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Quatro intuições de rosas & suas observações

parte primeira

Quatro intuições de rosas é um caso do que se chama livro de poemas. É uma raridade em minha escritura. Mas assinala-se como algo que deixará de ser raridade. O que intuição e rosa fazem ali vocês entenderão se retrocederem sua leitura para página p. n. 5 (maio, 2007), no texto “pautas da escritura ou biografia das pétalas”. Pretendo, a partir desta página p. n. 10, apresentar os poemas, e suas respectivas observações, do primeiro livro das Quatro intuições de rosas, que se chama “Intuição primeira: Livro da lembrança”. Abaixo, seguem as epígrafes, a dissertação apresentativa desse “Livro da lembrança” e o primeiro poema. A partir do próximo número, virão os demais poemas e as observações. Se me permitem o clichê: Boa leitura!

“Minhas lembranças escorrem/ e o corpo transige” (Drummond, em “O sentimento do mundo”).

“Os veios que escorrem são a imensa lembrança” (Herberto Helder, em “As musas cegas — V”).

“E gravarei sobre a pedra/ Lembrança de que brilhou/ Um círculo, fogo ermo./ Acima é rápido o céu// Como ao voto a pedra é fechada” (Yves Bonnefoy, em “Uma pedra”).

“E na lembrança me firmei pra não cair” (José Gilberto Gaspar, em “Reminiscências”).

“Procurarei diligentemente que também em toda ocasião depois da (…) morte tenhais lembrança” (Pedro, 1:15).

A lembrança é um aprendizado, segundo nos ensinaram Sócrates e Platão. Aprender é lembrar, lembrar é aprender. O seguinte é fundamental sobre a lembrança: ela não emana de um esforço de consciência. A lembrança, portanto, é uma intuição.

Como uma intuição pode ser um aprendizado, se isto é resultado de um organismo de pensamento, e aquilo é resultado de uma trilha que não pode ser perseguida sem embaraço? Para responder a essa questão, preciso distinguir lembrança de memória.

A lembrança, porque uma intuição, não dá aviso prévio de sua chegada, mas claramente assinala sua inscrição na vida mental de quem é tomado por ela. Quando somos acometidos pela lembrança, sabemos de quando e de onde vêm suas imagens. No entanto, esse saber não é exato nem pode ser mensurado com a certeza de mínimo risco de erro nas aproximações.

A memória, de outro modo, é resultado de um esforço de consciência. Memoramos o que queremos. Por isso a memória é quase sempre construída, mantida, derruída ou transformada por um poder estabelecido. A memória sempre está sob censura de valores de lugares, de épocas e de actantes.

A lembrança somente é censurada pela razão no momento que sua forma de metáfora é interpretada.

Em poesia, para deferir Emil Staiger, a lembrança toma forma de recordação quando assumimos o risco de não censurar suas imagens e deixamos que ela tome uma forma estética no quê possível da matéria das línguas. Obviamente, e não estou construindo nenhuma dicotomia maniqueísta aqui, a atitude de dar forma de recordação à lembrança é uma atitude racional. Formatar uma recordação, portanto, não é uma intuição.

Como o helenismo de nossa cultura nos veniou o conceito de que os poemas equivalem às rosas — formas naturais de várias cores, feitas de elipses harmônicas entre si e que convergem para um círculo, e, além disso, que têm perfume próprio —, cheguei à conclusão de que, formatada em recordação, a lembrança é uma intuição de rosas.

Um dado intrigante sobre a lembrança é o famoso predicado de um dito popular quando fala que uma puxa outra. Creio, e alguém já disse isto, que tal curiosidade se deve ao esquecimento do olvido, o esquecer de esquecer-se. Toda vez que somos acometidos pela lembrança, não nos esquecemos de não esquecer de encontrar seu lugar e tempo. Cada vez que fazemos isso, o olvido vai às trevas. Ora, dizer tal coisa não significa dizer que a lembrança é toda em si dependente de um esforço de consciência que é o não-se-esquecer de esquecer de lembrar?

Faço saber que a resposta continua negativa porque o esquecimento do olvido é um arrebatamento. Não sabemos não fazê-lo, não podemos não querê-lo, não conseguimos não tê-lo. Portanto, como a lembrança, ele é uma intuição; e, formatado em recordação, pode ser também uma intuição de rosas.

As rosas de minha primeira intuição, componentes de meu “Livro da lembrança”, brotaram desse movimento intercambiado entre lembrança e esquecimento do olvido, e jamais ocupados da vontade de abdicar de sua metalinguagem. Não posso, no entanto, falar de metalembrança, porque, afinal de contas, foi forjando a lembrança-em-si — seu conceito e seus exemplos —, em formato de recordação nas rosas, que não me esqueci de não esquecer do esquecimento do olvido.






Jamesson Buarque

jamesson buarque é poeta, professor, crítico literário e doutor em estudos literários na ufg. publicou os delírios e novíssimo testamento. sente-se muito mais antigo do que sua idade tri-trina cristã. além de poesia e magistério, gosta de vinho, cachaça mineira, desenho animado, cinema, política, bíblia e fenomenologia, tudo colado. importante: é sobre essa colagem sua coluna.
E-mail: jamessonbuarque@yahoo.com.br