Gargântua



Leitor

O que lerás a seguir é um dos meus Discursos de Entretenimento Útil e Saudável (D.E.U.S.).


Diógenes

Discurso no qual se pretende mostrar como nosso Deus encontrou-se com um filósofo e com ele travou um diálogo sem precedentes em sua biografia


Deus andava inquieto. Interrogava-se sobre a questão. E isso lhe causava uma considerável enxaqueca. Resolveu, então, pedir que lhe apresentassem Diógenes, o Cínico.

O caso de Diógenes é exemplar. Entregava-se ostentatoriamente ao mesmo prazer solitário ao qual Onan também se entregara antes de ter a vida cruelmente aniquilada por Deus.

Mas em Diógenes, Deus não metia medo.

De Grande, Diógenes topara com Alexandre e não seria, agora, a convocação do Todo Poderoso para este discurso que iria intimidá-lo.

O episódio de Diógenes com Alexandre é breve: Diógenes, relaxado e tranqüilo, aproveitava o sol do final da manhã. Alexandre chega com suas armas, pára em sua frente e diz: caro filósofo, estás diante de Alexandre, o Grande, o que desejas? Desejo que te afastes um pouco porque estás me tapando o sol, isso.

Mais uma vez, senhoras e senhores, um acontecimento histórico provava que nem sempre a maior ousadia pertence àquele em que pensamos. Mas para o Cínico, isso era de mínima, ou nula, importância. O sol é o que contava naquele momento. E o sujeito armado em sua frente adiava para o futuro a satisfação de seu presente desejo de luz e calor. Seu prazer em exercer sua liberdade de estar ali, tomando sol naquele momento, era o ponto nuclear de seu ensinamento.

Outras vezes, em outras manhãs ensolaradas, como esta agora, por exemplo, seu prazer resumia-se a enfiar a mão por baixo da veste e acariciar seu pênis até atingir a mais satisfatória das ereções. Então, tirava o membro para fora dos tecidos e, fitando-o vagabundamente, ocupava-se em completar sua excitação. Percebia nas mãos — e na imaginação — a ligeira tremedeira vinda do interior do ventre, sinal de que estava no caminho certo, à beira de um novo orgasmo para ele.

É verdade, fazia-o naturalmente, em praça pública. É o que o aproximava dos animais: longe da culpa e fiel aos seus desejos. Mas, ao contrário de um canalha, tinha cultura suficiente para não impor tais desejos a ninguém.

Mas e o pudor?, perguntou Deus, que sem perceber também tapava o sol do filósofo.

Falso valor!, respondeu o filósofo, agora na sombra. Em seguida calou-se e ficou, com todo o esmero do mundo, aplicado em sua masturbação.

Deus não soube como continuar e, como sempre, junto com a confusão, voltou a sentir os incômodos da dor na cabeça. Tomou um tempo e começou a ponderar. Aquele filósofo estava emancipado demais para seu gosto. Conseguia satisfazer as necessidades das partes baixas sem sujeitar-se a qualquer contrato de matrimônio, pois atingia resultados imediatos apenas com o auxílio das próprias mãos. Pior, colocava em risco a idéia da família, a tão sonhada família, que, há anos, era imposta mundo afora. Ai, meu Deus!, pensava sem se dar conta do desatino da frase, mas recuperava-se logo e, antes mesmo de corrigir-se com um previsível “Ai, eu mesmo!” tão típico de sua palermice, voltava ao raciocínio. É muita independência para um homem . Se o mundo continua nessa via, em breve bastará ao ser humano acariciar a barriga para que a fome seja saciada. E então, acabam de vez com a idéia do trabalho, com a idéia do sacrifício. Onde se viu! Vou ter que pensar em algo. E a simples evocação da palavrapensarlhe fez pulsar forte no crânio aquela enxaqueca dos diabos. E na sua frente o filósofo que não parava de agitar o negócio.

Percebeu que nada conseguiria naquele dia. Estava prestes a desistir quando reparou algo em seu calado interlocutor.

Depois de tanto tempo quieto na sombra, Diógenes abriu a boca para se pronunciar. Deus presumiu que fosse para continuar o diálogo. Outros acharam que seria para dizer a Deus que saísse da frente do sol. Mas julgaram errado, porque naquele instante não era conversa nem assunto de luz ou sombra que interessava. A atenção era outra. Então, fixando o fundo dos olhos de Deus, e ignorando a torrente de pensamentos do Todo Poderoso, o filósofo abriu a boca e pronunciou um simples: gozei!






Nereu Afonso da Silva

Nereu Afonso da Silva nasceu em São Paulo, em 1970. É autor de Correio Litorâneo, Editora Record, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, na categoria contos. Formado em filosofia pela USP, enveredou para o teatro. Foi um dos Doutores da Alegria (palhaços em hospitais). Hoje vive na França, onde escreve, atua, leciona e dirige para o teatro. Mantém o blog http://bombyx.wordpress.com.
E-mail: nereu.afonsodasilva@neuf.fr