne não é mulher de ninguém, o que não é menos perigoso. Ela faz planos, dorme e cai. Fala com vacas.
E-mail: dheyness@gmail. com




Cova do Corvo




The apparition of these faces in the crowd:
Petals on a wet, black bough

Ezra Pound



Frederico Martins apresenta, nesta edição de Cova do Corvo, o vislumbre assombroso de um fato que só conheceu como fábula, pesadelo. Mas que, por isso mesmo, permite a abertura para o azul de uma nova manhã. Clique na imagem para ampliá-la.

Patrícia Ferreira Martins






Imagens com hálito azul: João Colagem




João Colagem é artístita plástico e vive em Roterdam, na Holanda.
http://www.colagem.com
colagem@colagem.com


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CHÃO DE ÍCARO



“E subiram sobre a largura da terra,

e cercaram o arraial dos santos e a cidade querida;

mas desceu fogo do céu, e os devorou (Apocalipse 20:9).”


Eu mergulhei na noite e suas sendas trespassadas,

Com a sensação da liberdade sobre os meus martírios.

E tudo o quanto já nos coube nas vivências terrenas

Rendeu-se à travessia vitoriosa para além destes domínios.


Daí que os céus sucumbiram ao clamor da minha angústia

E conquistei-os como um bardo que entoa docemente o seu canto

Tendo a sedução insidiosa com seus sorrisos de lírios.


Abandonei a lua — tão tímida e opaca —, outrora metafórica,

Ao mesmo tempo em que soube das estrelas todas mortas.

E então que essa soberba aniquilou meus infinitos

Enquanto a nódoa mitigava qualquer perfeição dos sonhos.


Porém, no claustro ardeu o grito denso das fatalidades

Por meio de um véu espesso, oriundo da madrugada,

Que me lembrou o peso espesso dessas mãos de chagas.

As vestes nuas sobre o céu cobriram o instantâneo,

Num grunhido de fantasmagoria sobre o jardim esquecido

(À revelia da inocência silenciosa daquelas pétalas,

Em cuja fronte jamais repousaria novamente o orvalho.)


Perdi o vão do tempo e a largura absurda dos espaços:

Na ostentação viril de suplantar o céu longínquo,

Sequer notei que a chuva demasiado fria dessa noite

No espanto desordenado queimou todas as nossas asas.



FOTOGRAFIA


Para Katiê Muller


E então que numa tarde como as outras,

Banhada nas suas sombras instantâneas

No jogo e trégua com seus fins de luzes,

Buscávamos refúgio para os dias

Tentando nos livrar desses relógios

(Com o risco de levar os próprios pulsos.)


Pudéssemos dizer: forçando o hábito

Premindo e indo contra e contraindo

Os mínimos extratos dos momentos

Até que só restasse o indivisível

Sem nome ou traço ou cheiro ou som; a vida

Na essência plena e pura dos instantes.


Contudo, o teor cítrico da tarde

Dizia a realidade como um todo,

Especialmente as coisas que sobravam

Assinalando a imperfeição do tempo.

(Mas antes que esse mar nos afogasse

Centramos no calor das superfícies.)


E veio uma indelével recompensa

Do corte que se apresentou possível:

Medida indefinida, porém clara

A todos os olhares que não medem

Mas antes se preocupam com o que é findo

Abrindo-lhes caminho, antes que acabe.


Naquela dimensão, permanecemos.

Por isso é que esse tempo registrado

(Exato e frágil e forte, feito um ovo

Medrando a previsão dos seus mistérios)

Doou-se, como quem se lança às ruas

E empresta de bom grado a própria casa.


As cores recolhidas de uma tarde.

(Colhidas porque foram cultivadas

— E optamos por colheita, e não captura,

Como parece ser normal no mundo,

No qual a retenção dos atropelos

Tomou lugar dos toques, dos encontros.)


É cedo ainda: a noite das distâncias

Embala os instantâneos. Vejo a foto,

Guardada como um sonho, em tons de cinza.


Paris, maio de 2007.

Henrique Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro, em 1975. É formado em Letras pela Uerj e mestre em Estudos de Literatura pela PUC-Rio. Trabalha com projetos de incentivo à leitura e circulação de manifestações literárias. É co-autor dos livros Quatro Estações: o trevo (1999 (independente)), Prosas Cariocas: uma nova cartografia do Rio de Janeiro (Casa da Palavra, 2004). Autor de A musa diluída (Record, 2006) e Versos para um Rio Antigo (Pinakotheke (infantil), 2007). Colabora com os suplementos literários do Jornal do Brasil e de O Globo.


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Música para soprano, flauta e violão n° 2

Estércio Marquez Cunha

Soprano: Dênia Campos

Flauta: Sara Lima

Violão: Felipe Valoz



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Estércio Marquez Cunha é doutor em Composição. Nascido em Goiatuba/GO, em 1941, Estércio tem obras representativas em diversos gêneros e formações instrumentais.



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O PIOR INIMIGO



Simulas tua queda dentro de mim, com seu orgasmo de tintas e livros gastos, escombros de vértebras e chaves cegas. Preparas um último verso em meu desmaio. Há muito não sonho com teus fantasmas azuis, e no entanto em palavras mesquinhas teu enxame de cadáveres se apropria da miséria de meus dias. Já não sei como lidar com a eloqüência de teus espelhos. Até onde esgotar o sangue dissimulado com que regas teus campos. Descarrilas em tuas pernas todo o ritmo de quimeras que rege a existência. Moscas regurgitam o útero aceso de tuas máquinas. Ciclos vorazes da soberba. Lábios metálicos consumindo frascos de metáforas anômalas. O mundo a teus pés, as pás do silêncio, o pó das surpresas. Há muito não há mais cura ou motivo para estar aqui. Teimamos porque a noite não se vai, porque persiste um labirinto profundo e delicioso ou simplesmente porque não sabemos como apagar esta lâmpada aflita do desespero. O mundo não obedece a mais ordem alguma e quando um de nós toca seu fundo já não há mais princípio ou fim, nada que reconheça o mito da ressurreição. Tuas lágrimas são fulgores vãos. A indignação uma paisagem transtornada e exposta a um reflexo risível de sua comiseração. Antes que fôssemos estas ruínas azuis eu tanto sonhei contigo ao ponto de me confundir com tuas sobras. Caminhamos pelas cidades, rimos de tudo, nos sentimos alheios à indigência humana. Nada é conosco e até nos orgulhamos de nossa descendência suicida. Por que ainda insistes nisto? Eu nunca estive aqui.


Floriano Martins é poeta, ensaísta e tradutor. Dirige, juntamente com Claudio Willer, a revista Agulha (www.agulha.com.br). Email: agulha@rapixonline.com.br.



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