Patchwork


Idols of Perversity

Este texto é dedicado, com muito carinho, aos alunos do 2.° ano A, matutino, e do 2.° D, vespertino, da Faculdade de Letras da UFG.

Na passagem do século XIX para o século XX, as mulheres se tornaram criaturas reverenciadas e, ao mesmo tempo, temidas. Bram Dijikstra, no livro Idols of Perversity: Fantasies of Feminine Evel in Fin-de-Siècle Culture (1988), registra a crescente preocupação da sociedade, especificamente dos artistas, em relação ao perigo do poder feminino. Salomé foi o arquétipo da mulher fatal que emergiu na arte da época. Esta femme fatale da mitologia judaico-cristã articulava os perigos do olhar (sedução) e da decapitação (castração).

A peça Salomé, de Oscar Wilde, contribuiu muito para dar à personagem centralidade e autonomia sexual dentro de sua própria história. Wilde escreveu a maior parte do texto de Salomé em Paris, em 1891, possivelmente após ter visto as pinturas de Gustave Moreau sobre o mesmo tema:

Salomé exige a cabeça de João Baptista, de Gustave Moreau

No Novo Testamento, nos livros de Mateus e Marcos, vemos que Herodias motiva e orquestra todos os eventos que levam à decapitação de João Batista, para satisfazer seu desejo de vingança. Porém, na peça de Wilde, é a princesa Salomé que satisfaz seu próprio desejo de vingança através do espetáculo erótico de sua dança. Ela é sujeito de seus próprios desejos, como ela mesma declara: “Não escuto minha mãe. É para meu próprio prazer que eu peço a cabeça de Jokanaan em uma bandeja de prata” (Wilde, 1993, Obra Completa, p. 614).

A Salomé, de Wilde, é descrita com a palidez e a frieza de uma vamp, mas são as ilustrações de Aubrey Beardsley, de 1894, para a peça, que lhe atribuem uma aura realmente demoníaca:

Salomé, Aubrey Beardsley, 1894

Richard Strauss assistiu a uma das primeiras representações de Salomé na Alemanha e, a partir do texto de Wilde, escreveu o libretto para a sua ópera Electa. Na obra de Srauss, Salomé é identificada com a personagem Clytemnestra, uma femme fatale tão perversa quanto sedutora, cuja face se confunde muito mais com uma máscara de artificialidade:

Anna Bahr-Mildenberg como Clytemnestra em Electra de Richard Strauss, 1909

A visão dos artistas da mulher fatal se associava a uma criatura fria, perversa, sensual, com sede de sangue e vingança e que, negando a própria natureza, se transformava num ser artificial e estéril.

Salomé passou a ser o modelo dessa mulher, tanto que quando Klimt criou suas representações de Judite, elas logo passaram a ser denominadas de Salomé pelo público austríaco, mesmo sem a aprovação do próprio Klimt:

Judite I (Salomé), Klimt, 1901

Segundo o livro de Judite, do Velho Testamento, a cidade israelita de Betúlia estava sobre um forte cerco assírio, prestes a se render. Judite, uma viúva conhecida por sua sabedoria, concebeu um plano para salvar a cidade. Em preparação, vestiu-se com belos vestidos e ornamentos, embelezando-se a fim de seduzir os homens que a vissem. Como esse “fantasiar-se” não decorria de sensualidade, mas de virtude, o Senhor aumentou a sua beleza para todos os olhares masculinos. Tendo chegado às linhas inimigas, convenceu o comandante assírio, Holofernes, de que tinha um plano viável para tomar Betúlia sem perdas assírias. Para comemorar, ele organizou um banquete em homenagem a Judite, embora, secretamente, tencionasse possuí-la. No final dos festejos, quando os dois ficaram sozinhos, Holofernes foi “afogado” pelo vinho. Judite aproveitou a oportunidade para cortar-lhe a cabeça com dois golpes de espada. Ela voltou para Betúlia antes do feito ser descoberto. Quando a notícia foi divulgada, os assírios ficaram confusos e fugiram.

O fato das duas Judites de Klimt terem sido retratadas semi-nuas e com a expressão de um “orgasmo assassino”, ao invés de representarem a virtuosa viúva judia, levou as duas obras a serem identificadas com a figura da femme fatale Salomé:

Judite II (Salomé), Klimt, 1909

O perigo relacionado à mulher fria, perversa, artificial e estéril parece não ter desaparecido com a aproximação do século XXI. O poema “Os Manequins de Munique”, dos anos 1960, de Sylvia Plath e a instalação Manekin-corpse, do coletivo Autoconstrutores, de 1996, nos deixam uma aguda impressão final sobre este tema:

A perfeição é horrível, ela não pode ter filhos.
Fria como o hálito da neve, ela tapa o útero

Onde os teixos inflam como hidras,
A árvore da vida e a árvore da vida.

Desprendendo suas luas, mês após mês,
sem nenhum objetivo.

O jorro de sangue é o jorro do amor,
O sacrifício absoluto.

Quer dizer: mais nenhum ídolo, só eu
Eu e você.

Assim, com sua beleza sulfúrica, com seus
sorrisos

Esses manequins se inclinam esta noite
Em Munique, necrotério entre Roma e Paris,

Nus e carecas em seus casacos de pele,
Pirulitos de laranja com hastes de prata

Insuportáveis, sem cérebro.
A neve pinga seus pedaços de escuridão.

Ninguém por perto. Nos hotéis
Mãos vão abrir portas e deixar

Sapatos no chão para uma mão de graxa
Onde dedos largos vão entrar amanhã.

Ah, essas domésticas janelas,
As rendinhas de bebê, as folhas verdes de confeito,

Os alemães dormindo, espessos, no seu insondável desprezo.
E nos ganchos, os telefones pretos

Cintilando
Cintilando e digerindo

A mudez. A neve não tem voz.

Manekin-corpse, Coletivo Autoconstrutores (1996), Roma






Patrícia Ferreira Martins

Patrícia é artista plástica e, atualmente, doutoranda em letras e lingüística pela UFG. Adora música alternativa na linha punk rock e grindcore. Também adora literatura, assistir televisão, surfar na internet, comer pipoca no cinema e tomar mirinda com os amigos. É casada com o Wellington.
E-mail: patricia@wsmartins.net