C-dur


“Chico Buarque entende de mulheres”

Goiânia é uma cidade estranha. Lugar onde coisas improváveis acontecem. Terra que combina literatura de auto-angústia, Césio, Lacan, música eletroacústica e Leandro e Leonardo. E é também a casa do compositor Deoclécio Carlos. Um compositor estranho, improvável: em sua poética coabitam ruidosamente: literatura de auto-angústia, Césio, Lacan, música eletroacústica e Leandro e Leonardo. E, claro, um ódio sem limites por Chico Buarque. Testemunha viva da viagem de Ravel a Goiânia, amigo de Stockhausen e Odair José, Deoclécio Carlos é um enigma. Ser que transpira música e não tem papas na língua. Visitei a casa do compositor para esta rara entrevista e fui saudado com uma saraivada de impropérios, além de uma obra inédita para nosso deleite auditivo. Tiro para todo lado. Deoclécio é isso.




Get this widget | Track details | eSnips Social DNA
Música para a voz, segunda voz, guitarra, baixo, teclado, saxofone e bateria


Paulo Guicheney: O senhor poderia nos falar de quando conheceu Ravel em Goiânia?

Deoclécio Carlos: Não.

Paulo Guicheney: Eu sei que o senhor está cansado de falar disso, todos perguntam, mas desde quando eu coloquei a notícia no site muitas pessoas querem saber e…

Deoclécio Carlos: Olha filho, eu estou de saco cheio de falar disso. Eu te disse que não queria falar disso. Se for pra falar desse porra desse Ravel a entrevista acaba aqui.

Paulo Guicheney: Tudo bem, então. Por que o senhor se tornou músico?

Deoclécio Carlos: Mas é uma pior que a outra. Como assim? Sou músico porque não sou médico. Só por isso. Em Goiânia, na minha época, você tinha duas possibilidades: ser médico ou esculhambar tudo e ser músico. Imagina que desgraça na vida de uma família quando o menino queria ser músico. Hoje me arrependo, claro. Deveria ter me tornado cabeleireiro, estilista, a desgraça seria ainda maior.

Paulo Guicheney: Quando a música entrou na sua vida?

Deoclécio Carlos: Nossa, achei que você fosse perguntar quando a música entrou no... Deixa pra lá. Outra perguntinha matadora. Olha, você quer uma resposta bonita sobre meu envolvimento com música ou uma resposta verdadeira?

Paulo Guicheney: Verdadeira, claro.

Deoclécio Carlos: Eu me tornei músico porque a música é a mais bela das artes. Ela enleva a alma, ela fala de coisas que as palavras não conseguem dizer. Ela nos transporta pra mundos nunca vistos. A música nos faz viajar sem sair do lugar.

Paulo Guicheney: Isso não foi verdadeiro.

Deoclécio Carlos: Eu me tornei músico pra comer as meninas, porra! Por que mais? E hoje que tudo já está perdido não vejo nenhuma razão mais pra isso.

Paulo Guicheney: Mas o senhor continua a compor.

Deoclécio Carlos: Sim, e daí?

Paulo Guicheney: Alguma coisa ainda existe.

Deoclécio Carlos: Sim, e daí?

Paulo Guicheney: Certo. Como o senhor classificaria sua música?

Deoclécio Carlos: Música pós-serial calcada na nova complexidade e embebida de um pathos genuinamente goiano, ou seja, Música Cereal. Essa é a música que eu faço. Filho, você não vai me perguntar sobre Chico Buarque? Eu sei que toda essa enrolação é só pra me ouvir falar do pulha, não é? Faz tempo que você está querendo um embatezinho, eu sei. Pode começar.

Paulo Guicheney: OK, por que o senhor odeia Chico Buarque?

Deoclécio Carlos: Eu não odeio Chico Buarque. Só se odeia quem se respeita, não foi isso que o Paulo Francis disse? Eu desprezo o Chico Buarque, é diferente.

Paulo Guicheney: Por que o senhor despreza Chico Buarque?

Deoclécio Carlos: Finalmente uma pergunta descente. Chego a ter comichão. Vamos lá. Eu não agüento a babação de ovo em torno dele. Pra mim ele enquanto músico entende de mulheres, mais nada. Chico Buarque entende de mulheres, é assim que eu o defino.

Paulo Guicheney: Curioso, em uma entrevista ele disse que não, que ele não entendia de mulheres. Por isso ele se dispôs a falar delas. Me parece que é justamente esse caráter impalpável das mulheres que o fascina.

Deoclécio Carlos: “Caráter impalpável”? Filho, você é estranho… Tudo bem, então nem de mulheres ele entende. Como já me disse o Estércio (Estércio Cunha, compositor goiano): “O Chico Buarque enquanto músico é um grande poeta”. E olha que eu disse isso a um amigo escritor e ele ficou puto comigo.

Paulo Guicheney: Mas não seria uma combinação das duas coisas?

Deoclécio Carlos: De quê? De puto e impalpável?

Paulo Guicheney: Não, de poeta e músico?

Deoclécio Carlos: Não me venha com esse papo de que ele é um trovador, um Raimbaut de Vaqueiras do nosso tempo. Ele é fraco enquanto músico e é fraco enquanto poeta. A combinação é um desastre. Por isso ninguém fala dele enquanto músico, não há o que dizer. Não há nada pra falar dele, por isso falam das letras. Puta merda. Falam das letras. Eles separam as coisas e acham que falam de música.

Paulo Guicheney: Fale da música então.

Deoclécio Carlos: Ele não sai do lugar. Ele se repete. É um chato. Preciso falar mais? Basta ouvir. De vez em quando, pra quem gosta, ele tem lá seus laivos literários de dor de cotovelo. As pessoas são pegas por isso, o cotidiano pequeno burguês que ele descreve. Aquela história de quem vai pagar o aluguel depois da separação, da mulher que aprendeu a gostar de dar. Essas coisas. Ele é o porta-voz desse tipo de coisa. Musicalmente não há nada, se é que podemos separar as coisas. Ele é pobre. Tem aquelas melodias chinfrins, aquela harmoniazinha que se acha a tal. É sempre igual. São as letras que pegam as pessoas.

Paulo Guicheney: Pra mim ele tem canções que são perfeitas. Irretocáveis. Concordo que ele se repete, que tem uma fórmula e se agarra a ela, mas mesmo assim às vezes ele acerta. Mas a música popular não é assim?

Deoclécio Carlos: Eu esperava mais de você. Ganhador de Bienal e tal. Esperava mais. Olha que eu gostei do CD que você me deu. Mas o Brasil é isso. Sua fala é típica desses intelectuais brasileiros. No Brasil o intelectual lê Joyce, faz doutorado sobre Mallarmé, vai ao cinema assistir Tarkovsky e escuta quem? Quem? Chico Buarque, claro. Imagina um intelectual brasileiro escutando Boulez, Ligeti, Almeida Prado, Estércio Cunha…

Paulo Guicheney: Eu escuto Deoclécio Carlos…

Deoclécio Carlos: Você é músico. Olha, Chico Buarque é o meio do caminho. Ele não está nem lá nem cá. Ele é falso. Pra mim ou você lê Paul Celan ou lê Paul Coelho (sic). Mário Quintana não. O Chico Buarque é o Mário Quintana da canção. Ele nem é brega e nem é erudito. O Paul Coelho (sic) é muito mais verdadeiro que ele. Chega! Cansei. Já falei demais. Vamos parar.

Paulo Guicheney: OK, pra encerrar o senhor poderia falar de “Música para voz, segunda voz, guitarra, baixo, teclado, saxofone e bateria”?

Deoclécio Carlos: Não.

Paulo Guicheney: Nem do título?

Deoclécio Carlos: Não.

Paulo Guicheney: Muito obrigado pela entrevista.

Deoclécio Carlos: De nada.






Paulo Guicheney

Paulo Guicheney é compositor. Quando criança teve de optar entre ABBA e Trio Parada Dura. Optou por ABBA, mas depois descobriu que a coisa pegava mesmo era com Beethoven. Estudou piano e composição na UFG, onde também fez mestrado em música eletroacústica. Atualmente leciona composição na UNB.
E-mail: pauloguicheney@hotmail.com