VIVER DÓI!



Mais das dores e um quê de amor


Tudo é um soluço, ôi, ôi, soluço inerte.

Ninguém, ninguém, ninguém. Nem os ciprestes.

A morte é surda. Amém nos teus ouvidos.


O céu mata, o sol mata, a mão também.

Quem é que está jorrando sangue sem

Espelho para ver-se em fronte rubra?

(JORGE DE LIMA)


“Trapo de língua é boca cheia de retalho!”, dizia um poeta em tempo outro senão esse de agora nós. Disso eu falo agora, mas com transpiração desnecessária (desculpo-me, em tempo) mas a agonia está em nós de pronto. Eu nem sabia nem sou sabido de que o poeta é receptáculo de angústias, acho que é o que é: é mesmo um gozador, no sentido eros-escatológico do termo e do ermo.

Um dessas espécies já adiantei aqui e adiante, no texto “cacos de dores” – mas isso não é somente uma contradicção, afinal, se o gozo é morte pequena, a dor de todo dia, aos cacos, deve ser uma gozada solitária, um suicídio pequeninamente temporário de quem tamanho não é documento. O que nos lembra o diminuto e bem dotado sátiro: ecce poeta. Havia citado apenas alguns de seus versos: “O menino nasceu entre a lama e a faca/um deus de bermuda, um pé de chinelo/imperador do morro, reizinho nagô/o corpo fechado por babalaô”.

O nome do poeta João Bosco são dois. Não digo os vocábulos (João e Bosco), digo que ouvíamos no rádio e nos discos uma canção da fuleragem e dos escombros e dos subúrbios em que falavam dois nomes: João Bosco e Aldir Blanc. Recentemente, João é do mundo, “ê, João!”. Foi escavocar raízes nos lados orientais, depois do Japão, junto aos seus desertos e calores; foi o seu filho quem lhe apresentou na contramão “As mil e uma aldeias” e depois outros pout pourris. Também conheceu-se muito quando formou um triunvirato com a saudade que temos de Wally Salomão (“eu vou tomar aquele velho navio” e tomou) e o que sabemos guardar de Antônio Cícero. Não se pode deixar esse mundo de meu deus sem ouvir, ao menos uma vez, mesmo que Diogo Mainardi deteste, uma canção cujos versos dizem verdades como “sábios costumam mentir” e que começa com uma esquizofrenia surrealista como “estrelas no escuro e fenômenos do vir a ser/que os deuses me invejem, eu dou tudo por mero prazer”.

Entretanto, em um agora que foi dantes, sou forçado a me danar e me doer sem Wally Salomão nem Antônio Cícero e nem mesmo Aldir Blanc.

“Ai ai ai de mim” — pois é, ai ai ai de mim mesmo! — é o nome do disco em que João Bosco nos eleva à agonia da “morte surda” com a canção “Das dores de oratórios”. Não é somente uma canção sobre uma noiva que grita e chora, mas de um menino que assiste a essa cena ao passar pela porta de um cemitério, conforme o testemunho adolescente do próprio autor.

Enquanto fumo mais um cigarro (não consigo parar!), leiam novamente os versos:

Porque o amor é como fogo

Se rompe em chama

Não há mais remédio...

(solos de violão)


Foi por amar

Que ela — iôô iô iô — se amasiou com a tal solidão do lugar

Iééé!

Foi por amar

Que ela — iôô iô iô — só pecou nas noites de sonho ou gozar

Iééé!

Foi por amar

Que ela — iôô ôi iô — só ficou só ele a deixou só estará (Uhn!)

Foi por amar


Foi no altar

Que ela — iôô iô iô — noiva que um andor podia carregar

Iééé!

Foi no altar

Que ela — iôô iô iô — dor que a própria dor de das dores será

Iéé!

Foi no altar

Que ela — iôô iô iô — não virá não, ele virá não, não virá (Uhn!)

Foi no altar (Aiii!)


Era um lugar

Era — iôô iô iô — Salvador, Maria de Antônio e pilar

Iéé!

Era um lugar

Era — iôô iô iô — seja o que gastou de tanto esperar

Iéé!

Louca a gritar

Ela — iôô iô iô — esquecer, quem há de esquecer o sol dessa tarde?! (Uhn!)

Sol a gritar... (Aiii!)

(choros de violões)

Tentei escrever os efeitos vocais e instrumentais, mas é inútil. Porém, deve-se saber que o cantor e os instrumentos gemem por contaminação. Também é bom ouvir em alto volume, para sentir o efeito do que significa ter o (nosso) choro abafado.

Como Jorge de Lima lembra, o pior da morte é que ela é surda, embora isso não baste para que deixemos de gritar e chorar. E não pensemos que isso ocorre somente porque protestamos sobre seus atos, pois meu compadre Finado Túlio há muito profere impropérios à vida, a fim de cortejar a morte por intriga, mas a “indesejada das gentes” não ouve Túlio (e Túlio é gente!?).

“Quem há de esquecer o sol dessa tarde?”: “o sol mata”. Diante daquela cena, o menino sentiu-se no lugar (em que “a dor que própria dor de Das dores será”) de ouvir o que a morte não queria (ou podia?). João ouviu Das dores. Ela, noiva, virgem, viúva desejava não ser; todavia quem deveria vir, para fazê-la não mais ser, não virá. Faltou o noivo, e não as cinco virgens imprudentes da parábola cristã.

Mas João 1:1 diz “E o verbo se fez carne”. Tudo o que a noiva virgem disse em seus oratórios João canificou em música — “a mão também”— e foi assim que seu punho, que escreve e toca, a desvirginou com o seu semen est verbum dei: um gozador, um põeteiro, um poeta. “Quem é que está jorrando sangue sem/espelho para ver-se em fronte rubra?”



Nilson Pereira de Carvalho

nilson pereira de carvalho foi inventado à base de amizade com o sol e a lua, desde criança e a fazer histórias com naipes de baralho, como a Alice que não mora mais aqui. Estudar letras ocorreu antes de fazê-lo na UFG, hoje, disserto, busco contrair doutorado em tesão sobre o de Chico Buarque em suas obras. Os documentos rezam goiano, mas, si mesmo, rezo olhano para todas as cidades, do céu ao inferno, que deus as tenham, pois o diabo jaz. São longos os quarenta anos e já vãos tardes quentes a ressecar a pele negra e sangue mofo e frio, qual a vida que faz doer meu compadre, o Finado Túlio, de quem literopsicografo uns poemas aí.
Email: noslinnilson@yahoo.com.br