Gargântua



Leitor,

Atendendo a pedidos, cedi e escrevi mais um de meus Discursos de Entretenimento Útil e Saudável (D.E.U.S.).

TISSOT

Discurso no qual se pretende mostrar como nosso Deus muito aprendeu sobre os progressos medicinais do século XVIII

Em 1760, o doutor Tissot, médico suíço, descreve a doença segundo os termos de Hipócrates. Acrescenta procedimentos inovadores à sua receita de cura, desconhecidos na época de seus predecessores e mais apropriados à moral de seu tempo. Mas sua maior contribuição foi, sem dúvida, ter revestido de medicinal e científico o que não passava de lorota religiosa. Deus pensava: vou conseguir finalmente livrar-me de certos aborrecimentos.

Tissot entoava.

Quando o doente encontra-se em mau estado é preciso dar-lhe um remédio que o faça vomitar, depois um outro que o purgue a cabeça e em seguida um que o purgue pelas partes baixas. Não se esqueçam de que essa cura se faz sobretudo a partir do outono. Depois dos purgativos, daremos ao criminoso um leitinho com azeitonas durante quarenta dias. Nesse período, ele não comerá carne e evitará qualquer exercício venéreo e fará caminhadas longe do frio e do sol. Nos dias que seguirão esse primeiro tratamento, dar-lhe-emos uma flanela perfumada de incenso para que ele friccione os rins, a virilha, o pênis (se o criminoso masturbador for homem) e o clitóris (no caso de um criminoso masturbador do sexo frágil). Somente na última fase da cura é que os remédios secretos prescritos pela Onania Inglesa poderão ser administrados localmente. São eles: the strenthening tincture e the prolific powder.

Por uma questão de controle de qualidade, Deus tomou a iniciativa e foi, ele próprio, o primeiro a provar os remédios. Procurou o pintinho no meio daqueles mantos todos, pediu o frasco para Tissot e aplicou, como indicava o médico, um depois do outro, primeiro the strenthening tincture, em seguida the prolific powder. Putz!, eram fortes mesmo. Deu um revertério do diabo no Santo Senhor. No princípio foi a pele. Talvez Tissot tivesse exagerado no óleo de alcatrão mineral, porque o revestimento do Velho foi minguando e escurecendo feito carvão gasto. Ardia, gelava, ardia, gelava, num desconforto que vendo. Depois de meia hora de muita reza, conseguiram abrandar aquela pena toda. Deus olhou feio para os olhos de Tissot, que a essa altura eram pura misericórdia. Continuou olhando até não ver mais nada. Ou melhor, até ver coisas. Tissot talvez tivesse exagerado no pirocatecol. O Todo Poderoso babava e alucinava. Imaginem vocês a cena: o Velho Divino avistando o céu no lugar do inferno e vice-versa. Aquela anjarada privada de asas despencando na Terra, e a Terra, quem diria, redonda rodopiando e contornando o sol, não é possível: Galileu, Copérnico e o cosmos inteiro rindo, gargalhando, que pesadelo!

Mas que idéia. Tanto vagabundo, tanto leproso, tanto aleijado, tanto mongolóide, tanto preto, tanto sarraceno, tanto pagão, tanto infiel, tanto homem rapariga, tanta mulher devassa, tanta criança, tanto poeta, enfim, tantos sub-seres mais adequados à condição de cobaia e Deus foi eleger a si próprio para provar a maldita fórmula do suíço. É certo, não perdoaria nunca nem a si nem ao bruxo do Tissot.

estava elaborando a punição quando o excesso de C7H8O (Tissot talvez tivesse exagerado no ácido) correu e corroeu-lhe de vez as tripas. Deus berrou! não morreu ali mesmo porque era Deus. Mas o que sobrou do Divino era um espetáculo cujo horror desagradaria o mais robusto dos cristãos: uma espécie de cadáver, magricela, sujo, fétido, despejando pelo nariz um sangue pálido e aquoso, a carne e os ossos convulsionando, os olhos caçando moscas, o ânus diarreiando e a boca com nenhuma ou quase nenhuma respiração. Sem falar na desordem do espírito, incapaz de restabelecer o fluxo da memória nem de colar uma frase na outra: mim Deus, vós também, vós mim, mim também vós, masturbadores, assim seja, amém, Tissot, Copérnico, diabos, viva Galileu, viva Galileu...

Ninguém entendia uma vírgula.

É verdade, o quadro acima descrito era de uma bestialidade tremenda Não fossem os fiéis de Deus adoradores de sangue e chagas, tão ávidos por brutalidade, não se escusaria a impetuosa fidelidade deste relato.

O fato é que mal se reconhecia naquela figura babando no chão o herói que reinara outrora no céu e em todas as coisas. Dava .

Para alguns, entretanto, pecado maior era o fato de, depois de tanto sofrimento, o nome de Deus, tão pronunciado em todas as esferas do monoteísmo mundial, ter perdido para o nome de Tissot, um reles curandeiro suíço, o privilégio de dar o título a este discurso. Isso, sim, imperdoável.






Nereu Afonso da Silva

Nereu Afonso da Silva nasceu em São Paulo, em 1970. É autor de Correio Litorâneo, Editora Record, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2006, na categoria contos. Formado em filosofia pela USP, enveredou para o teatro. Foi um dos Doutores da Alegria (palhaços em hospitais). Hoje vive na França, onde escreve, atua, leciona e dirige para o teatro. Mantém o blog http://bombyx.wordpress.com.
E-mail: nereu.afonsodasilva@neuf.fr