Neuropop
GUERRA NAS ESTRELAS
A economia mítica
Em Guerra nas Estrelas, os Cavaleiros Jedi remetem, ao mesmo tempo ao homem santo e ao herói. O conhecimento da força torna o Jedi um sábio extremo e um guerreiro virtuoso, características centrais de um e de outro, respectivamente. A habilidade com o sabre de luz, usado de forma precisa, implacável e impassível, remetem ao samurai, ao cavaleiro de capa e espada medieval, ao espadachim e ao cowboy. A capacidade de pressentimento do futuro imediato e distante, de manipulação da força para mover objetos à distância e, nos casos mais extremos como em Yoda, de emissão de raios mortais contra o inimigo, remetem aos bruxos e sábios budistas e yogues. A estes dois últimos os Jedi se assemelham ainda pelo papel da meditação em seu conhecimento do sagrado. O altruísmo, ascetismo e castidade remetem à disciplina extrema dos yogues e monges budistas e cristãos.
Os personagens centrais dos filmes, por sua vez, são um composto de personagens míticos do ocidente e oriente. Yoda é principalmente uma espécie de sábio maior, um misto de mestre yogue, Dalai Lama e Papa: trata-se de um quase santo e dentre os viventes (já que não se trata de um humano) é o que mais conhece a força. Mas é também um poderoso guerreiro e um espadachim inigualável, pois o conhecimento da força proporciona, ao mesmo tempo, sabedoria e belicosidade, embora, nele, a primeira seja o elemento predominante: é mais um homem santo que um herói. Obi-Wan é sua contra-parte, pois é um sábio, sem dúvida, mas trata-se, antes de tudo, de um guerreiro, um homem de ação, decidido e, não raro, bem humorado, um composto de cowboy, espadachim e samurai. O personagem central, Anakim Skywalker, o que, segundo a profecia, traria equilíbrio à força, já está em outro plano, o do herói mítico, o mortal superior a todos os outros ou o semideus, com um pé na mortalidade e outro na divindade. Neste aspecto, Anakim e seu filho, Luke Skywalker, remetem diretamente aos heróis gregos sofredores Hércules e Prometeu. Mas também aos sábios supremos, homens-deuses, como Buda e Cristo, que rearranjam o equilíbrio sagrado do mundo.
Sem dúvida, Guerra nas Estrelas é uma narrativa mítica, não só pela compilação de mitos de várias épocas e culturas, mas inclusive por sua estrutura, ou seja, pelo modo como amalgama esta variedade. Numa entrevista sobre o filme, George Lucas diz que, como na poesia, o filme rima as cenas, ou seja, há recorrência de fatos que remetem a outros, analogias entre acontecimentos (e entre coisas). E ele tem razão. Por exemplo, em duas cenas capitais da história (talvez as cenas centrais) acontece esta circularidade analógica entre os eventos que caracteriza o mito. Na primeira cena, no episódio III, Anakim impede o poderoso Mace Windu de matar Papatine, selando o destino do primeiro como Sith (o anti-Jedi do lado escuro da força) e do segundo como déspota da Galáxia, que passará de república democrática a império despótico. Na segunda cena, ocorrida no fim do último episódio, o mesmo Anakim (agora Darth Vader), salva seu filho Luke Skywalker, matando o mesmo Imperador cuja vida ele salvara no episódio III, o que faz Anakim se redimir e retornar para o lado luminoso da Força (mesmo depois de morto), determinando o fim do Império e a volta da república. Não só os acontecimentos são análogos, mas também as circunstâncias. Em ambos os casos Anakim assiste a agonia das vítimas de fora da luta, mas perto o bastante para nela interferir e salvá-las, se quiser. E em ambos os casos ele decide intervir e impedir o assassinato, e ambas as vezes por amor: quando salva Palpatine ele o faz por amor a Padmé e por amor a seu filho impede o mesmo Palpatine de matá-lo,na segunda cena. O mesmo amor passional (condenável num Jedi, pois implica no medo da perda, caminho para o lado obscuro da Força) que o arrasta para o lado obscuro da Força, paradoxalmente o faz retornar para o caminho Jedi. Outra característica mítica da narrativa é a composição das personagens, cujas ações são uma espécie desdobramento de disposições arquetípicas suas. Ao contrário do romance, no qual o herói é o resultado de suas peripécias (o desdobramento das ações resultam no sujeito formado), no mito, as peripécias são o desdobrar de disposições iniciais pré-formadas ou potenciais: no mito o herói não aprende como no romance tradicional que quase sempre é uma narrativa de formação. Assim, Yoda é o sábio e sua performance durante a saga será principalmente de atos de sapiência, como a de Obi Wan será de heroísmo. Neste aspecto, Anakim se compõe de arquétipos conflitantes, pois se ele é o herói salvador por excelência, também o habita a figura do traidor: Anakim é, ao mesmo tempo, Jesus e Judas. Talvez este seja o sentido da profecia do escolhido que trará equilíbrio à força, não o que os Jedi lhes dava de eliminar os Sith, mas o de transitar nos dois lados da força. Neste sentido, Anakim remete aos deuses ambíguos, como Hermes, o mensageiro astucioso, que transita entre o mundo terreno (baixo) e o celestial (elevado): o Exu do candomblé também faz o mesmo percurso.
A despeito da utilização do tesouro mítico de várias culturas, Guerra nas Estrelas acomoda-os no maniqueísmo da Força, uma potência abstrata que governa a vida no universo. No entanto, trata-se de um maniqueísmo muito particular, pois embora haja diferença efetiva entre os lados obscuro (mal) e luminoso (bem) da força, trata-se de dois pólos de uma mesma substância abstrata, ou seja, embora seja clara a diferença entre bem e mal, eles se distribuem numa escala contínua: daí o medo e o amor passional ser uma espécie de limiar entre os pólos, pois são sentimentos que misturam altruísmo e ódio, situados nos extremos opostos da força. Tal maniqueísmo não comporta, então, o bem e o mal absolutos, e muito menos a personificação destes pólos em seres como Deus e Diabo, pois suas polaridades são reversíveis (veja-se o trânsito de Anakin, do bem para o mal e novamente ao bem). Esta reversibilidade de um princípio vital supremo, abstrato e impessoal, recupera tradições religiosas orientais, como o taoísmo, com sua dualidade yin/yang, e principalmente o budismo, no qual o jogo entre a iluminação e a obscuridade é análogo ao do filme.
Épica do capitalismo
Guerra nas Estrelas, a princípio, parece sintetizar mitos e religiões de várias culturas numa fábula mítica extremamente bem armada, projetando-os num futuro (embora a introdução advirta o espectador que a história se passa “numa galáxia distante, a muito tempo atrás”, trata-se obviamente do tempo por vir) extremamente avançado tecnologicamente. O arcaísmo (mito) e futurismo (ficção científica) extremos da saga dos Skywalker explicariam duplamente o fascínio que o filme exerce sobre uma multidão de pessoas, pois nele se casa o poder intemporal do mito com a paixão do homem moderno pelo futuro que é, nos dizeres de Octavio Paz, o tempo por excelência da modernidade.
Tal explicação reforçaria a idéia de universalidade do mito, cuja dispersão em mitos particulares através da história e das culturas, seria, nada mais nada menos que a atualização de uma matriz mítica universal do homem, seja esta matriz a abstrata estrutura simbólica que o estruturalismo antropológico tanto procurou, seja o substrato arquetípico inscrito na alma do homem em geral, como quis Jung. A bem sucedida síntese mítico-religiosa de Guerra nas Estrelas seria um indício (ou até uma prova, para os mais entusiasmados) do quanto os mitos das mais variadas culturas dialogam e, no seu substrato mais profundo, são análogos. Dessa analogia geral dos mitos decorre a sua universalidade, que é também a do homem. Até mesmo nossa a paixão pelo futuro, que a ficção científica exprime com tanto sucesso, não deixa de ser uma vertente mítica constituinte do homem (o fogo de Prometeu, a nova fé de Jesus), que o Ocidente teria atualizado com mais insistência e vigor que as outras culturas.
No entanto, talvez não haja apenas a síntese mítica em Guerra nas Estrelas. O procedimento estético do filme, aliás, parece ser o que Deleuze e Guattari chamam,em seu Antiédipo, de descodificação dos fluxos. O que no passado e nas várias culturas eram sinônimos de constituição fundamental dos homens, ou seja, o que codificava e perfazia essencialmente o seu ser, perde sua constituição original e seu caráter fundador (descodificação) e é recodificado no fluxo-geral da fábula. Mas esta recodificação não dá mais aos mitos (ou ao mito) o caráter de fundação que ele possuía nas fábulas originais: no filme, o prazer da fábula subjuga o seu poder sagrado. Se este ainda se manifesta no filme, é como potência segunda, como eco ou sombra de sua substancialidade original.
O mais intrigante, porém, é que em Guerra nas Estrelas, esta primazia do prazer da fábula, que ocorre por meio da descodificação mítica (de resto, muito comum no cinema comercial norte-americano, principalmente na ficção científica), encontra-se expressa no interior da própria fábula, na figura da Força, um fluxo contínuo, abstrato, polarizado e até mesmo mensurável (na forma de contagem de midi-chlorians), que descodifica, absorve e recodifica, na economia estética do filme, os mitos mais variados. Tal descodificador geral dos mitos remete ao movimento do descodificador geral dos fluxos na sociedade capitalista, o capital, fluxo de todos os fluxos, que vai permitir ao Ocidente a modulação e absorção das outras culturas (do outro) em seu incessante movimento despido de pontos absolutos de apoio (ser ou mito fundador) mas que, no entanto não prescinde destes mesmos pontos de apoio, mas relativizados. Assim,o estado, no capitalismo não é simbolicamente calcado num poder divino (lei absoluta de deus), mas no estado de direito, ou seja, num corpo leis, móvel e laico. A Força em Guerra nas Estrelas necessita que a mitologia e seus heróis subsistam, como o capitalismo precisa do Estado, mas sob os rigores do seu continuum abstrato e polarizado.
Talvez o fascínio de Guerra nas Estrelas esteja não em seu arcaísmo ou futurismo, mas exatamente em sua extrema atualidade, em sua engenhosidade em efetuar, na economia interna do filmeverdana (na Força), o movimento de descodificação geral dos fluxos que, ao mesmo tempo que preserva a sombra (ou eco) das substâncias originais que descodifica, as recodifica sob outro regime. Então, o sucesso do filme estaria em representar ou refletir o funcionamento estrutural do capital em nossa sociedade? As idéias de representação, reflexo, ou mesmo refração não são um bom ponto de partida, pois supõem, por um lado, um real representado (e mais verdadeiro ou pelo menos verificável empiricamente) e, por outro, sua representação simbólica, a obra estética, produto de segunda mão, derivado da realidade: a arte como metáfora, conotação ou forma que se move sobre o fundo de verdade do real.
Esta idéia da obra como representação, que vê na sua estrutura estética uma denotação (inclusive em suas versões sutis de refração, distorção ou contraposição) das estruturas sociais historicamente formadas permeia uma certa crítica de matiz sociológico, não raro de formação marxista, que ressalta o vínculo entre arte e sociedade. O mito, nesta perspectiva, representaria, em sua estrutura narrativa, as relações de uma dada sociedade em um momento específico de sua história. Esta perspectiva tem a vantagem de evitar a interpretação universalista dos mitos, principalmente em sua tendência de ver em cada mitologia particular a atualização de um tesouro arquetípico primordial, universal e transcendental: tal tesouro seria, portanto, a expressão de uma suposta essência do homem. A desvantagem desta perspectiva mais sociológica é a de insistir na idéia de que o estético (simbólico) representa o social (de base material) historicamente formado, numa espécie de separação cristã entre corpo (real social) e alma (representação estética), valorizando, ao contrário do cristianismo, o material.
Portanto, dizer que a descodificação dos mitos que Guerra nas Estrelas promove em sua estrutura estética corresponde ao processo de descodificação geral dos fluxos que o capitalismo (ou a modernidade) promove, não significa que a Força representa, na economia estética do filme, o papel que o capital desempenha na economia (material e simbólica) da ‘sociedade real’. Talvez seja melhor colocar a coisa em termos de desejo, de organização (ou formação) do desejo numa dada sociedade. O capitalismo procede por uma incessante descodificação e recodificação dos fluxos, para os quais não há origem nem fim fixos (nem princípio, nem finalidade). O capital, nesta perspectiva, não é o real representável, mas uma espécie de (des)limite de descodificação de todos os fluxos, não a medida de todas as coisas, mas o fluxo que desloca todos os limites estabelecidos, o limiar a partir do qual os outros fluxos do desejo (de trabalho, de fé, de arte etc) serão descodificados e não mais se cristalizarão em torno de qualquer absoluto, embora haja cristalizações precárias (relativas) de fluxos: identidades individuais, regionais, nacionais, religiosas, estéticas: o indivíduo e as tribos do mundo atual.
O deslocamento dos mitos que Guerra nas Estrelas faz com tanta eficácia, descodificando e recodificando-os no fluxo abstrato da Força é, não a representação do ‘real da sociedade capitalista’, mas uma efetivação não menos real da descodificação capitalista. O fato desta efetivação se dar no plano simbólico não quer dizer que ela seja a representação de uma matéria original, ou seja, o filme (qualquer filme ou narrativa) não é uma forma estética derivada de uma forma histórica primeira, mas ambas as formas são co-ocorrentes e primeiras no mesmo espaço social. A forma da arte não é filha das formações sociais, mas ambas são órfãs e sua relação, menos que de causalidade ou eugenia, é de interferência recíproca, como se as cadeias simbólicas e materiais da sociedade estivessem numa situação de entrelace contínuo e assimétrico, violando-se mutuamente.
O facínio que a síntese de mitos que Guerra nas Estrelas exerce não significa que nós, ocidentais ou ocidentalizados, participamos de uma “universalidade mítica”, ou seja, o gosto pela mitogia não revela nossa universalidade. Ao contrário, este gosto é a efetivação de uma particularidade da cultura ocidental, que é a ambição cosmopolita de síntese de todos os mitos, a ânsia por compilar e digerir todas as tradições, crenças e mitologias. As outras culturas se conformam (na verdade, se comprometem) com os mitos de sua tradição específica e, quando muito, estabelecem um universal a partir de suas raízes particulares, enquanto nossa sociedade sem mitos de origem não cessa de compilá-los, deslocá-los e relançá-los, não raro em busca de uma matriz abstrata de todos eles na esperança nostálgica de uma refundação da origem, própria das religiões atuais e de algum pensamento, como o junguiano.
Por outro lado, o mito, combinado com o enredo folhetinesco e o futurismo cientificista, não funcionam como ideologia, ou seja, não são estratégias de ocultação de “significados nada inocentes” do filme, tais como um certo pendor aristocrático dos heróis (naturalmente melhores que os outros mortais) estranhamente misturado com a valorização da democracia (uma falsa liberdade?) ou a tendência maniqueísta que tanto interessaria ao imperialismo norte-americano, ávido por divisões claras entre o bem e o mal. De fato, tais sentidos circulam no filme, o que não significa que sejam a sua verdade oculta que se impõe pela ludibriação dos espectadores. Esta interpretação apenas repõe o maniqueísmo de maneira invertida, considerando ruim o que a obra apresentaria como positivo.
O fato destes sentidos e valores padrões (bem x mal, superioridade aristocrática e poderes sobrenaturais do herói) circularem na economia estética de um filme não o torna, por si só, nem bom nem ruim. Se eles circulam perpassados pela ironia, como em “Beleza americana” e “O Show de Truman” por exemplo, para permanecermos no cinema comercial norte-americano, os filmes podem se salvar esteticamente, pelo efeito de distanciamento e auto-estranhamento cultural. É claro que na maioria do cinemão americano estes sentidos tornam-se clichês repetitivos, fórmulas a serem aplicadas quase que mecanicamente e com mínimas variações. O clichê na arte de massa é uma repetição de padrões relativamente (e apenas relativamente) estáveis, previsíveis e desejáveis (pela maioria) de valores e significados ou, por outras palavras, é o próprio processo de recodificação se efetuando, recompondo identidades e sistemas bem marcados para os fluxos descodificados. Faz parte do clichê não apenas significados e valores que circulam no filme comercial (e da novela televisiva), mas também seu andamento folhetinesto, com um enredo marcado de quiprocós e revelações, numa combinação que, quando bem manejada pelo cineasta, resulta na garantia de uma grande audiência e, em consequência, uma não menos alta rentabilidade financeira.
Mas o caso da ficção científica é particular, pois mesmo que o heroísmo e o maniqueísmo apareçam sem o distanciamento crítico, em filmes como Guerra nas Estrelas, Matrix, Alien e Exterminador do futuro, mesmo ao espectador mais exigente parece que o clichê repetido soa com um sentido à mais, como se o próprio clichê remetesse a algo que o ultrapassasse enquanto tal (a mesma sensação que se tem com os melhores faroestes).
Talvez esta sensação de transbordamento de sentido ocorra porque estes filmes sejam a épica de nossa cultura. De fato, tal como a épica das outras culturas, em Guerra nas Estrelas estamos diante dos limites máximos de nosso tempo-espaço. Espacialmente, o palco é a galáxia, a maior unidade espacial imaginável. Temporalmente, ao contrário da épica antiga, que buscava o tempo mais remoto possível (a fundação do povo), o filme de ficção científica comercial busca o futuro verossímel e imaginável o mais distante possível – no sentido de que ainda possamos nos reconhecer nele, ou ainda, em que nossos clichês ainda valham. O Ocidente não procura o sentido na sua origem e nem no seu destino final (como no cristianismo e no judaísmo), mas no limite de seu devir, o limite da duração no qual ele ainda pode se reconhecer, pois num regime de descodificação geral de fluxos, as origens e fins não são limites absolutos, mas relativos, a serem deslocados e absorsivos. Por isto, ao contrário do homem das outras culturas, o ocidental não acredita piamente no conteúdo mítico de suas épicas, embora possa lhe perpassar a crença difusa de que alguma verdade universal esteja sendo dita metaforicamente (esteja conotada) pela narrativa, numa espécie de interpretação (não especializada é claro) universalista do mito. Na formação da épica do ocidente não pode haver, de fato, um absoluto em que acreditar, pois o movimento geral do capitalismo, em todas as suas dimensões (estética, política, econômica, técnica) é exatamente o do deslocamento de todo e qualquer absoluto, tornando-o relativo. Não que este deslocamento resulte numa perda total de pontos de referência (valores), muito pelo contrário, pois o estabelecimento de clichês como valores relativamente estáveis é uma força centrípeta necessária ao equilíbrio tenso do regime de descodificação dos fluxos. Mas a épica de tal regime teria também que efetuar, de uma perspectiva estética, tal deslocamento do absoluto. Neste aspecto, a Força como continuum abstrato, reversível e mensurável desempenha, em Guerra nas Estrelas, o papel de descodificador geral dos fluxos míticos-religiosos, para recodificá-los depois em clichês estéticos maniqueístas e heróicos que tanto apreciamos (desejamos). A épica não representa uma cultura, mas ela (e a religião) diz às pessoas de uma cultura o que elas são, porque o são, de onde vieram e qual o seu destino, ela é um explicador final para a falta de explicações últimas da existência. A épica do ocidente não pode nos dar tais certezas, mas ela (de)marca o estado atual e o movimento possível da descodifacação, ou seja, ela nos diz de nossa identidade relativa (nossos clichês) enquanto ocidentais e especula, na duração futura, os limites desta identidade, o quanto os fluxos (não só os tecnológicos, mas também os políticos, econômicos, morais etc) podem ser descodificados sem que deixemos de nos reconhecer como ocidentais.
Daí os clichês, em Guerra nas Estrelas, apesar de circularem no filme de modo ingênuo, ou seja, sem o distanciamento da ironia, darem a sensação de se ultrapassarem a si mesmos. De certo modo, esta ultrapassagem efetivamente se dá, pois a épica, em sentido estrito, não é o espaço narrativo do questionamento dos valores e sentidos cristalizados, mas de sua afirmação simples, pura e grandiosa, que é o que acontece na obra de George Lucas. O fato do filme ser arte de massa (magnética e contagiosa), feita no Estado central do capitalismo e estar enredada no jogo do mercado 'até a alma' (é claramente cinema comercial) não lhe tira as prerrogativas épicas. Ao contrário, tais características extra-estéticas até reforçam o seu caráter de épica que, em qualquer sociedade, é um produto simbólico umbilicalmente ligado a seus modos dominantes de produção e reprodução materiais e imateriais, além de estar em estreita sintonia com o gosto, o pensamento, os afetos e valores comuns do povo. Por outras palavras, a épica efetua brutalmente as formações de desejo que constituem a maioria (ou as centralidades) de uma cultura. Ela é de uma beleza infante: infantil e bélica, ingênua e monstruosa.