Vaca de Nariz Sutil


a Jacques Lacan

toda então problemática está esteve estará em que em ser se tem um está na linguagem corpo e falar a gente falando dele e ao dele falha a palavra o corpo falha falável. O corpo vibra e em seu escuro há muito mais do que silêncio, e a palavra que sai da boca porta esse a mais do que silêncio, e são cifras esse a mais, espécies de véus rasgados que emolduram cada pensamento bocadentro bocafora, o pensamento humano é um organismo que goza, um metaorganismo roendo os seus intervalos, alimentando de seus movimentos de seus líquidos de suas fímbrias de suas pequenas dores que agulham o vento minério a que almeja a palavra pensamento.

tudo então em tudo entremesclado, filosofia à-toa de café da manhã, um homem que lê a morte no jornal na palma da mão ou dos pés, um homem tomando seu café e sentindo o calor bocadentro, e o decalque das palavras no corpo que ele pensa, irá agora como outrora, irá pela milésimavez fazer o mesmo exame, pois mesmo constelados seus pensamentos roem o mesmo osso, a mesma imagem da própria morte e ele sabendo que a morte não é uma imagem, senão uma imagem rasurada rastejando pelas vísceras da palavra e do corpo.

uma química de estrelas, uma casa pura forma de ciframento da carne, a carne habita a ela própria e, nos homens, a palavra infiltra e desregula o saber instinto que insiste em se fazer lido nos olhos de um boi.

um homem na estrada vê seu corpo rasgado esses pensamentos nada submersos pensamento-imagem-cheiro-cor que se repetem, que se repetem girados acrescidos cortados de um ou outro som de uma ou outra janela de um ou outro fragmento novo do órgão-linguagem.

profilaxia impossível talvez se livrar do círculo palavro-afetivo da mesma uma outra coisa, o círculo em palavras circulando pelos desfiladeiros fímbrias do entreaspernas e os ruídos e mesmo assim o gozo dos olhos incrustado na imagem dele, o homem sentado na mesa tomando o seu café aderidoincrustado na imagempedaço do corpo-ele desdobrado para dentro, como um corpodecão com ou sem plumas, corpodecão aberto no asfalto, a noite do corpodecão aberta no asfalto da cidade em alta velocidade no si dela fluxograma de outros corpos com seus desesperos semelhante-singulares.

sempre um medo uma coisa um monstro feito de olhos olhando para ele de um lugar feito de areia ou água uma memória clepsidra um astrolábio calado sobre o corpo esguio de uma mulher sem umbigo, ele mesmo não sabe se sabe dizer o que não tem sentido nem ele procura talvez irá a um médico gosta muito de uns comprimidinhos que lhe extraia o corpo de seu comum isolamento de si mesmo.

o homem pensa, o vento se cala, uma perna não é uma asa, o agora é a noite, noite insípida, um saber que sabe os objetos da mesa, a xícara e seu café sem Deus dentro, Deus deixou a máquina mundo girando, deixou-lhe a lógica do fogo, e não é Ele mais nem menos afetado por nenhum seroutro, por nenhuma eutridade, Deus não é mais igual a sua ausência, dissolvido na xícara de ser igual a si mesmo, bela tautologia, como a água molhando a água, como esse homem que pensa enquanto o vento se cala, ele esse homem, finalmente, pode ler no Deus ausente da xícara, ele se tornou seu rumor e, seu rumor, seu próprio instrumento de prazer, o barulho das vozes, epicentro de uma dor aguda, o intenso gozo de olhar para um cadáver, a realidade é a realidade que cessa, essa dor que se dissolve, como Deus, à substância maquinal da memória, coisa morta como constelações de palavras contaminam o corpo do homem criando bordas, núcleos no corpo sedentos do glorioso gozo de se dissolver em morte.

ele esse homem olhando para a xícara é mais feliz que qualquer homem esperando a eternidade ou procurando a teoria de tudo ou qualquer gramática no gozo feminino, ou na ira fria da matéria emigrando para o fim de algo que sequer houve começo.

alitera, a vida alitera, e tudo é igual a outra coisa, um ciclo interminável de fins, junturas fraturas murro contra os sonhos.

um pedaço do corpo, uma ferida exposta, uma coisa pendurada de lado, uma flor talvez, flor de carne, infeccionada, se lhe extraem essa flor, sem essa infecção ele morre, então ele bebe seu café até esvaziar a xícara e olha a xícara de café vazia enquanto

uma mosca pousa.



Wesley Peres

Wesley tem 31 anos, mas sempre acham que ele tem cara de 30. Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, com o romance Casa entre Vértebras (romance), Editora Record, 2007. É autor de Água Anônima (Prêmio Cora Coralina, 2001) e Rio Revoando (Com-Arte/USP, 2003). Em 2007 lançará Palimpsestos, pela UFG. Acha deplorável pessoas que gostam de Fanta Uva, gosta muito de estourar aquelas bolinhas de plástico e da literatura produzida na Papua-Nova Guiné. Ah, é psicanalista e mestre em estudos literários pela UFG e doutorando em Psicologia Clínica na UnB. Mora na Cataluña. E-mail: wesleyperes@uol.com.br