Mieloma de Ocasião


SEMTÍTULO

Eu estava com sono e continuei deitado. Minha esposa já tinha saído para trabalhar. Ela sai para trabalhar todos os dias às sete e meia. Eu me deito à meia-noite. Às vezes, trepamos. Pego no sono ali pelas duas. Ela acorda às seis. Ela é professora. Eu era professor. Eu a conheci em uma festa junina. A cidade em que vivemos é tão pobre em opções de lazer que festas juninas são grandes eventos. Aqui, festas juninas são eventos aos quais as pessoas, todas elas, comparecem. Há várias festas juninas, mas a melhor de todas é a do colégio das freiras. A festa junina do colégio das freiras é a melhor de todas porque as meninas que estudam no colégio das freiras e as mulheres que lecionam no colégio das freiras são quase todas muito bonitas. Minha esposa leciona no colégio das freiras. Eu lecionava no colégio estadual. A festa junina do colégio estadual também é boa, mas a melhor é a do colégio das freiras. Eu estou desempregado há um ano e meio. Eu bebo todas as noites. Minha esposa não reclama. Eu não faço nada de ruim quando bebo, exceto beber. Eu não brigo. Eu não conto mentiras. Eu não como outras mulheres. Eu fico calado, bebendo. Eu sequer gasto dinheiro quando bebo. Eu bebo no Bar do Nelson. Nelson é um amigo de infância. Nelson sempre bebe comigo. Nelson não permite que eu pague nada. Se, por acaso, Nelson decidir que eu devo começar a pagar, eu paro de beber. Eu não tenho dinheiro para gastar com bebida. Eu não tenho dinheiro para gastar com nada. Eu só bebo porque não preciso pagar. Se tivesse de pagar, viveria sóbrio. Nelson fez faculdade. Eu fiz faculdade. Nelson e eu fizemos faculdade na mesma época. Nelson estudou Ciências Contábeis. Eu estudei Letras. Todos os dias, o ônibus da prefeitura levava os universitários para a capital. Todos os dias, ao entardecer, embarcávamos para a capital a fim de estudar. Voltávamos à meia-noite, exaustos. Não estudávamos muito. Cabulávamos aulas e bebíamos nos botecos próximos da universidade. Não estudávamos quase nada. Todos nos formamos com facilidade. Eu prestei concurso para professor. Nelson assumiu o bar do pai. O pai de Nelson bebe todos os dias no bar que era seu e que agora é do filho. O pai de Nelson também não paga para beber. Poucos pagam para beber no Bar do Nelson. Nelson não reclama. Nunca vi Nelson reclamar de coisa alguma. A exemplo da minha esposa. Minha esposa não briga comigo. Eu não brigo com minha esposa. Vivemos bem, em comparação com as outras pessoas. Em comparação com os nossos vizinhos. Não armamos escândalos. Não maldizemos ninguém. Somos boas pessoas. Eu era professor. Um dia, eu decidi que não seria mais professor. Estava cansado. Não gostava de lecionar. Não gostavam de mim lecionando. Não consegui outro trabalho. Não consegui outro trabalho simplesmente porque nunca aprendi a fazer outra coisa. Eu não sei fazer nada, exceto lecionar. Exceto lecionar e beber. Lecionar e beber são as únicas coisas que eu sei fazer. Eu estava com sono e continuei deitado. Sabia que não conseguiria dormir, mas tampouco queria me levantar. Ela me beijou antes de sair para trabalhar. Minha esposa sempre me beija antes de sair para trabalhar. Um beijo no rosto. Ela me beija no rosto e sai para trabalhar. Um dia, ela me beijou e percebeu que eu estava acordado e disse: “Tchau”. Eu não disse nada. Eu fechei os olhos e fiquei calado. Geralmente, depois de um tempo, eu me levanto e passo um pouco de café. Às vezes, ligo o som. Às vezes, como alguma coisa. Um pão, uma fruta. Às vezes, pego um livro e começo a ler. Há muitos livros aqui em casa. Já li a metade de quase todos eles. Eu pego um livro, leio cem, duzentas páginas, e quando não sei mais o que estou lendo, quando já me esqueci até mesmo do título, recoloco o livro na estante. Às vezes, ligo o som. Eu gosto de escutar Johnny Cash. É a única coisa que escuto. Não escuto nenhum outro cantor ou cantora ou banda. Só escuto Johnny Cash. Minha esposa gosta de música clássica. Ela chega do trabalho, toma um banho, come alguma coisa. Ela chega do trabalho, liga o som, escolhe um CD, toma um banho, come alguma coisa e sempre me pergunta: “Vai sair hoje?”. Eu sempre saio, ela sabe que eu sempre saio, mas ela sempre me pergunta se eu vou sair. Eu digo que vou ao Bar do Nelson. Ela pede que eu não demore muito. Eu digo que tudo bem. E saio.





André de Leones

André de Leones nasceu em Goiânia no ano da desgraça do nosso senhor eu-sei-que-você-não-existe 1980. É autor do romance "Hoje está um dia morto" (ed. Record), vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2005 e na época ele achou que isso significava alguma coisa. Venceu também, com um livro de contos de título engraçado nunca publicado, o Prêmio Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, mas esta piada já é velha. Mantém o blog http://canissapiens.blogspot.com, cheio de piadas mais novas.
E-mail: alleones@gmail.com