Primeiro Adiamento
Ela precisa de lâminas como quem precisa de águas.
Adiamento Segundo
Tendo impressões de medo
Tendo impressões de sono
Tendo impressões de vida
Pegou uma lâmina, um creme de barbear. Então cortou uma lágrima no meio. Não era pelo cabelo que caía. Não era. Por isso. Totalmente lisa a pele, escorregada nos azulejos tingidos dos pretos cabelos, livres. Os pêlos estavam livres. Uma xícara de café frio. Outra angústia nos olhos. Não havia . Por quê? Era o muito sono que trincava as paredes daquele estábulo interno. Cavalo deitado. Silêncio. Sugou o nariz. O rosto gemia. Suavam os olhos. Empurrava. Pra que direção, soluço. Olhou para trás. De que lhe adiantavam varas, cosméticos, palavras, portas. Gritos sufocados. Chá. Debaixo da cama com dedos. Erros. Sucos. O leite em pó caindo da prateleira. Pernas cruzadas. Botões, botões, botões. Infinito um botão, impalpável. Serragens. Cabelos que doíam. Por para que doíam? Esticados, ficavam os sorrisos. Águas depois, sempre, todavia. Mais calma, mais calmo. Calos. Perebas, aonde. Nos fios. Penetravam os fios. As pedras entravam pelos pêlos joelhos. Furúnculos na bunda. Espelhos entre os dedos. Rasgos de gilete. Hematomas de depilação. Tudo entrando pelos fios. Um garfo cravado na mão do outro. Também saiu pelo cabo, e entrou pelo cílio. Fincou. Ferpas. Abobrinha e arroz, abobrinha e arroz, abobrinha e arroz. É como Perdas Vãos Acúmulos Nada Nada Nada Salva do afogamento Era uma casa muito engraçada não tinha teto não tinha Nada Nariz escorrendo no banheiro cabeludo A pele lisa pra não mais entrar Nada Sempre agora Nada Substituir as saudades depois Nada
Adiamento III
Campainha que não se move na sua anunciação.
Quarto
Adiamento
Colocou o sorriso do guarda no bolso. Bolso furado. Memórias amarelas carcomidas pela gravidade. As coisas caem, ela pensava. O guarda sorria sempre. Sorria como se não fosse guarda, como se não fosse roubado todo mês, como se ela não sofresse andar. A imagem daqueles dentes óculos bigode negro na parede do quarto sob a luz dos faróis. Reacendendo. Fogos de artifício, não. Boa tarde como quem passa pela árvore de todos os dias da mesma esquina, não. Dentes esticados e bochecha dolorida ao fim dos dias, não. Era um guarda que sorria no seu quarto escuro. Teria filhos, teria mulher, teria algemas? Teria medo, teria angústia, teria ódio? Teria aquele sorriso destroçado nos cacos do milésimo espelho cortado entre os dedos? Teria vômito dos azulejos com detergente? Teria inveja, epitáfio, sujeira? Teria pelos? Ânsia de desaparecer de todos os sorrisos e de não ter mais que tê-los? De pulos? Teria medo? Teria outro uniforme? Teria domingos de feira e missa? Teria brinquedo, brincado? Coragem. Com que mais audácia poria acima de tudo isso aquele? Com que mais humor fitaria os olhos doando pedaços? Com mais que terno assombraria um quarto daquele? Os carros diminuem, as horas aumentam, os dias não acabam. Pena não foi ter colocado o maldito sorriso do guarda no bolso. Pena o bolso ter furado. Suas pernas agora esfriavam não de morte. Pelos fios entrava descarnado o. Comia sua carne e roía seu osso, enfiando-se no branco turvo da memória. Amarelecendo. Sol. Sono.
Quinto adiamento
Sem mais palavras o desespero solta as sedas
Cobrindo-a
Sedando-a
Consumindo mais que com garras.
Estratégias de dor.
Novamente as lâmpadas opacas.
O velho pudor de novo
Joelhos e mãos:
abraço.
O ninho eterno do nunca mais a-feto.
Salivas nos dentes salgados
Doce ninar da respiração.
Batidas na porta
adiam
mais um quinto de chão.
Adiamento 6
. Não, nada. Isso se torna divertido depois que a consciência da inutilidade se torna. Voltando para. No início novamente. Outro começo. As primeiras linhas são sempre bem-vindas, por introdutórias. Antes dessa, aquela. Eu comecei tantas vezes. De trás pra frente. Adiamento. Sobre o. Ela era assim dessa definição vaga até então errônea talvez sempre. Não, ela não se entusiasmava muito. Ela era assim um pouco, diria ou não, entusiasmada com o nada. E com cortes, lâminas. E com espelhos, quebrados. Com o vazio. Com o opaco. Com a aceitação alheia. Com os reflexos insones de noite enquanto dormia de dia. É, talvez seja ela mais entusiasmada que se pensa. Principalmente superfície limpa. A superfície lisa. Os fios podados. Os fios crescendo podados. Tudo, acreditava, entrava-lhe pelos fios, pêlos, cílios. Dessa forma, óbvio, não tinha portanto nada. Sim? As dores voltavam. Os cortes. Como lembranças que escapam no intervalo de um cheiro voltado. Indecifrável não é. Longínquo quem sabe. De qualquer modo inútil. Ela não está presente agora.
IIIIIII Adiamento
Seus dentes rangidos
ocultando ruídos da alma mais cariados.
As grades perfurando os rins
a púbis
o seio.
A inércia do sentimento
colégio que nunca cursou.
O cabelo crespo gasto podre
de uma boneca que nunca queimou.
As cinzas dos cigarros fumados pelo ar
As horas dos relógios mastigados pelos cães.
As saias das brincadeiras do vento.
As migalhas dos recreios poupados.
Não pela dor da ausência da ausência
de presença alguma
Não pelo barbeador cego e sangrado
Não pelas mãos enrugadas de água
Não pela escuridão do quarto, do beco, do mundo
Não pela urina meio amarga
Não pelo chão
Pelas janelas abertas
Pelas folhas despejadas
Pelos bueiros
Pelo fim.
Não pela mesma porta que é entrada e saída.
Não existir pela vida
Tampouco deixar pela morte.
Não por nada
Não Perturbe Nunca
a perturbação eterna.
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MISSIVA DO POETA, CRÍTICO LITERÁRIO E PROFESSOR JAMESSON BUARQUE À POETA DHEYNE DE SOUZA
Sobre “Adiamentos” de I a IIIIIII:
Muitas vezes a poesia se esconde querendo ser nós mesmos. Por isso o formato de um poema ora tem formato de sino apto a soar sílabas, ora tem formato de respiração, ora tem formato do intervalo entre a dor que aponta na ponta da cabeça (para aguilhoar os olhos) e o apito da panela de pressão. É poeta com um programa estético resolvido, em processo ou incipiente, quem consegue transitar em no mínimo dois destes formatos. Obviamente, isso não é uma engenharia perniciosa. Há uma série de variações dentre um formato e outro e há, também, e isto é bom, muitíssima promiscuidade entre eles. É preciso, didaticamente, dividir os formatos para saber como nossa fala fala se dizendo poesia. Espero que entenda assim meu modelo de formatos. E eles não são paradigmáticos. Quando ouvi sua leitura dos “Adiamentos”, naquele dia no Sesc, fiquei com um intervalo fremindo labaredas de sorrisos na ponta da úvula. O que é isso? A poesia falando em no mínimo dois daqueles formatos. Você respira pelos passos da dor. Sabendo disso, no espírito e, quiçá, no albergue do raciocínio — o que menos vem ao caso —, você se desmede numa medida apropriada para cantar. Por que o “Adiamento Primeiro” é um aforismo? Porque você precisou fundar um mundo. Os “Adiamentos” formam um mundo possível numa possibilidade de mundos dentro do mundo que chamamos de realidade. (Essa é a fala mais recorrente de minha fala, porque ela é tão resolvida em minha reflexão que, uma vez que encontro a poesia de fato, preciso dizê-la à voz da autoria.) Os mundos são fundados por aforismos — desígnio óvulo-seminal da palavra, sobretudo, da palavra de dizer poesia. Todo mundo no Ocidente sabe que no princípio havia somente águas e que o poder de Deus pairava sobre elas. Há uma necessidade de águas toda vez que um mundo se assinala, por isso os deuses, em uníssono, são todos hidroglotas. Para começar o mundo possível dos “Adiamentos”, a potência coabitada por sua inteligência e sensibilidade golpeia seu martelo no nada, e das faíscas você fez escorrer o mundo de “ela”, senhora e súdita e casa e carta de “o”. Seu mundo começa de uma contração. Você se contrai, e porque toda contração é para dentro, você implode o fora gesticulando nada. Da implosão, de toda implosão, nasce o mais dentro ainda do que para dentro. E lá, toda a humanidade um dia, ou segundo que seja, faz hora. Em minha poesia, a mitologia que fiz para mim é quadrimórfica, a sua é unimórfica. A minha tem quadro formas porque sou hiperbólico desde as primeiras unhas — e não por haver melhor ou pior qualidade estética em relação a sua. Há o Vale que vale verde, a livroteca, o travesseiro e as ruas. Para tanto, preciso de quatro vozes: eu, Ranar, Manno e Jamesson Buarque. O primeiro se basta
Estou convencido: você é um exemplo alto do casamento entre inteligência e sensibilidade movidas a palavras que voam ainda que sangrem. E se disse que é, é incontestável. Uso método cartesiano. Mas meu cartesianismo é movido a sorrisos quando sabem flambar lágrimas e fazer de um guarda-roupa um planeta inteiro. Em outras palavras: sou dado ao condão do infinito.
Pérolas dos “Adiamentos”
“Ela precisa de lâminas como quem precisa de águas” (I)
“Então cortou uma lágrima no meio” (II)
“Campainha que não se move na sua anunciação” (III)
“Colocou o sorriso do guarda no bolso. Bolso furado” (IIII)
“Com que mais humor fitaria os olhos doando pedaços?” (IIII)
“Sem mais palavras o desespero solta as sedas” (IIIII)