Êxtimo


ELITE EM TROPA

Antes de ir ao cinema ver Tropa de Elite, eu via pela televisão uma reportagem em que dois traficantes apareciam descendo em disparada um morro do Rio de Janeiro, tentando escapar da mira dos fuzis dos policiais que atiravam de um helicóptero. Um deles cai, desce rolando morro abaixo, levanta-se, continua a correr. Em seguida é dito — pois não há cenas sobre isso — que ambos foram mortos nessa verdadeira operação de guerra da polícia carioca. Fiquei impressionado com o fato de nenhum jornalista mencionar outro fato, o de eles estarem desarmados, e serem simples alvos em movimento. Será que esses traficantes atingiram algum policial e por isso deveriam morrer? Mas não bastaria atirar na polícia para estarem condenados?

Isso nos faz lembrar de um artigo polêmico do filósofo Renato Janine Ribeiro, em que ele comentava o horrível assassinato do menino João Hélio. A polêmica foi deflagrada por ele expressar seus sentimentos de retaliação contra os assassinos, que “deveriam ter uma morte hedionda, como a que infligiram ao pobre menino”. Renato também acrescenta que torce “para que, na cadeia, os assassinos recebam sua paga; torço para que a recebam de modo demorado e sofrido”. Tropa de Elite mostra o preço que se paga quando a própria polícia, na figura do capitão Nascimento, se incumbe de fazer justiça com as próprias mãos. O resultado é a proliferação descontrolada do crime, da violência e da corrupção.

Temos que reconhecer, Tropa de Elite se apresenta como o porta-voz de uma crítica a um sistema de segurança que, tal como o filme nos mostra, está falido. Vemos prevalecer o desrespeito não só à lei, mas à própria dignidade humana. O filme, que toma como modelo o BOPE (Batalhão de Operações Especiais) do Rio de Janeiro, nos mostra não apenas uma estrutura policial falida, mas concebida em moldes que só podem produzir o pior: a corrupção, o crime, a crueldade do policial na relação com o bandido, o que de modo algum faz deste um bom mocinho. Vemos que a instituição encarregada de cumprir a lei possui, impunemente, suas próprias leis. A mais conhecida delas é: “se matar policial, está morto”. Outro exemplo é dado pelo diretor de Tropa de Elite, José Padilha, numa entrevista a um programa na TV Cultura: “se a polícia do Rio aborda uma pessoa que está armada, a ordem é atirar”. Nessa entrevista Padilha defende a tese de que esse modelo de polícia deve ser substituído, pois, ao invés de proporcionar um combate eficaz da violência, ele apenas a alimenta.

Eis a crítica desferida pelo filme. Eis também o ponto a que não iremos nos opor, pois ele traz o fio cortante de uma verdade, que se impõe na mídia e fora desta. Basta mencionar o sucesso que ele teve como DVD pirata. Trata-se de um modo de circulação típico da verdade, que muitas vezes tem de ser pirateada. Que nem todo mundo tenha essa mesma leitura sobre o filme, que alguns, por ex., tomem partido da posição de defesa do modo de agir proposto pelo Capitão Nascimento, é um fato que não muda em nada isso que o filme nos traz. É preciso ver que muitas pessoas não estão abertas para ver o que tem para ser visto. E os motivos podem ser das mais variadas espécies.

A questão, no entanto, é que lá onde esse filme é bem sucedido, justamente aí, encontramos seu ponto fraco. Tudo em Tropa de Elite, todas as cenas, convergem para um conjunto de significações unívocas. Este filme é a tradução, nos mínimos detalhes, de uma tese sociológica. Tudo o que acontece nele não tem outra finalidade a não ser nos levar a concluir aquilo que o próprio Padilha e Luis Eduardo nos dizem (no referido programa televisivo), e que descrevemos acima: que este modelo de polícia é nocivo tanto para a população quanto para o policial etc.

Tomemos o Capitão Nascimento, a quem o filme não esconde ser um criminoso, mesmo que não nos leve a odiá-lo. Certamente, há uma certa simpatia que acabamos tendo por ele. Se ele é, num certo nível, poupado da condenação de expectador, é porque realmente é condenado e é o sistema policial que não lhe deixa escolha. A simpatia por Nascimento, apesar de todos os seus atos cruéis, é devido a sua boa intenção. É o seu lado bom que o leva a desejar sair do BOPE para poder preservar seu casamento. Ele é um homem preocupado com a vida de seus homens (ele se revolta com a ordem de subir o morro numa posição vulnerável dizendo: “mas senhor, vai morrer policial nisso”). Heroicamente, ele não se deixa corromper. Sofre quando é procurado por uma mulher que perdeu o filho por bala perdida. Ele comemora o nascimento de seu filho, deseja estar mais presente em casa e ser um bom pai. E no final ele é quem lidera o fazer justiça com as próprias mãos, se vingando dos traficantes que mataram um policial. São essas “boas ações e intenções” de Nascimento que fornecem um ponto de apoio para que certo público se identifique com ele até em seus atos mais inaceitáveis. A idéia de que “é assim (com violência) que se deve tratar bandido” não seria possível a alguns se não houvesse essa ancoragem na boa intenção e bondade do personagem, a não ser para um autêntico perverso.

Neste sentido, o capitão vive seu conflito: tem de salvar seu casamento, mas tem de permanecer no comando de seu batalhão, já que não consegue arranjar um substituto à altura de seus ideais. Ele escolhe a permanência na polícia, o que leva sua esposa a deixá-lo. Por fim, ele encontra um substituto, Matias. Só deixando a polícia seria possível refazer sua família. Em outras palavras, esse conflito vivido pelo Capitão Nascimento só quer dizer uma coisa: participar dessa polícia é algo incompatível com uma vida social digna. Essa polícia exclui o policial da vida social.

Tropa de Elite é, no entanto, ainda mais didático quando nos conta a história de Matias, aquele que, no final das contas, será o substituto de Nascimento. Não precisa de muito esforço para perceber que a história de Matias é uma repetição, mutatis mutandis, da história de Nascimento. Matias é originalmente bom, honesto, justo, bem intencionado, estudioso, mas tudo isso terá de sofrer “ajustes” para que ele se torne “um verdadeiro policial do BOPE”. Esse caráter positivo de Matias lhe permite romper difíceis obstáculos sociais: ele é um negro pobre que supera as barreiras de raça e de classe ao namorar a bela, branca e rica colega de faculdade. Mas o filme nos mostra que essas conquistas vão por água abaixo pelo fato de ele ser do BOPE, e quem é do BOPE, como diz o Capitão Nascimento, não se mistura com essa gente das classes elevadas que sustenta o tráfico comprando droga. Assim, se a polícia fosse outra, seu namoro não teria tido o destino que teve, não teria de se isolar socialmente. Não teria, no final do filme, se tornado assassino. Aliás, se na última cena, em que o Matias atira na cara do traficante, a arma aparece apontada para a câmera, para o expectador, é porque ela quer significar: “com essa polícia não seria impossível que fosse você quem estivesse sob a mira dessa arma”.

Quem viu o documentário Ônibus 174, do mesmo diretor, deve se lembrar que nas últimas cenas — em que Sandro, o menino de rua que seqüestrou o ônibus 174, é levado pela polícia dentro de um camburão — ouvimos em off a voz do sociólogo e ex-Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Luis Eduardo, fazendo uma análise sociológica da situação caótica da segurança pública e dos meninos de rua no Rio de Janeiro. Mas em Ônibus 174 esse discurso só prevalece no final, antes, o que vemos é a complexidade dos fatos, das histórias narradas, das opiniões (de traficante, de policiais, de passageiros etc.); uma complexidade que multiplica as possibilidades significativas e suplanta a vontade de impor uma leitura. Mas em Tropa de Elite, embora não haja voz em off desse sociólogo, só a do capitão, o que vemos é como que uma amplificação, um domínio generalizado daquilo que no documentário era mais tímido. E quando me lembro da competência, mestria e destreza com que José Padilha respondia às questões no programa da TV Cultura, nos mostrando como esse modelo de polícia está falido, e tendo Luis Eduardo na retaguarda, pois este também estava presente, bem munido e a postos, sou levado a formular, a contrapelo de Tropa de Elite, o que me parece ser uma das condições exigidas pelo fazer artístico. O fazer artístico implica em se deixar levar rumo a um certo desconhecido, não programado, não pré-estabelecido. Neste sentido, implica um certo perder-se e ter como apoio o terreno inseguro e opaco da intuição. Padilha, ao contrário, sabe exatamente o que fez, fez uma bela crítica, realizou um projeto nos mínimos detalhes e de forma muito bem sucedida. Mas a que preço?








Cristiano Alves Pimenta

Nascido em Goiânia, vivido na velha, ou não tão velha, Vila União, logo começou a ler coisas por conta própria e se deparou com uma epígrafe de autoria de Antonio Gramisci: “Todos somos filósofos”. Pronto! Primeiro raciocínio propriamente filosófico: “Se todos os homens são filósofos” (premissa maior), e “Cristiano é homem” (premissa menor), logo: “Cristiano é filósofo”. Tornou-se, então, um jovem filósofo, amante da verdade, leitor de K. Marx, Sartre, Hegel, entre outros. Foi salvo da megalomania apenas pela humildade, que o obrigava por à prova os produtos dessa ratio pessoal. Tortuosos caminhos o levaram, contudo, da faculdade de filosofia (USP) para a psicanálise Freudo-Lacano-Milleriana. Outro pronto! O amor à verdade caiu. Hoje, mais lhe vale uma “ilusão útil” (Baudelaire) do que mil verdades inúteis.
E-mail: cris.alvespimenta@yahoo.com.br