C-dur



Ceremony

“Ian está aí, Sandro?” A mãe de G. o acordou para dar a grande notícia. Depois de toda a Sodoma da noite anterior — depois das drogas, cinzas, gasolina, fumaça, um mar de bocetas, teclas e cordas, depois de todas as máquinas e de todo o suor — aquela grande notícia. “Sandro, existem bocetas aí?” A melhor maneira de acordar. Tudo falha exatamente nesse ponto. Como acordar? A mãe sentada na beirada da cama, latindo aquela desgraça. Como? “Uma grande boceta, aquele lugar calmo em que nos enfiamos para nos livrar do sonoro?” Ceremony foi o mais perto que Sandro chegou de Joy Division. Esse Joy, primo-pai-irmão do New Order. Mas Sandro não gostava de Ceremony. Sandro não tolerava Joy Division. “Sandro, Ian Curtis, aquele monstro suicida, o cantor fazedor do Joy Division. Se lembra que eu te contei a história dele? Ele está aí? Você o viu?” “Não, aqui não há nenhum Ian.” A namorada tinha apenas um corte no rosto. A cabeça de Sandro explodiu. Toda música é pesadelo. Mesmo New Order e sua tentativa de esquiva, seu rumo louco embebido de suor e ecstasy, seu recalque sonoro: fazer dançar. Dançar é uma quimera. “Sandro, existe música aí onde você não está?” “Não, G., a música não existe, nem aqui nem em lugar algum.” “Mas, Sandro, agora eu sou músico, sabe? E não posso falar de outra forma. Você pode me escutar?” “Não, G., não posso.” G. não olhou o caixão. Um caixão e um piano são coisas idênticas. G. nunca pôde olhar um caixão. Quando sua avó morreu, sem olhar para o caixão, ele teve certeza de que um piano a havia engolido. A cabeça explodindo, essa foi a cadência final da vida de Sandro. Uma cadência coito interruptus. Sandro não teve direito a coda. Ninguém tem direito a coda quando se trata da vida. Para Schoenberg, as codas existem para que os compositores possam dizer algo mais, ainda. As codas existem, na verdade, para tentar driblar a morte. New Order é a coda do Joy Division. “Sandro, me diga que há New Order aí, que você ainda pode dançar!” A namorada de Sandro se apressou para abraçar G., as namoradas se apressaram para abraçar G., as ex-namoradas, primas, irmãs, casos, todos os diabos-de-saia possíveis. Todas, de um jeito ou de outro, correram a dizer o quanto G. era querido. Sandro morto e, automaticamente, todas se tornaram porta-vozes. E que diferença isso poderia fazer? Em um enterro? O que elas queriam? Sandro nunca soube o que elas queriam, mas mesmo assim era capaz de piscar, simplesmente, e levá-las para a cama. Sandro piscava para as garotas. G. nunca entendeu isso. Sandro piscava e as coisas aconteciam. Como aquilo podia vingar? Com G. nunca teria funcionado. Para ele não podia haver gesto mais engraçado, ridículo e absurdo do que este. “Sandro, existe a vida, ou sei lá o quê, sem as bocetas?” Mas não, não era apenas isso. Não era meramente um piscar. Não. Os olhos de Sandro dançavam. Elegantemente. Joy Division era uma banda elegante, de frases elegantes, milimetricamente no lugar. Pequenos módulos que se encaixavam em um quebra-cabeças no qual Ian Curtis não era a peça que faltava, mas algo como uma peça-tumor que sobrava. A peça defeituosa, possessa. Todas as vidas são defeituosas. “Levanta, G., levanta.” Mesmo a máquina-olhar-elegante de Sandro teria que parar um dia, assim como Ian parou. Tudo falha, piscando ou não. Possessamente. “A minha avó ainda toca?” “Não, sua avó nunca tocou.” O show do New Order na sexta às 22:00 h, o ingresso no bolso da calça, a aluna encantadora que lhe daria carona e G. não pôde ir. Teve medo. Teve medo ou descrença, ou teve vontade. Ele não sabe bem o quê. Teve medo, descrença e vontade e não pôde ir. Falhou. “Você estava lá, não é?” New Order, Ian Curtis e Sandro; a mãe na beirada da cama, o piano e a avó; a dança e a aluna encantadora; todas as bocetas do mundo, Schoenberg e as codas: tudo falha. “Eu sei que estava. Você dançava e piscava para as meninas.” “Não G., eu não estava.”

CODA: O ostinato eterno, com show ou sem show, aquele, único, corrosivo som que dança e abraça G. e todos: “Levanta, Sandro está morto.”






Paulo Guicheney

Paulo Guicheney é compositor. Quando criança teve de optar entre ABBA e Trio Parada Dura. Optou por ABBA, mas depois descobriu que a coisa pegava mesmo era com Beethoven. Estudou piano e composição na UFG, onde também fez mestrado em música eletroacústica. Atualmente leciona composição na UNB.
E-mail: pauloguicheney@hotmail.com